setembro 01, 2006

era uma vez


Sobejamente conhecido, o Museu do Brinquedo, em Sintra, é local de deleite para crianças e adultos. Porém, antes da sua própria história tem uma outra, constituída por pequenos fragmentos da vida de um homem: Arbués Moreira. Apoiado pela mulher, Ana Moreira, ele deu um novo valor à arte da brincadeira.

Era uma vez um avô… Este podia ser o começo da narrativa sobre o Museu do Brinquedo, há muitos, muitos anos.
João Arbués Moreira era um miúdo que, como todos os miúdos, gostava de brincar. E tinha um avô, esse sim, diferente. Era um senhor deveras rico que, além de gostar que os netos brincassem, tinha um hábito bastante peculiar: de cada vez que um deles tinha más notas, ele oferecia-lhe um brinquedo.
Arbués Moreira crescia, como crescem todas as crianças e um dia, já ele tinha alguns anos e muitos brinquedos, um professor perguntou aos alunos o que coleccionavam. João, que não se lembrava de coleccionar mais nada, disse: “brinquedos”. Os colegas riram-se, mas o pedagogo explicou: “uma colecção de brinquedos é tão importante como outra qualquer porque eles representam a época em que são feitos”. E aquilo, conta o actualmente engenheiro Arbués Moreira, “deu-me uma volta tão grande à cabeça, que eu comecei a comprar brinquedos já com o intuito de representar o mais possível a época”.
Terá sido mais ou menos este, há mais de cinquenta anos, o início do Museu do Brinquedo que hoje se situa em Sintra, no antigo quartel dos bombeiros.

Um passado feito de histórias

O museu abre ao público após vários anos de coleccionismo e muitas histórias, algumas delas onde é notória a forte presença de João Capucho, o avô. Foi com ele que Arbués Moreira e o irmão aprenderam os riscos de alguns brinquedos: ”por exemplo as máquinas a vapor são brinquedos perigosos. Ele deixava-nos brincar mas explicava-nos os perigos e qual a pressão a que devia estar a máquina”, diz.
Também as primeiras experiências com electricidade foram partilhadas com Capucho, que submetia os miúdos a um estranho ritual: “tínhamos um reóstato e todos os dias, quando chegávamos da escola, íamos pôr os dedos na ficha. O choque era sempre um bocadinho mais forte que o anterior. Um treino para, se um dia apanhássemos uma descarga eléctrica grande, não nos acontecer nada”, conta o neto, com um sorriso entre o divertido e o saudoso.
Na tentativa que Arbués Moreira escapasse à influência do avô, que achava os estudos absolutamente desnecessários e tentava desviar a atenção dos netos para coisas menos maçadoras, o pai enviou-o, juntamente com o irmão, estudar para Inglaterra. Persistente na ideia da inutilidade do estudo, João Capucho descobre o número da conta bancária dos netos. Perante o achado, e com o intuito que os rapazes se divertissem em território bretão, aí faz avultados depósitos que acabaram por levar os dois jovens a terem de justificar, perante a polícia inglesa, tal quantidade de dinheiro. Ninguém acreditava na versão dos dois adolescentes e muito menos na excentricidade do ancião.
Se a distância imposta pelo pai permite que os dois irmãos terminem os seus cursos, os incrementos dados pelo avô à conta bancária dos jovens possibilitam o acréscimo da colecção de brinquedos de Arbués Moreira. Desses tempos ficou-lhe o hábito de percorrer as igrejas e os antiquários de Londres. Ainda hoje Ana Moreira, mulher do coleccionador e directora do Museu do Brinquedo, reclama sempre que se proporciona uma viagem à capital britânica: “não vou a Londres contigo, és um chato, só queres visitar as igrejas!”. Arbués Moreira confirma, não que seja “um chato”, mas que dos anos de Inglaterra lhe ficou o hábito de explorar os cestos cheios de brinquedos oferecidos pelos paroquianos e que os pastores têm o costume de colocar à venda nas igrejas.
Anos mais tarde, em viagens a Paris com a avó, durante um mês negociava a sua companhia em desfiles de costureiros da época ou museus que o cansavam, em troca de incursões a locais que lhe despertavam bastante mais interesse. Ia então “às lojas, aos antiquários, ver se encontrava peças que mais ninguém tinha cá em Portugal”.
De casa para o Museu

Durante anos juntou peças em casa: “tinha um cão que ficava triste cada vez que eu trazia mais um brinquedo. Ficava a olhar para mim como se pensasse: este tipo é louco, um dia já não cabe mais. Tinha a casa de banho com barcos… parecia uma casa de doidos”, conta o engenheiro que, sendo sócio de clubes internacionais, tinha pedidos constantes de pessoas que pretendiam ver a colecção.
“O museu, as visitas guiadas, começaram em casa”, diz. “Uma das minhas filhas, professora de liceu, trazia os alunos. Depois eram as amigas que diziam: eu também queria. Até que um dia, perdi a cabeça e achei que tinha de fazer qualquer coisa.” O que fez o coleccionador “perder a cabeça” foi o facto de uma senhora francesa lhe pedir para levar um grupo de amigas para ver a colecção. Com a solicitude habitual, Arbués Moreira combinou um dia para a visita. Perante o atraso na hora, pediu ao filho que verificasse se havia alguém na rua, à espera: “ «Oh pai, está um autocarro cheio de gente lá em baixo!» Eram quarenta e tal senhoras. Impraticável, tantas pessoas para verem a casa, porque tinham mesmo de ver a casa. Estavam por todo o lado!” Nessa altura decidiu agir.
Se antes do casamento Ana Moreira não se interessava excepcionalmente por brinquedos, o marido “era tão interessado que ela não teve outra hipótese”. E foi já a dois que começaram a procurar um espaço que conseguisse albergar toda a colecção. A câmara Municipal de Évora fizera-lhes um convite mas a distância levou-os a declinar e a pensar num local mais próximo de Lisboa, onde pudessem estar sempre presentes. João sempre gostara muito de Sintra e resolveu escrever à câmara propondo-lhe a abertura de um museu. A proposta foi aceite e um espaço cedido mas, diz Ana Moreira, “era uma área muito pequena”.
Durante uma visita, Edite Estrela, ainda candidata à vereação, considerou que a colecção era demasiado importante para a vila, merecendo ser exibida num espaço maior. Pouco tempo após a sua eleição, a então presidente da câmara propôs fazer obras no antigo quartel dos bombeiros da vila e passar para aí todo o espólio. Aceite o novo espaço, é altura de mudanças. Por essa altura Arbués Moreira sofre um acidente vascular cerebral (AVC) e a sua memória ressente-se mas, estranhamente, sobre os seus brinquedos ele continua a saber tudo. Conta Ana Moreira que “a montagem do novo espaço foi toda assistida por ele. Na cadeira de rodas, até às 3 da manhã, com amigos e família a ajudar, dizia: este é aqui, aquele é com aqueloutro. Era ele quem sabia tudo.”
Com a simplicidade que o caracteriza, o coleccionador afirma: “sei o porquê de cada brinquedo que tenho”. E disso podemos nós atestar. Uma visita ao Museu, guiada e comentada por Arbués Moreira, é um acréscimo para a cultura geral de cada um. Tal como dizia o professor do miúdo, os brinquedos “representam a época em que são feitos”, e João usa de tal paixão na narrativa dos seus conhecimentos que o visitante é transportado na história e naturalmente convidado a entender a sociedade da altura.
Diz este homem que “os brinquedos não nascem por acaso, e os motivos do seu aparecimento interessam-me imenso”. Foi precisamente esta sua curiosidade sobre as peças que possui que o levou a procurar o motivo porque os brinquedos de folha ou madeira fabricados em Portugal eram habitualmente tão coloridos. Afinal, o que poderia pensar-se ser uma preocupação com o desenvolvimento perceptivo da criança, não passa de uma questão económica: “o fabricante deslocava-se junto dos fornecedores de tintas e comprava, a um preço mais baixo, as sobras da fábrica” que eram habitualmente as cores fortes.
Todos estes conhecimentos acabam por ser partilhados entre coleccionadores que mantm entre si uma rivalidade que Arbués Moreira classifica como saudável. “Ajudamo-nos todos uns aos outros”, diz, enquanto sorri perante a recordação das primeiras mostras de brinquedos em Lisboa, efectuadas num restaurante. “Depois do jantar, todos nós, alguns já velhotes, começávamos a abrir as malas, a tirar carrinhos, brinquedinhos, a discutir, e as pessoas admiradas, sem fazerem a mínima ideia do que se passava”. O coleccionador delicia-se com as situações provocadas por esta paixão. “A última vez que fui a Londres a uma dessas feiras era num hotel grande, com uns corredores enormes”, conta. “Ia no elevador com mais algumas pessoas que estavam hospedadas no hotel e entrou um americano com uma galinha de brincar que cacarejava e punha um ovo. As pessoas olhavam admiradas, mas o interessante foi quando chegámos ao 11º andar: os corredores estavam cheios de pessoas, algumas já com alguma idade, entretidas com brinquedinhos, no chão. Uma das senhoras olhou para mim e perguntou: «I’m in a hotel?»” Ri-se: “adoro estas coisas”.

Como se faz uma colecção

Com um público constituído por 52% de crianças e 48% de adultos, o Museu do Brinquedo tem patentes ao público cerca de 40.000 peças. Por falta de espaço, longe dos olhos dos visitantes, nas reservas estão mais 20.000. O critério escolhido para a exibição foi “o de expor aqueles que melhor mostram a história através do brinquedo”, explica Ana Moreira.
Incansável na procura de novas peças, sempre que se desloca ao estrangeiro Arbués Moreira tenta trazer mais um bocadinho de história para o seu Museu. Foi assim que, na Síria, lhe foram oferecidos, por um antiquário árabe, brinquedos romanos com dois mil anos. Também os amigos ajudam na demanda e a encontrar as mais almejadas peças para aumento do espólio. Sim, porque há brinquedos que, e Arbués Moreira não sabe explicar, “parece que todo o meu horizonte fica ali...eu preciso daquela peça”. Talvez o melhor exemplo deste estado de espírito seja um Ferrari, brinquedo muito raro, que a fábrica mandava fazer para oferecer aos seus melhores clientes. Conhecedor da vontade do coleccionador de possuir um destes exemplares, um amigo telefonou avisando-o de estar uma dessas peças à venda num antiquário em Milão. Arbués Moreira não perdeu tempo e no dia seguinte aterrou em Itália. Sobre o custo da peça fala como um menino envergonhado: “não posso dizer, foi uma fortuna. De tal maneira que a minha mulher, quando lhe disse o preço ao telefone, me perguntou: «compraste um Ferrari verdadeiro ou uma miniatura?» Os coleccionadores perdem a cabeça. Eu às vezes perco a cabeça”, diz, com um sorriso consciente mas garoto nos olhos.
Porém, não é apenas destas pequenas loucuras se tem vindo a constituir o espólio do Museu do Brinquedo. Muitas ofertas aqui chegam, sobretudo de bonecas, cujo conjunto faz as delícias essencialmente das meninas. Perante a estranheza de tão completa colecção levada a cabo por um homem, Arbués Moreira conta que, além das ofertas, grande parte dela provém das incursões às casas das suas próprias tias: ”Ia lá almoçar e, a seguir, ia ao sótão. A minha mulher costuma dizer que eu sou como os cães de caça. Olho para as malas e digo: «aquela tem brinquedos»“. E tinham, normalmente bonecas que, juntamente com outros brinquedos tradicionalmente femininos, hoje preenchem o terceiro piso do edifício.
Não é fácil enumerar todos os tipos de brinquedos que povoam o espaço. São três andares capazes de pôr a miudagem a sonhar. Desde os já mencionados brinquedos com dois mil anos ao recente astronauta, filhos, pais e netos encontram, seguramente, um brinquedo capaz de lhe prender a atenção.
Desta diversidade nascem pequenas histórias, como a de um judeu que se mostrou incapaz de conter as lágrimas ao reconhecer os soldadinhos iguais aos que ele próprio teria pintado durante a sua prisão nos campos de concentração nazis. Mais divertida, a conversa entre um casal, frente aos fogões de lata, e que Arbués Moreira recorda, divertido: “Oh António, lembras-te do que fazíamos com estes fogões? Lembro, tu tinhas a mania dos perus e, como não cabiam no forno, obrigavas-me a matar pardais e a depená-los para os assar no forno, a fingir que eram perus.” Depois também há aquelas pessoas que só tiveram um brinquedo na vida, feito por eles próprios, e que se emocionam ao vê-lo hoje colocado na parede de um museu.
A tudo isto assiste Arbués Moreira, o homem que considera os computadores e as consolas de jogos como o brinquedo mais representativo da época actual mas que fica horrorizado quando ouve os netos, à frente de um videojogo: “oh pá, tu és estúpido! Então estás a chocar com outro carro! Se atropelasses a velhinha com o bebé tinhas ganho mais pontos! isto põe-me louco”, diz. “Tento desviar-lhes a atenção para outras coisas”. E assuntos de interesse não lhe faltam.
É ternamente divertido este homem de 69 anos que, na sua cadeira de rodas, quando as crianças de visita ao Museu lhe perguntam porque não anda, responde com ar simpático: “Não ando porque não me dão corda.” E os miúdos, acabados de ver os brinquedos que se movimentam a corda, interrogam as professoras: “porque é que não dão corda àquele senhor?”. “Passo o dia divertido. Isso é que é importante”, remata.
Notícias Magazine #744 / 27.08.2006

1 comentário:

Anónimo disse...

Tenho aprendido e reflectido muito sobre tudo o que aqui escreves. Tenho pena que poucas pessoas comentem, se calhar há outros blogs com menos para pensar (porque pensar dá trabalho).
Beijo grande e continua a escrever.