outubro 24, 2009

Nós, resistentes



Se cada comerciante do Chiado é um resistente, que dizer de quem ousa abrir uma loja numa rua esconsa e pouco movimentada, com artigos que, durante décadas, Portugal quis esquecer? Chiado abaixo, entre esplanadas, lojas ainda originais e as tomadas pelo franchising, atingimos a livraria Bertrand, seguimos as suas montras, pela rua Anchieta. Quando estas terminam, na secção infantil, tem início um maravilhoso mundo reanimado. No número 11 ficavam os armazéns da perfumaria David e David e foi precisamente aí que Catarina Portas decidiu dar existência ao seu projecto de “A Vida Portuguesa”.
Quando lhe perguntamos quem é, Catarina examina-nos bem de frente, olha a seguir para o lado. Matutamos sobre o que estará a pensar. Refazemos a pergunta para nós mesmos, equacionamo-la. Sim, era mesmo aquilo que queríamos saber. Facilitaria imenso o trabalho se a própria se definisse de forma detalhada. Mas Catarina é objectiva, ponderada e económica nas palavras. A resposta vem finalmente mas de forma sucinta, mesmo que sujeita a interpretações: “sou uma lisboeta irrequieta”.
Vamos ter de esgravatar. Essencialmente, queremos saber mais do que já lemos; ouvir de fonte fidedigna o que ainda não sabemos. Não nos chega a história da adolescente que queria aprender a confeccionar chapéus porque, sendo uma profissão em vias de extinção, a ela nunca faltaria trabalho e forma de subsistência. Também não nos basta saber que esteve na Índia por várias vezes, que escreveu um livro sobre Goa, outro sobre os Olivais, que começou por ser jornalista no Independente, continuando na Marie Claire, no Diário de Notícias e na televisão. Também nós gostaríamos de ser resistentes, ou talvez apenas mais persistentes, mas Catarina não desarma.
Lisboeta irrequieta fica. “Estrangeirada” também. Viajou desde muito cedo, viveu em Inglaterra aos cinco anos, em França aos oito. “Tinha consciência de que era portuguesa, mas alguma coisa há-de ter ficado dessa época”. Estudou no Liceu Francês e foi nos dois últimos anos que quis ser chapeleira. Emancipou-se da casa materna aos dezassete anos, pelo que “é natural que seja uma pessoa independente”. A forma como viveu durante os dois anos que medeiam a mudança de lar até ao primeiro dinheiro ganho como jornalista não vem aqui ao caso. Basta que acreditem em nós: Catarina é resistente e, tem razão, é irrequieta. Por isso andou pelas Índias. De lá trouxe outro olhar para com Portugal: “conhecia mal o meu próprio país e passei a olhar para ele como se fosse exótico”. Experimentou olhar para Portugal “de forma diferente, sem preconceitos”.
Continuava a ser jornalista. Efectuava uma pesquisa para uma revista de moda quando percebeu que alguns produtos, em cerca de 10 anos, quase tinham desaparecido. Por outro lado, preocupava-a “que houvesse uma espécie de blackout em relação ao passado”. As novas gerações não têm a noção de como se vivia há cerca de cinquenta anos, desconhecem objectos que fazem parte da história do povo português, da vida dos seus próprios pais. “Não acho que seja necessário estar continuamente a inventar coisas novas”, afirma Catarina. Cada época tem coisas boas e más. “Se estes produtos resistiram até aqui é porque têm qualidade”. Nessas circunstâncias, porque não dar visibilidade ao que tem carácter e perdura no tempo? Irrequieta, sempre a irrequietude, decide fazer documentários. É nessa altura que aprofunda as suas pesquisas, sabe da história dos artigos, quem ainda os produz. Procura fábricas e artesãos. Encontra terreno fértil para a sua ideia e começa a sementeira.
Ainda sem espaço comercial, é a partir da sua própria casa que se lança no desafio. Desenhou caixas, colocou-lhes dentro produtos tradicionais portugueses. Sabonetes, pasta de dentes, latas de azeite, artesanato. Tudo o que fosse genuinamente português lhe alimentava a inspiração. Ao lado dos produtos, a sua história porque: “a história de um produto é um argumento de venda importantíssimo”. Pegou no mostruário, levou-o à estranja. O problema maior residia em corresponder aos pedidos. Fabricar os artigos não dependia dela. Recorda o dia em que chegou da Maisons et Objects com uma encomenda de seiscentas andorinhas tradicionais portuguesas e a dificuldade que foi arranjar quem lhas produzisse. “Telefonava para as fábricas, estávamos na época do Natal, e respondiam-me que estavam a fazer presépios. Andorinhas só na Primavera”. Sugeria que empregassem mais pessoas para aquele fluxo menos vulgar de trabalho, defendia que eram peças de molde, sem necessidade de um oleiro especializado mas os argumentos enterravam-se em terreno absorvente. Teve de levar a voz mais longe, directamente a Joana Garrido, à altura vereadora para o artesanato da Câmara Municipal de Barcelos e, curiosamente, foi um oleiro dedicado a peças de autor, Carlos Baraça, o único que se disponibilizou a satisfazer-lhe a encomenda.
Irrequieta, sim, irrequieta. Jogou e ganhou. Apostou numa loja. “Fiz a loja contra a visão típica do país, muito limitada”. Estamos aqui para o comprovar. Um espaço dinâmico, com recordações do passado, o respeito do presente pela história do espaço. As épocas não têm de colidir, bastando que se integrem e foi o que Catarina fez quando recuperou o armazém da loja de perfumes David & David. Manteve armários, frascos, balcões, o pequeno escritório, com guichet para caixa e expediente. Portas pesadas, bem próprias de armazém, montras pequenas, supostamente pequenas demais para um espaço comercial. Ledo engano. A montra da loja é o próprio espaço, nos armários originais, abertos de par em par. Por secções, consoante a idade, é feito o convite a recordar ou a conhecer a história do quotidiano de uma casa portuguesa. Aliás, foi esse o primeiro nome do projecto: “A Casa Portuguesa”, ao que diz Catarina, por motivos um pouco provocatórios, pela evocação de outros tempos, bem antes de 1974. Só não apreciou de sobremaneira quando uma cliente quis estabelecer paralelos com o Estado Novo. Quando a oportunidade surgiu, a designação mudou para “A Vida Portuguesa”.
No currículo da loja constam marcas tão diversificadas como a Ach Brito, a pasta de dentes “que anda na boca de toda a gente”, de nome Couto, o restaurador Olex, os sabonetes Confiança, os lápis Viarco, os cadernos Serrote, produtos Coração, as andorinhas da Bordalo e mais uma imensidão de marcas, além de objectos anónimos, porém tão próximos da vida portuguesa.
Para Catarina, na altura em que se lançou no projecto, ”havia um momento de crise eminente. A globalização que entrara em Portugal deixava-nos desconfiados em relação ao que fazemos”. Perguntamos se acredita ter auxiliado a que algumas fábricas mantivessem a laboração. Responde rápida: “não tenho dimensão para impedir uma fábrica de fechar”. Contudo, o objectivo inicial foi cumprido “fazer com que os produtos vendessem mais, para não desaparecerem”. Tanto foi que em breve abrirá um novo espaço, nos Clérigos, no Porto. Em andamento está também o projecto da loja online, absolutamente adaptado às necessidades da vida moderna, piscando o olho a quem, gostando dos produtos, não tem tempo ou paciência para se embrenhar pelo centro da cidade. Em parceria com Alexandra Melo, da “Feitoria”, dividiram o catálogo, dispondo de um carrinho comum para as duas lojas. Até ao fim do ano tencionam disponibilizar cerca de mil produtos diferentes, na loja virtual.
Mulher com uma gaveta de projectos, no início do ano tirou mais do rectângulo, que acreditamos ser de madeira, para o atirar para a praça. Mais precisamente, para as praças: do Camões, do Príncipe Real e das Flores.
Aproveitando o lançamento dos concursos de concessão, por parte da Câmara Municipal de Lisboa, para os tradicionais quiosques, em parceria com João Regal, da DeliDelux, Catarina Portas cria uma rede de quiosques onde nos podemos viciar, e não é engano na utilização da palavra, porque o termo é exactamente esse, nos refrescos tradicionais portugueses. É o espaço “Quiosque de Refresco”. Limonada Chic, Mazagran, Leite Perfumado, Orchata, Groselha, Capilé, Chá Gelado, as sandes alfacinhas, mais as queijadas de Sintra, também em versão miniatura, estão ao nosso inteiro dispor. Ser lisboeta e não ter ainda provado, não é resistência, é pecado.
Venha, vamos fazer um tour. Primeiro passamos pelo 11 da rua Anchieta, compramos um caderno de apontamentos da Emílio Braga, um lápis da Viarco, um licor de Singeverga para a noite, uma caixa de chocolates da Arcadia, para passar o tempo. Atravessamos o largo do D. Carlos, subimos as escadas até ao Chiado. Camões espreita-nos do alto. Cumprimentamo-lo, reverenciosos e atingimos finalmente o Quiosque de Refresco mais próximo. Uma Orchata cai bem em qualquer hora do dia. Sentamo-nos, fechamos os olhos, pensamos em Eça de Queiroz e numa Lisboa de charme. Abrimos o saco que trouxemos d’”A Vida Portuguesa”, lemos a história do que comprámos e começamos a criar, em lápis sobre papel. Só a imaginação nos limita.
Viver ou fazer viver é resistir. Ao tempo, às dificuldades, ao esquecimento. Há quem tenha a alma talhada para resistir e fazer resistir. É Catarina Portas uma resistente? Acreditamos que sim.


Nós #25 de 24 Outubro 2009

outubro 04, 2009

Nós, Voluntários



Bárbara Coelho - LBV

Durante dezasseis anos, o sol alentejano curtiu-lhe a pele. Foi quando entrou na camioneta da carreira e virou costas a Mértola. Não olhou para trás nem disse adeus. Fome e trabalho excessivo não merecem mais considerações.
Bárbara, Coelho de apelido, reside num corpo delicado mas cheio de vida Desenrascanço próprio de quem teve mais enrascanços na vida do que a vida de uma pessoa parece poder suportar. O voluntariado assenta arraiais naquele feitio irrequieto quando lhe surge a vontade de praticar reiki. O dinheiro falha. Edite, a professora, quer oferecer-lhe o curso do primeiro nível, mas a candidata a aluna sente-se mal com estas coisas do usufruto sem pagar. “Pense”, diz-lhe Edite. “Se me quiser encontrar, aos sábados estou nesta morada”. Dá-lhe um papel para as mãos. Calculamos que o embrulhou, juntamente com o desejo de praticar reiki, sempre ali, à mão de semear. Até ao sábado em que, com a arte milenar a alfinetar-lhe o desejo, põe pés ao caminho, rumo à morada. À espera de encontrar uma aula, depara-se com a Legião da Boa Vontade (LBV), uma Instituição Particular de Solidariedade Social.
A pergunta não tardou: quer ser voluntária? Cozinheira de profissão, ali ao Parque Eduardo VII, a madrugada vê-a passar ao encontro do fogão e dos tachos que a esperam no hotel. Tempo não tem muito, mas nunca foi mulher dar costas a experiências novas e o projecto parece-lhe válido: distribuir refeições pelos sem-abrigo de Lisboa. Trata a cozinha por tu, é por aí que começa. Rapidamente acrescentou nova tarefa à sua agenda: participar na Ronda, conhecer fisicamente aqueles para quem prepara a sopa e enche os sacos com alimentos. A quantidade de sopa e de sacos substitui o relógio no ditar da hora de regresso: “enquanto há sopa, encontra-se sempre alguém com fome”.
Vem a reforma mas não o descanso por que tantos almejam. Desconfiamos que aquele corpo franzino, de setenta e dois anos, não foi feito para estar parado. Mais dias na cozinha da LBV, que as Rondas são três por semana, as cozinheiras poucas e a sopa não se faz sozinha. Uma Ronda por mês? Porque não duas? A LBV sugere, Bárbara acede. No entretanto, tem família, meditação, yoga, reiki, livros para ler e um dia elástico. Ajuda a preparar as festas da instituição, participa na recepção aos utentes, vai a hospitais. Deixa a cozinha e parte para o apoio telefónico. Essencialmente ouve, fiel depositária de confissões e queixumes alheios, numa espécie de linha de apoio que a LBV proporciona aos seus utentes e a que Bárbara dá voz e sentimento. Encaminha as questões, ajuda a ultrapassar problemas e, como parece que não lhe chega, sobrando Bárbara para dar, aceitou participar numa outra valência da instituição, o programa “Viva Mais”, destinado a pessoas que se encontram em grande isolamento social. Semanalmente vai da Pontinha a Campo de Ourique, em visita matinal. Para dar, no saco leva comida; nos gestos e nas palavras, afecto.
Mulher dos sete voluntariados, que não serão sete mas assenta bem no texto que assim se escreva: Bárbara, Coelho de apelido.


Adelaide Marques - Hospital D. Estefânia


Adelaidinha é título social, que isto de ser minhota, nascida em 1926, não deu oportunidades de fuga à passagem pela pia baptismal, confirmação perante Deus do registo grafado a tinta permanente. Adelaide Marques é o nome oficial, o que ostenta nos documentos mas que quase esquece no prazer de ser tratada pelo diminutivo que traz afecto à mistura. É talvez a sensação de menina. A menina que sobrevive nas fotografias, ainda coloridas à mão, penteados elaboradíssimos, óculos à moda, que Adelaidinha nunca deve ter sido moça simplória, mesmo que narre parecer a Maria Papoila quando chegou à grande cidade. Olhando-a hoje, optamos pela versão da menina cuja graça no porte e a cor da bata de voluntária do Hospital D. Estefânia lhe valeram, provavelmente de médico mais galanteador, o epíteto de Pombinha Amarela.
Ser primogénita de um rancho de catorze irmãos por terras de Valença do Minho, foi passaporte mais que seguro para chegar a Lisboa. Menos uma boca a sustentar, primeira a fazer pela vida. Ainda antes de ser Pombinha Amarela, foi empregada de casas finas, acompanhante de crianças, pensamento arredado dessas coisas de voluntariado. Até porque a prioridade era viver.
De emprego em emprego, com um quarto para pagar, a catraia lá se vai amanhando em limpezas de salões de cabeleireiro. Faltava o comer mas, irmã de treze bocas, não está habituada grandes atestos de estômago. Encontrou o emprego perfeito. Limpava o salão e tratava do almoço do patrão. Do patrão e do dela, que a moçoila arranjou forma de comprar uma marmitinha e dividir parcimoniosamente o cozinhado. Escondia-a no cesto dos cabelos varridos. Ali ninguém ia descobrir. Comia à vontade, longe de olhares inquiridores.
Aprendiz, diziam eles, “mas como é que eu aprendia se não me deixavam ver?”, reflecte ela. Ficava atrás das portas, a ver como se fazia. De tanto espreitar aprendeu mesmo. Depositária das chaves do salão, aproveitava os domingos vazios para trabalho por conta própria, até um penteado seu ter ganho concurso bairrista. Pronto, estava descoberta a marosca, lá se ia o ganho, mais o almoço. Mas a coisa funcionou ao contrário e Adelaidinha ascendeu na profissão.
Nos meandros da história, que paramos por aqui, Adelaidinha casou e enviuvou sem que do casamento ficasse prole. E logo ela, que alimentava o sonho de ver nascer crianças. Alguém a chamou: “venha fazer voluntariado no Hospital D. Estefânia”. Foi. Viu e ouviu os primeiros sinais dos que acabam de chegar ao mundo. Lembra as seis crianças, paridas de uma assentada; a outra que a encontrou na rua, correu, abraçou-a e disse: “olha, a senhora que me dá bolachas”. Ficou-lhe na memória a criança cujo pai dizia que não iria comer e que, das mãos da Pombinha Amarela, merendou sofregamente.
Tomou-lhe o gosto. Acrescentou visitas a hospitais, lares de terceira idade. Ligou-se a pessoas, assistindo-as nos últimos momentos. Os filhos de alguns, telefonam-lhe todos os dias, visitam-na ao fim-de-semana. Voluntária foste, atendida serás. É assim uma permuta quase divina, feita pela mão do Homem.

Nós #22 de 03 Outubro 2009