fevereiro 04, 2007

Golo a galope


A selecção portuguesa é vice-campeã da Europa na modalidade, mas nem por isso o Horseball é conhecido do grande público. Este é um desporto à conquista de adeptos e de patrocínios: jogar à bola a cavalo. Pura adrenalina, diz quem sabe.

O dia amanhece luminoso, sol a secar a humidade nocturna. Pelas queixas no camião ao lado, a noite anterior foi gelada. Os mais velhos procuraram aquecer-se pelas tasquinhas da Golegã; os mais novos, e únicos acordados àquela hora, enrolaram-se em mantas, após a disputa das meias-finais da Taça de Portugal de Horseball. Quase a culminar onze meses de campeonatos, o Sporting Clube de Portugal/Centro Equestre João Cardiga (SCP/CEJC) ganhou ao Cascais Horseball (CH) num jogo sem história. Por sua vez, o Horseball Club - Colégio Vasco da Gama (HC-CVG) venceu o Clube de Horseball de Alenquer (CHA).
HC-CVG e CHA regressam juntos às boxes, em discussão que raia a cavaqueira. Cláudio Oliveira, do CHA, promete oferecer as rédeas do seu cavalo a um dos adversários: “não as largavas!”. Pedro Santos, também do CHA, comenta ter ficado uns minutos sem visão por conta do braço de Marco Happel, do HC-CVG, duramente esticado para a bola. “Mas não perdi nada de interessante, pois não?”, o humor corrosivo de Pedro a perguntar. Aparentemente, além dos golos, o HC-CVG vencera também em faltas cometidas. “Onde está o van Uden?” é Pedro Serrano, capitão de equipa do CHA, quem se aproxima em demanda. Encontra o adversário, toca-lhe subtilmente no braço, ri-se, ar de puto traquina, apesar dos seus 30 anos: “foi muito bem feita, não foi?”. Só no dia seguinte havíamos de perceber, Serrano cometera uma falta apenas perceptível pelos dois jogadores. João van Uden, sorri: “foi um toque genial, serviu de aprendizagem”. E nem uma ponta de irritação por uma falta que o árbitro não viu? “Não. Talvez até algum orgulho. Significa que constituí perigo para um jogador mais velho e muito mais experiente do que eu”, assunto rematado por van Uden.

Dedicação, aos cavalos e à equitação, é a principal característica dos elementos de todas as equipas. Precisamente por isso, os horários de tratamento dos animais impõem-se sempre aos dos humanos. Com ou sem incursões nocturnas pelas ruas da Golegã, oito da manhã é hora de tratamento dos bichos. Equipas completas, elementos escalados ou tratadores habituais estão lá, para dar cumprimento ao ritual da ração e da água, que os cavalos não se compadecem com os vícios do homem. A equipa do HC-CVG, é a madrugadora. Nota-se que o espírito de grupo lhes é intrínseco: “é natural, foram assim habituados desde miúdos”, justifica a veterinária do clube, Eduarda Paisano. “Se não forem capazes de conviver juntos fora do campo, não conseguem estar unidos em jogo”. Pedro Santos também lá está. É ele quem chama “ganda maluco” a van Uden, e prende a focinheira da égua quando João aparece a montar em pêlo e cabeçada solta, comentando sozinho: “se ela se lembra de arrancar, estou feito”.
Sem equipamentos não parecem adversários. Encostam-se às boxes em troca de opiniões e experiências. Zé João Campeão aparece com uma forquilha cheia de palha. “Onde é que foste buscar isso?”. Veio das boxes do CH. No dia anterior, enquanto esperava pela chegada dos cavalos, João Maria Fernandes, do CH, advertira: “se perdermos, vamos imediatamente embora”. E foram. Da presença da equipa restavam palha e feno nas boxes abandonadas.
Menos de voltar as costas a derrotas, a equipa do CHA mantém-se no terreno. Instalados na zona das boxes, eles são o melhor exemplo do espírito amador da modalidade. Apenas têm o que Serrano designa de “paitrocinador” – Manuel Serrano, o pai, facilita o alojamento dos animais - e só com muito entusiasmo o calendário das competições é cumprido. Com o camião dos cavalos trouxeram carrinhas, sacos-cama, mesa, cadeiras e frigorífico. Durante três dias, é ali que vivem, verdadeiros anfitriões entre os horseballistas. Necessite-se de forquilha, escova ou dois dedos de conversa, é junto ao CHA que se vai buscar. Descontraído, Pedro Serrano acumula as funções de treinador e capitão da equipa. “Não é o melhor, mas ainda não conseguimos encontrar ninguém cujo espírito conjugue com o nosso”, conta. A curiosidade aumenta. Que espírito é esse? “Estamos aqui para nos divertirmos”. Deve ser verdade ou Natália Simões, a única mulher da equipa, não percorreria 120 kms três vezes por semana, para ir treinar a Alenquer tendo um dos clubes concorrentes ao título à porta de casa.
“Isto é um hobby, sem divertimento não valia a pena”, afirma Pedro. Um hobby onde quem não tem apoios, naturalmente, paga. “Mas não é tão caro como muitas pessoas pensam. Praticar karting, por exemplo, não sai mais barato”, diz enquanto se balança na mini-mota de um apoiante da equipa. Em termos médios, a manutenção de um cavalo para prática de horseball poderá custar perto de 200 € mensais.

O horseball continua a ser uma disciplina absolutamente amadora e a sua pouca visibilidade não tem atraído patrocínios de monta. A maior parte dos jogadores e técnicos continua a ter de se articular entre os inevitáveis compromissos profissionais e a prática de uma modalidade que apenas lhes acarreta despesas. Por outro lado, se o número de praticantes é suficiente para manter os vários campeonatos, já a ausência de uma carreira de árbitros de horseball pode levantar alguns problemas. A solução encontrada foi a de cada equipa fornecer o nome de uma dupla de jogadores que passam a constar de uma listagem aprovada pela Comissão Técnica de Arbitragem. Apesar de o sorteio estar previsto, a escolha dos árbitros é feita pelo Responsável de Arbitragem, lugar sujeito a eleição pela Associação de Jogadores de Horseball. Ou seja, a avaliação de cada jogo é feita por elementos de outras equipas, concorrentes no mesmo campeonato do jogo que arbitram. Não é difícil de adivinhar as não raras situações de acusação de favorecimento do árbitro a esta ou àquela equipa, como forma de beneficiar a sua própria.
Afinal, que tem de tão estimulante o horseball? “Adrenalina!”, entusiasmam-se todos quando respondem. Velocidade, capacidade de arranque e de travagem, é o que se pede ao jogador de horseball e à sua montada, tudo conseguido sem o recurso a rédeas, chicote ou bastão. Só o toque das pernas dá instruções. As mãos querem-se livres para o que faz ganhar jogos: alcançar a bola e marcar pontos. “Por isso eles [horseballistas] dizem que o Horseball é mais exigente do que o Pólo”, afirma Eduarda Paisano. A sintonia entre equídeo e cavaleiro tem de ser perfeita. “Em campo, o cavalo é equivalente às pernas do jogador. Um sem o outro não fazem nada”, diz Pedro Serrano. “É um jogo extremamente exigente, em termos musculares, articulares, de respiração. Obriga que os cavaleiros sejam atletas e os cavalos também”, afirma Eduarda Paisano. “Uma partida tem vinte minutos, um intervalo de três. No fim do primeiro tempo, cavalos e jogadores estão estoirados”. Compreensível, considerando que uma montada demora cerca de seis segundos a percorrer um campo regulamentar, cujas medidas ideais são 65 por 25 metros. Para evitar acidentes, os oito jogadores em jogo e o próprio árbitro têm de correr sempre paralelos. Mudanças de direcção só são permitidas nas cabeceiras do terreno, junto às balizas, aros com um metro de diâmetro, a uma altura de 3,5 m do chão. É por ali que tem de passar a bola, envolta em seis correias de couro que permitem aos jogadores arremessá-la, agarrá-la, no ar ou no chão. A ramassage (acto de recolher a bola do solo sem desmontar) é talvez o exercício visualmente mais impressionante desta modalidade. Cavalgar em pé nos estribos até parece fácil, quando comparado com aquele inclinar de corpo, braço esticado em direcção ao chão, cavalo a galope e bola novamente no ar. “Não, eles não ficam de cabeça para baixo”, sorri Eduarda. “Numa ramassage tecnicamente bem feita, quando muito, a cabeça fica ao nível do joelho”. Seja mas, embora não haja conhecimento de acidentes graves no horseball, nem por isso o gesto perde o ar de acrobacia.

Desde sempre o homem gostou de confrontos a cavalo. Nas pampas argentinas, há centenas de anos que o Pato é praticado. Duas quadrilhas de homens a cavalo em disputa por um pato, encarcerado numa saca de serapilheira, com as asas de fora, para facilitar ser agarrado. A desventurada ave terá vindo a ser substituída por uma bola. É essa prática que em 1930 um campeão de saltos de obstáculos a cavalo, o Capitão Clave, faz chegar a França como treino de sela. Com as adaptações necessárias, ao longo dos anos o novo exercício é adoptado para tornar mais lúdico o ensino da equitação. A sua divulgação, já com a designação de Horseball, ultrapassa fronteiras. Em 1988, Portugal assiste à primeira exibição da modalidade. País de cavalos, cavaleiros e bola, a lusa nação não lhe vira costas. A fusão de um jogo de equipa com a equitação, desporto por norma solitário, é aliciante. Em 1989 o número de praticantes já permite a organização de um torneio entre três equipas: Centro Equestre Lezíria Grande, Escola de Equitação Fernando Ralão e Horseball Club (HC), na altura na Quinta da Granja, actualmente HC-CVG, são as pioneiras. Hoje, disputam-se três campeonatos nacionais com 16 equipas participantes e, pela oitava vez em treze anos, a selecção portuguesa é vice campeã da Europa. À sua frente, só a França.
Quando a intenção é falar de divulgação e ensino do horseball em Portugal o nome de Francisco Campeão é incontornável. Instrutor de equitação, habituado a ensinar crianças, para Campeão a modalidade “veio funcionar como uma ferramenta de trabalho” porque, “depois de passar o volteio, a aprendizagem é uma ‘seca’ para os miúdos. Muito longa e monótona.” Fundador do HC, foi da sua prática com classes jovens que nasceram ideias mais adaptadas às necessidades dos miúdos, como a utilização da bola número 2 e a alteração do formato do stick, utilizado para ensinar os póneis a andar. A troca de experiências e o contacto constantes com Jean Paul Depons um dos principais entusiastas da modalidade em França, levaram a que essas alterações fossem inscritas nas regras internacionais do ensino da modalidade.
Fala-se de crianças porque é essencialmente nelas que Francisco Campeão investe. “Embora se possa começar a praticar horseball em qualquer idade, desde que se esteja a montar bem”, há 15 anos o seu lema tem sido: “vamos apostar nos mais novos para daqui a uns anos termos óptimos jogadores adultos”. No SCP/CEJC, é o próprio João Cardiga, responsável do Centro Equestre, quem diz: “o Horseball começou em minha casa em 1993, pela mão do Francisco Campeão”. O método, ao qual não é alheia a ascendência britânica de Campeão, consiste na utilização dos póneis Shetland que, explica Eduarda Paisano, “são peluches vivos, ao tamanho dos miúdos, que conseguem escová-los, aparelhar, dar banho, montar e desmontar sozinhos. Vão desenvolvendo o equilíbrio, o movimento animal, o respeito pelo cavalo e, quando crescem, aumenta o tamanho da montada”. Não será concerteza coincidência que as equipas presentes na final da Taça de Horseball de Portugal sejam as únicas que têm escalões de formação, e ambas nos mesmos moldes.
No SCP/CEJC, a formação é também feita de forma continuada, com um corpo técnico constituído por João Cardiga e dois treinadores, um para os seniores, outro para as categorias mais jovens. É André Ponces de Carvalho, o treinador dos seniores, quem afirma: “há aqui uma mecânica muito grande, que é o diálogo entre estes 3 técnicos. Assisto muitas vezes aos treinos dos escalões jovens, até porque um dia mais tarde vou herdar jogadores desse escalão”. Sobretudo, “falamos todos a uma voz, queremos ter uma imagem de equipa, e essa imagem começa logo a construir-se na formação”.

“Veterinário às oito”. A palavra passara de boca em boca ou pelo telemóvel. “Quer fazer já a fotografia dos vencedores da Taça?” João Tiago Ribas ri-se com toda a equipa do SCP/CEJC, em pose e confiantes no triunfo. Antes da final, nem por um momento o capitão da equipa sportinguista parece duvidar da vitória. Os jogadores do HC-CVG mantêm a sua postura calma e sorridente.
Ponces de Carvalho já puxou toda a equipa para um canto, em conversa vedada a qualquer intruso: “há momentos que são só nossos. É um momento de concentração, um momento místico. É ali que começa a nascer o bichinho para entrarmos em campo”. Equipas e apoiantes ocupam-se com a preparação das montadas, os jogadores exercitam os músculos e fazem o “aquecimento de chão”.
Transpor as poucas centenas de metros que separam as boxes dos equídeos do picadeiro central assume proporções de audácia. As equipas atingem o local perante a indiferença da multidão que se pressente mais inebriada pelo aroma dos grelhados e anúncios dos vendedores ambulantes do que por questões equestres. Nem o facto de se disputar a Taça de Portugal de Horseball confere aos jogadores privilégios particulares. Os animais aquecem na manga, o corredor em torno do picadeiro central, indiferenciados, entre o passeio de póneis, charretes, trajes de equitação à portuguesa. Quando os portões do campo se abrem, a entrada está longe de ser apoteótica. “Quem vir os equipamentos, pensa que é um Benfica/Sporting”, ouve-se. Mas a paixão clubística parece não morar ali e, apesar de considerável, o público tarda em dar mostras de entusiasmo. Nem o esforço do locutor de serviço, que empresta à voz o tom de festa, aparenta surtir qualquer efeito.
O HC-CVG parece ter entrado para ganhar. O SCP/CEJC aparenta nervosismo e dificuldade de organização para um ataque eficaz. Um dos jogadores de verde e branco cai. O cavalo levanta-se, deixa o cavaleiro junto à baliza, sai disparado para a lateral do campo. Treinador e veterinária do HC-CVG, ajudam a agarrar o animal fugitivo. Pelo gesto, a veterinária encoraja o jogador da equipa adversária. O jogo pára. Só assim o atleta pode entrar em campo. Tudo regressa rapidamente à normalidade. Intervalo.
Os cavalos são refrescados, os treinadores ouvidos, muda-se de campo. É um Sporting renovado que entra na segunda parte. O que disse André Ponces de Carvalho à equipa, manter-se-á secreto. “Zanguei-me muito com eles e acho que lhes toquei num ponto fundamental que é o ego. Sou exímio a tocar no ego das pessoas quando é preciso”. Fosse qual fosse o argumento utilizado, o SCP/CEJC dá a volta ao resultado no início da segunda parte. Findos os vinte minutos de jogo a taça, pelo segundo ano consecutivo, passa de mão em mão entre os jogadores do Sporting. Longe do ar que lhe é natural, é um João Cardiga austero que a recebe no fim. A emoção, esconde-a no ombro de cada jogador abraçado.
Após a vitória, Ponces de Carvalho afirmou: “Eu não queria dizer isto, porque se calhar vai ser publicado, mas disse-lhes, antes de iniciarmos as meias-finais da taça: se ganharmos a meia-final, quer dizer que estamos na final e, se ganharmos a final, garanto-vos que durante 2 anos não perdemos um jogo de competições oficiais. Portanto, acho que diz tudo”.
Nos dias 3 e 4 de Fevereiro, as mesmas equipas que disputaram a final da Taça de Portugal, irão lutar pela Super Taça Diogo Santos, no picadeiro coberto da Sociedade Hípica Portuguesa, no Hipódromo do Campo Grande, em Lisboa.
Notícias de Sábado #56 - 03 Fevereiro 2007

2 comentários:

Anónimo disse...

Antes de mais, muitos parabens pelo artigo neste blog. Vem trazer mais um pouco de visibilidade ao Horseball Nacional.

Gostaria de deixar aqui apenas um reparo e um comentário.

Portugal este ano NÃO é Vice Campeão Europeu. No último campeonato por pouco não ficava em último lugar desta competição. De facto fomos por diversas vezes Vice Campeões, no entanto, não o somos neste momento. No entanto acredito que todos nós continuamos a lutar pelo nosso Graal: A vitória de um campeonato Europeu.... Será em 2007? Espero que sim.

Em relação à Super Taça... O HC CVG ganhou sem qualquer oposição por parte do SCP.... Quando é que começarão os dois anos consecutivos de vitórias por parte do SCP???

Rodrigo Frade
(Cascais Horseball)

Anabela Oliveira disse...

Caro Rodrigo

Antes de mais, agradeço os seus reparos.

Houve efectivamente um lapso na edição do texto que, apesar de publicado em 2007, foi escrito em 2006 e referia-se ao campeonato da Europa de 2005.

Quanto à Super Taça, o jogo a que esta reportagem se refere é o da Taça de Portugal. Se reparar, o final do texto menciona que a Super Taça se irá realizar a 3 e 4 de Fevereiro, tendo a peça saído precisamente no dia 3 de manhã, antes de qualquer jogo da disputa em questão.

Os dois anos consecutivos referem-se à Taça de Portugal. Estou equivocada?