setembro 01, 2006

"não deixe a peteca cair"


No Brasil, dizer: “não deixe a peteca cair” pode ser uma frase de ânimo para quando as coisas não vão muito bem na vida. Trata-se de uma clara alusão ao jogo da peteca, cujos primórdios ascendem há centenas de anos atrás e que tem como objectivo manter um volante em trajectórias aéreas, impulsionado pela palma da mão.

Há quem refira a prática da peteca em países como a China, Japão ou Coreia, há mais de dois mil anos, utilizada como manutenção de treino militar em tempo de paz ou, entre os mercadores, como forma de aquecimento nos períodos mais frios. Contudo, de certo, sabe-se que no Brasil, e ainda antes da chegada dos portugueses, os índios já jogavam a peteca. Minas Gerais, região densamente povoada por tribos tupis e guaranis é considerada o local de nascimento desta prática, directamente ligada aos indígenas e à época de colheitas, altura em que a peteca, volante que dá o nome ao jogo, era feita em palha de milho, sendo a base cheia com areia. Hoje ela surge de forma padronizada, constituída por rodelas de borracha sobrepostas e quatro penas brancas, de peru. Depois há as pequenas variantes: desde a peteca especialmente fabricada em materiais resistentes para ser utilizada na praia àquelas mais leves e facilmente adaptáveis às mãos de uma criança, os pesos, bem como as cores, diferem.
Conta a história que durante os Jogos Olímpicos de Antuérpia, em 1920, a delegação brasileira levou consigo algumas petecas para serem utilizadas como entretenimento. O interesse da comitiva finlandesa, ávida de informação sobre as regras do que observavam como uma modalidade nova, lançou algum embaraço entre os brasileiros que praticavam o jogo de uma forma simplesmente lúdica. Só em 1973 as primeiras normas começaram a ser implementadas, adaptando-lhe algumas das regras utilizadas pelo badmington, voleibol e pelota basca. Como desporto federado, ela surgirá apenas 12 anos mais tarde, em 1985, muito motivada por pressão dos clubes de peteca de Minas Gerais que, perante o elevado número de adeptos, acreditavam ser possível transformar uma prática ancestral em desporto nacional.
A prática da peteca alarga-se às mais variadas idades e, a partir do Brasil, inicialmente sob a forma de pequena lembrança oferecida aos visitantes, a modalidade espalhou-se pelo mundo. Em Portugal, é fácil de encontrar grupos, essencialmente de brasileiros, a bater a peteca na praia. Contudo, além desses, encontramos gente bem mais ambiciosa, cuja intenção é fazer com que a modalidade deixe de se confinar aos encontros de amigos, conferindo a Portugal uma representação nacional, com capacidade de participar em competições de internacionais.
Um petequeiro em Portugal
José Andrade é brasileiro, campeão de peteca do estado de Minas Gerais precisamente e, em alusão à modalidade pela qual é apaixonado, gosta de ser tratado por Andrade “Peteca”. Se tinha o sonho de viajar até à “terra do tio Sam”, a irmã trocou-lhe as voltas no dia em que lhe ofereceu uma passagem aérea para Portugal. Chegou há seis anos. Viu, gostou e ficou. Homem dos sete ofícios e quatro desportos, Andrade “Peteca” é praticante de futebol, atletismo, natação e peteca. Em 2003, decide fundar uma associação sem fins lucrativos, o Clube de Praticantes de Peteca de Portugal (CPPP), com o objectivo de divulgar a modalidade em Portugal. Com sede em Fernão Ferro, no concelho do Seixal, as actividades do CPPP decorrem em espaço cedido pela União Recreativa Juventude de Fernão Ferro (URJFF), cujo presidente José Rei, adepto da prática desportiva como forma de ocupação dos mais novos, abriu as portas a esta modalidade por “ser nova, diferente, económica e acreditar na sua capacidade para motivar participantes”.
É através do CPPP que “Peteca” pretende afirmar a prática do desporto que lhe vale a alcunha. Para que tal seja possível, tem vindo a desenvolver um projecto cuja finalidade essencial é ocupar crianças e jovens e “formar futuros campeões”, diz. “A peteca pode ser considerada um entretenimento mas, como qualquer desporto, tem hipóteses de funcionar como uma actividade de prevenção social”. Neste contexto, José Andrade tem levado o seu projecto às escolas, fazendo apresentações teóricas e práticas embora, porque os apoios económicos são nulos, apenas no concelho do Seixal. Contudo, sendo uma modalidade recente em Portugal, a peteca tem os atractivos mas essencialmente as dificuldades de tudo o que é novo e Andrade queixa-se da falta de atenção dos adultos implicados no processo de divulgação da modalidade: “infelizmente, não consegui ainda sentir um verdadeiro interesse por parte dos professores ou pais das crianças de forma a motivar os mais novos na continuação da prática da actividade. Os miúdos gostam da apresentação, mas depois não aparecem no Clube nem tenho conhecimento que continuem a praticar a peteca na própria escola”, afirma Andrade, que se mostra disponível para facultar formação gratuita aos professores e encarregados de educação. A intenção é alertá-los para as vantagens de uma modalidade bastante completa, pelo tipo de movimentos que exige, capaz de fomentar o espírito de equipa e que, face aos reduzidos meios e custos que envolve, pode facialmente ser praticada em qualquer lugar e por pessoas oriundas de qualquer extracto social.
Para já, alguns miúdos, além de gente mais avançada na idade, são assíduos nos treinos na URJFF. Cleison Teixeira tem doze anos. A mãe está em São Tomé e Cleison vive com o pai e a avó. É franzino e tem um ar entre o reguila e o atento. Imparável em campo, define a prática da peteca como “espectacular”. A modalidade apanhou-o no meio de uns remates de futebol ali mesmo, na URJFF. Atraído pelos movimentos que a nova modalidade implica, entusiasmou-se. Ataca o volante com a habilidade de quem quer vencer, impulsionando-se no ar sempre que ele vem mais alto, servindo forte para que ultrapasse os 2,20 metros de altura da rede. O seu sonho é finalizar a impulsão com uma queda perfeita, como vê Andrade fazer.
Já Vinicius Nascimento, igualmente de 12 anos, é um miúdo aparentemente mais calmo. Tal como Cleison, também ele jogava apenas futebol e até tinha a ideia de que a peteca era um desporto tipicamente “para raparigas”, mas essa noção dissipou-se às primeiras palmadas que deu para defender o volante. É que, embora a modalidade não tenha falta de praticantes do sexo feminino, é necessário ter mão rija para aparar a velocidade com que a peteca se desloca.
Lado a lado com os mais jovens, está Joaquim Loução. Tem 51 anos e é instrutor num centro de formação profissional. Chegou à peteca através do contacto que teve com Andrade, durante um curso em que este foi seu aluno. Com o tempo, os papéis inverteram-se e neste momento é o “Peteca” quem ensina o monitor. Todos os domingos Loução se desloca às instalações da URJFF para participar nos treinos da modalidade que começou a praticar aos 50 anos. “Não tenho quaisquer esperanças de vir a competir em campeonatos internacionais, não só pela idade mas também porque comecei muito tarde”, diz, “mas sinto que todos estes movimentos e o tipo de exercícios de aquecimento que fazemos antes dos treinos, me mantêm em forma. No Inverno, sinto a sua falta.” A menção à ausência de treinos no Inverno vai ao encontro de uma pretensão de José Andrade que, nos contactos que tem feito no sentido de pedir apoios, solicita que lhe seja disponibilizado um pavilhão coberto para que os treinos da modalidade não tenham de ser adiados em dias de chuva.
“Levo este clube muito a sério. Sei que tenho possibilidades de ajudar sob o ponto de vista social, motivando as crianças e desviando-as de actividades menos desejáveis, ocupando-lhes os tempos livres de uma forma saudável”, afirma Andrade “Peteca” que continua: “temos hipóteses de organizar campeonatos em que os praticantes, além de se exercitarem, sintam a responsabilidade de melhorar a sua actuação. E isso é positivo, até do ponto de vista do desenvolvimento da autoconfiança das crianças.”
É com entusiasmo e um ar algo sonhador que os rapazes, durante uma pausa dos treinos, ouvem falar do Campeonato Internacional de Peteca, que terá lugar em Sannois, França, durante o próximo mês de Maio mas onde Portugal, por falta de patrocínios, não terá qualquer participante.
“Necessitamos de apoios”, afirma “Peteca”. “Só assim poderemos levar mais longe este projecto, fazê-lo sair do concelho do Seixal.”
Os miúdos continuam a saltar à procura da peteca. Queixam-se do ardor provocado nas mãos, mas esfregam-nas e batem-nas, de acordo com as instruções do treinador. Ficam então aptos para mais um ataque ao projéctil, vibrando quando conseguem que o adversário não o defenda.
Quem já experimentou, espera concerteza que José Andrade “não deixe a peteca cair”.
Sábado #109 - 01.06.2006

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