setembro 01, 2006

amiga anorexia


Não é uma doença de modas ou de manias nem é exclusiva do género feminino. Enredados nas malhas da doença, os rapazes também são suas vítimas, sem diferenças, na deterioração sentida.


Enquanto a família se dispersava pelos seus afazeres, Sérgio ia para a escola. Sem comer. Quando voltava bastava-lhe mentir para justificar a aparente falta de apetite. Tinha comido na escola, dizia. Pegava então num iogurte e fechava-se no quarto, longe de olhares que pudessem descobrir a magreza que lhe tomava conta do corpo. Mantinha-se cheio de energia e o domínio que conservava sobre o seu físico mostrava-lhe que afinal era capaz de alguma coisa. Se alguém ousava dizer que algo ia mal, Sérgio reagia: “o que querem é que eu coma e perca o controle sobre mim, sobre a minha vida, sobre o meu corpo”.
Tudo começara uns tempos atrás. Sérgio nunca foi um miúdo magro. Na escola, o simples facto de o chamarem resvalava facilmente para a humilhação: era “o gordo”. Sentia-se o bobo da corte, o coitadinho, de quem ninguém gostava. Defendia-se tentando parecer extrovertido, imitando os outros. Nas aulas, lutava por boas notas, queria marcar a diferença e mostrar as suas capacidades. Porém, o esforço parecia não ser suficiente. Pelo menos para o pai, a quem as avaliações escolares nunca chegavam, ocupando-se a prever-lhe um futuro de insucesso. Sérgio não contestava. Nunca foi rapaz de reacção fácil diante dos outros e, em casa, interiorizar parecia-lhe a melhor defesa. Só anos mais tarde, a conselho médico, se permitiu pôr a contenção de lado.
O retrato familiar também não era pacífico. O alcoolismo e a prepotência do pai ajudavam a que os afectos da mãe fossem desde sempre canalizados essencialmente para o filho, enquanto os avós apoiavam a irmã. Sérgio sentia-se isolado, dono de uma responsabilidade que não queria para si, quando a mãe lhe dizia “estou com o teu pai por tua causa”. Acabou por ganhar uma certa prática em desconfiança: “nunca houve união e, se não havia confiança em casa, eu não podia funcionar bem com os outros”, afirma. Os médicos não escapavam a esta suspeita e o acompanhamento pelo endocrinologista deixou de fazer sentido para o jovem de 16 anos que se sentia mal sempre que o clínico o acusava de não se esforçar por perder peso entre duas consultas. Tratou ele mesmo de emagrecer, de mostrar que era capaz, começando a fazer uma dieta alucinada, sem qualquer tipo de acompanhamento, onde apenas os valores calóricos de cada alimento lhe interessavam. Sem se dar conta, estava refém de uma doença extremamente viciante e manipuladora, a anorexia nervosa. Passados 4 anos, mantém consultas regulares de psicoterapia e consegue manter um distanciamento da doença que lhe permite considerar-se curado.
“Quem não passa pela doença não a consegue perceber”, diz Sérgio. “Passei fome, muita fome.” Até no nome a anorexia nervosa é ambígua, porque nunca há uma perda de apetite mas antes uma vontade férrea de a controlar.
Considerada frequentemente como própria de raparigas a quem a vontade de obterem um corpo perfeito as levam ao emagrecimento excessivo, a anorexia nervosa é muito mais do que isso: “é uma doença psíquica, afectiva, emocional, com alterações cognitivas da avaliação da realidade, sempre presentes.” É assim que Dulce Bouça, psiquiatra, coordenadora das consultas de Doenças de Comportamento Alimentar (DCA) do Hospital de Santa Maria (HSM), em Lisboa, define a anorexia nervosa. Com uma incidência, a nível mundial, que oscila entre 0,5 e 1%, a relação de pessoas afectadas pertencentes ao sexo masculino é de um em cada dez, enquadrando-se Portugal nestes parâmetros. O motivo da disparidade dos números prende-se com factores diferenciados entre o homem e a mulher, como o são a constituição biológica, a relação com a alimentação, o metabolismo, o funcionamento hormonal e também com o facto de a pressão social e cultural para perder peso ser maior no género feminino do que no masculino.
Quando procuramos motivos para o surgimento da anorexia nervosa, verificamos que apenas se sabe tratar-se de uma doença multifactorial: “há factores genéticos, familiares, culturais, sociais, pessoais, da personalidade, e todos confluem para que a doença possa vir a surgir”, afirma Dulce Bouça. Acima de tudo é uma doença caracterizada pelo medo. Um medo intenso de ultrapassar os desafios da vida. O mesmo medo que pode levar algumas pessoas ao consumo de estupefacientes, pode também conduzir aqueles que têm padrões pessoais de auto-análise mais rígidos, pessoas muito rigorosas e muito adaptadas a cumprir os padrões sociais e familiares que lhes são propostos, a entrar num processo de anorexia nervosa. Com uma clara distorção cognitiva acerca de si mesmo, das suas capacidades e do seu desempenho ao longo da vida, o potencial anoréctico dá mais um passo em direcção à doença quando se ilude acerca do que uma restrição alimentar lhe pode oferecer. Sempre à procura de viver bem consigo e com os outros, ele crê que o controle exercido sobre o seu apetite e o seu próprio corpo lhe dará a sensação de bem-estar que busca. Entra então num processo de deterioração biológica que, habitualmente, se nega a ver e a aceitar.
Por mais baixo que seja o seu índice de massa corporal (IMC), de uma forma geral ou selectiva, o anoréctico continua a sentir-se gordo: “não me importava de engordar 10 quilos, desde que fosse nas pernas e nos braços”, diz Ricardo, “acho-me barrigudo.” A anorexia nervosa foi-lhe diagnosticada aos 16 anos. Aos 18, do seu historial clínico fazem parte um internamento de 4 meses no bloco de psiquiatria do HSM, muitas consultas de acompanhamento psicológico e de terapia familiar, porque é essencial ajudar as famílias a ultrapassar a doença.
Extrovertido e bem disposto, Ricardo ignorava quando alguém lhe dizia que devia fazer uma dieta. “Eu queria era comer!”, diz. Sentia-se bem consigo e o excesso de peso não o impedia de se dedicar ao seu desporto favorito, o futebol. Com a entrada na adolescência emagreceu um pouco mas o seu IMC mantinha-se elevado. Em campo, sentia que a sua velocidade e resistência podiam melhorar com a perda de alguns quilos, contudo, não era nada que o preocupasse em demasia. A entrada de um novo treinador na equipa de que fazia parte veio alterar o rumo dos acontecimentos. Habituado a fazer parte da equipa principal, Ricardo viu-se fora das 4 linhas, a correr, durante todo o tempo de jogo. O treinador “dizia-me que só voltava a jogar depois de perder uns quilitos”, recorda. Não lhe foi sugerida uma meta ou dada qualquer indicação nutricional. Emagrecer, só, era o imposto. O rapaz tomou a coisa à letra e perder peso tornou-se o único objectivo de vida. Não importava como o fazia mas apenas consegui-lo. Também ele não precisava de esconder ou deitar fora a comida. Uma mentira era-lhe suficiente para iludir a vigilância familiar: “comi na escola”. A verdade é que comera uma sopa ao almoço e repetira o repasto ao jantar, junto da família e, por maior magreza que apresentasse, recusava-se a aceitar o seu excesso.
Para Maria São José Tavares, médica de família e coordenadora do projecto Aparece, desportistas com projectos para a alta competição e bailarinos, “por serem áreas em que tem de haver um grande controle sobre o peso e sobre o corpo”, são dois dos grupos em relação aos quais é necessária uma atenção suplementar aos indícios de anorexia. Pelas características do Aparece, dando apoio técnico a todos os problemas da adolescência, Maria São José tem acesso a casos que podem ser tratados sem que se chegue à fase de doença declarada. Contudo, para que tal aconteça, é essencial que o clínico esteja muito atento. O corpo é habitualmente a principal preocupação de um adolescente e “é no corpo que tudo está projectado. Na forma como ele é alimentado podemos avaliar sinais de desequilíbrio, da relação com o alimento, ou podemos suspeitar de relações de conflito com a alimentação, que não são ainda doença.” Mas esta detecção pode ser morosa e é necessário que o médico disponha de tempo que o nosso Serviço Nacional de Saúde não concede, além do facto de muitos dos jovens, essencialmente os rapazes, serem pouco dados a procurar ajuda. É aqui que o papel da família se torna mais importante. Para a técnica de saúde, “refeições que não são tomadas em família permitem que os adolescentes possam ter comportamentos alimentares que fujam à observação dos pais”. Muitas vezes esses comportamentos duram meses ou anos sem que os familiares os notem.
Sérgio e Ricardo passaram a isolar-se, a diminuir as hipóteses de que alguém reparasse na magreza dos seus corpos. Muitos escondem-nos sob roupas largas e chega a haver quem utilize pedras nos bolsos, quando obrigado a pesar-se periodicamente. Os jovens adoptam comportamentos em que se protegem de que alguém os veja, o que faz com que a situação progrida muitas vezes em silêncio. Sendo características destas pessoas a inteligência, e a obsessão em relação ao que pretendem atingir, não parece difícil que consigam iludir a vigilância familiar. Contudo esta não é uma doença cujo único tratamento consista em fazer a pessoa comer. É necessário que os sentimentos sejam trabalhados: “quando estão em situação de anorexia nervosa, os jovens são tão contidos com os afectos como com a alimentação”, diz Maria São José. A desconfiança em relação ao mundo instala-se. Sérgio e Ricardo ainda hoje têm dificuldade em confiar. Testam as famílias na hora de pôr a comida no prato. O pensamento diz-lhes que “eles querem que eu coma, coma e não pare” e é necessário averiguar “se o que querem é mesmo cumprir com o que deve ser feito, a quantidade ideal”, recomendada pelos médicos, para que seja obtida a reposição gradual dos valores calóricos ingeridos ao longo do dia. Ricardo só confia na mãe: “ela preocupou-se em tentar saber um pouco mais sobre a doença. Sérgio mantém a distância familiar, esqueceu as amizades antigas para abrir uma página nova da sua vida, onde as comparações com o que era anteriormente não sejam possíveis. Deixou de lutar por notas altas, enfrenta os problemas conforme eles lhe surgem. Ricardo esqueceu a carreira de futebolista mas mantém a esperança no seu sucesso pessoal em qualquer área ligada ao desporto.
Promover uma sociedade mais tolerante em relação às diferenças individuais, criar hábitos de convívio familiar salientando a importância do equilíbrio entre o aspecto emocional e físico das nossas crianças parece ser uma forma de gerarmos adolescentes saudáveis.

Contactos úteis:

AFAAB - Associação dos Familiares e Amigos dos Anorécticos e Bulímicos
Telefones – 21 432 19 67 (Lisboa) e 22 200 00 42 (Porto)
E-mail - afaab@ip.pt

APARECE - Centro de Atendimento a Adolescentes
R. Buenos Aires, nº 27, rc/dtº
1220-622 Lisboa
Telefones: Geral - 21 393 24 70
Atendimento a adolescentes - 213932477
E-mail: aparece_caa@yahoo.com ou aparece@oninet.pt

Centro SOS Voz Amiga - 800 202 669
Dias úteis, das 12h às 24h

Linha SOS Adolescente - 800 202 484
Dias úteis, das 10h às 13h e das 14h às 18h

Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar
Rua Sousa Lopes, 63-C
1600-207 Lisboa
Telefone - 217 972 110
E-mail - ndca@comportamentoalimentar.pt

Consultas hospitalares:

Hospital de Santa Maria
Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar
Av. Prof. Egas Moniz
1699-035 Lisboa
Telefone Geral - 217 805 000

Hospital da Universidade de Coimbra - Serviço de Psiquiatria
Consulta de Distúrbios Alimentares
Av. Bissaya Barreto
3000-075 Coimbra
Telefone Geral - 239400400/ 239400500
Linha Azul - 239827446

Hospital de S. João - Serviço de Psiquiatria
Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar
Av. Prof Hernâni Monteiro
4200-319 Porto
Telefone Geral - 225 512 100
Linha Azul - 225 096 093
Sábado #121 - 24.08.2006

2 comentários:

Anónimo disse...

Tenho uma filha com anorexia bulimia. Mede 1,58 e pesa 3o kg. Estou cansada de a levar a hospitais e a médicos.Se puderem ajudar...
Uma mãe

Anabela Oliveira disse...

Cara Senhora

O contacto com a AFAAB pode ser um bom começo.

Trata-se de uma Associação onde as pessoas têm a experiência de lidar directamente com a doença em suas próprias casas - na maior parte dos casos são pais com filhos anorécticos e bulímicos que se uniram para falar e esclarecer sobre a doença e estão em vários pontos do país.