setembro 01, 2006

serras de sal


Já lhe chamaram “ouro branco”. Constituía na altura a principal riqueza do concelho e participar na sua extracção era das poucas profissões possíveis para os homens de Alcochete. No verão, quando os campos pediam menos cuidados, eles encaminhavam-se para alguma das muitas marinhas que a região, encostada ao Tejo, oferecia. Hoje só as salinas do Brito se mantêm em laboração, fruto da persistente vontade de manter viva a tradição.

A estrada é silenciosa, àquela hora. Alcochete ainda dorme, envolta pelo brilho típico das povoações ribeirinhas. Seguindo um pouco para oeste, perde-se de vista o rio e o cheiro a maresia. Às portas do Samouco, uma quase imperceptível placa de madeira indica a direcção do Museu do Sal.
A via, sinuosa, tem a largura para que passe apenas uma camioneta, não mais. Ervas altas e sombras de construções abandonadas marcam a paisagem deserta. Repentinamente a estrada alarga em bermas de terra batida. É ali o Museu do Sal vivo e dinâmico, situado nas salinas pertença da Fundação João Gonçalves Júnior (FJGJ).
O portão já está aberto. Do interior do armazém saem vozes masculinas. Fala-se das notícias do dia anterior enquanto se espera um laivo de luz. Quando o céu se torna menos escuro e já é possível distinguir as silhuetas dos homens, alguém dá voz de partida: “bem, vamos lá?". Chegaram a ultrapassar as cinco dezenas, hoje contam-se num olhar: oito homens. “Muito deste sal não vou sequer rapá-lo, não tenho pessoal que chegue”, diz Manuel Nicolau, o marnoteiro das salinas do Brito.
Passo firme, encaminham-se cada um para a sua ocupação. As pás ficaram na talharia, desde o dia anterior. É necessário ver a graduação da água, transpô-la do viveiro para a caldeira de moirar. Pequenos montes de sal reflectem o tom róseo do amanhecer, os pés deslocam-se cuidadosa e lentamente para não estragar o cozimento do terreno. Enquanto a máquina de fresar percorre o talho, partindo o sal, preparando-o para a rapadura, retiram-se as impurezas para as barachas e rapa-se.

O princípio do sal


A extracção do sal já foi a actividade com maior peso na economia da região. Como começou não se sabe ao certo. De seguro, apenas as narrativas de cronistas dos últimos reinados da dinastia de Borgonha que mencionam, já nessa época, a exportação de sal, levando mesmo alguns a pensar que foram as condições excepcionais para a safra do mineral que originaram o nascimento da vila de Alcochete. Em meados do séc. XX, a instalação de fábricas de secagem de bacalhau da Terra Nova deram o maior incremento à actividade, chegando Alcochete a ser o maior centro nacional de secagem e preparação de bacalhau.
Estima-se que nessa altura a safra do sal empregasse cerca de 1200 alcochetanos que se dividiam entre a agricultura, no Inverno, e o trabalho nas salinas, no Verão. Aliado ao trabalho nas marinhas, estavam os carregos de bacalhau e sal de e para as fragatas que faziam o transporte entre a vila e os barcos atracados em Lisboa. Não é difícil encontrar em Alcochete quem, com idade superior a 50 anos, não recorde esses tempos que, afirmam, “eram complicados”. É que, apesar de depender dos salineiros o bom resultado da safra, durante quase uma década os seus ordenados mantiveram-se nos trinta escudos de jorna diária, embora o preço do moio de sal tivesse subido, no mesmo período, dos cinquenta para os oitocentos escudos, motivo pelo qual os salineiros de Aveiro e de Setúbal ganhavam quase o dobro do que auferiam os homens da beira-Tejo. Esta situação e o facto de os proprietários das salinas, com o pretexto das quebras havidas entre as correrias dos trabalhadores em direcção às barachas, pretenderem gradualmente aumentar o número de canastras por moio de quinze para dezoito, acabou por se tornar insustentável para o salineiro que, conta feita, no fim da semana tinha dado um dia de trabalho ao patrão. Em 1957, o descontentamento estava instalado, degenerando numa paralisação geral que a maior parte dos patrões se recusaram a resolver com negociações, antes apelando à intervenção da polícia. Como relembra João, filho de um salineiro, “alguns andaram fugidos dias e noites pela charneca e não foram apanhados. Outros foram presos, levados para o Aljube, e lá estiveram uma série de dias.” Esses homens, com o estigma de grevistas, não voltaram a ser aceites em qualquer salina. “Foram tempos difíceis”, continua João, “As famílias sobreviveram, com a ajuda da igreja, do padre Francisco Ferreira, que lhes dava alguns bens essenciais”.
Quando as coisas acalmaram, dar algumas indústrias ao concelho tornou-se quase ponto de honra para uns tantos homens influentes. Alcochete viu então nascer a Firestone, a Fábrica do Alumínio, e a Ormis, hoje Crown Cork & Seal Portugal que, conta José Navarro, o presidente da FJGJ, vieram “oferecer às pessoas uma vida mais estabilizada. Trabalhar numa fábrica durante doze meses é diferente de ter um emprego sazonal numa salina”.
Desses tempos fala-nos também a memória octogenária de Manuel Nicolau: “antigamente isto era uma terra de miséria. Após a greve, ao pé da ponte do cais, havia um mastro de um barco para onde os homens iam logo de manhãzinha, à espera que os chamassem para algum trabalho. Passavam dias sem ganhar um tostão.” Quando surgiram as fábricas, a escolha não foi difícil: “pagavam bons ordenados e deram emprego a todo o pessoal de Alcochete”.

Com falta de mão-de-obra, o declínio da exploração do sal anunciava-se lentamente. A este factor vieram juntar-se a concorrência estrangeira do mineral colocado no mercado a preços mais baixos, o encerramento das salgas de bacalhau na região e a decadência da indústria conserveira nacional.
Neste contexto, não parece pois estranho que as salinas a sul do Tejo tenham atingido o estado de abandono hoje observável. Contudo, e como diz José Navarro, presidente da FJGJ de 2002 a 2005, “a safra do sal, pela grande importância económica e cultural que teve para Alcochete, deve ser entendida como uma tradição”. E é aqui que surge o protocolo assinado entre a FJGJ e a câmara municipal de Alcochete no sentido de criar o Museu do Sal que constitui não apenas um depósito de memórias mas antes uma comemoração viva e dinâmica ao que foi a actividade na região. De inconveniente, apenas o facto de estar mais vocacionado para visitas de grupo
Porém, no que toca à precariedade do trabalho dos salineiros, pouco mudou através dos tempos. Os seus empregos continuam a ser sazonais e sem qualquer tipo de contrato que os obrigue ou que os proteja. Ainda nas palavras de José Navarro, “Podíamos fazer um contrato de três meses mas as pessoas não estão disponíveis para trabalhar três meses”. Se é um facto que, das várias visitas às salinas, quase sempre havia desaparecido uma cara para dar lugar a outra, parece também importante dizer que, embora a faina esteja parcialmente mecanizada e o salineiro já não transporte às costas as canastras de sal, os horários e o trabalho necessário demonstram-se duros para a remuneração de quinze euros diários, uma vez que continuam a receber à jorna.
Das 6:00 às 13:00, estes homens andam no cimo das serras de sal ou dentro de água salgada, sob o sol do verão reflectido pela brancura dos cristais. Segundo os escritos, a temperatura no interior dos talhos chega a atingir os 50º. Fernando, de pele tisnada, brinca com a situação “nem na praia, eu conseguia um bronze destes”. A nudez dos pés foi, na maior parte dos casos, substituída por calçado carcomido pela salinidade da talharia porque, como diz Jorge, “qualquer ferida feita pelo sal dói e demora a sarar, por isso evitamo-las”. A partir de Setembro o horário amansa e a entrada faz-se às 7:00, sendo já possível trabalhar sob o sol mais fraco, até às 16:00. Mas com as chuvas, lá para meados ou fins de Outubro, dependendo da graça dos céus, a sombra da desocupação volta à vida destes homens, cujas jornas não deram para amealhar sobrevivência sequer para os primeiros meses de desemprego. Em Maio regressam, talvez os mesmos, entre os mais velhos, e para complemento de reformas, outros, quando mais novos e à procura de uma vida mais estável.
Mas, apesar de todas as dificuldades, a FJGJ e a câmara Municipal de Alcochete não baixam os braços e prosseguem. No sentido de fomentar a continuidade das salinas, e apesar de a sua existência se limitar ainda ao papel, ponderam-se dois projectos. Um com vista à estão neste momento a ser efectuadas análises com vista a permitir a criação de uma marca certificada de sal biológico e, o segundo, que se prende com a . Ainda na sequência de manutenção dos costumes, está a ser estudado o desenvolvimento de um projecto de agricultura, também ela biológica, retomando a fava dos muros, tradicional na região pelo seu sabor característico.
De passo em passo, a tradição mantém-se. De inconveniente, o facto de as visitas ao Museu do Sal estarem absolutamente dependentes dos Serviços Educativos da Câmara e apenas vocacionadas para grupos, em horário laboral. Mas, se lhe apetecer arriscar, durante os meses de Verão, de segunda a sexta, das 6:00 às 13:00, as portas estão abertas.

Pãezinhos de sal

Os pãezinhos de sal podem ser vistos no Museu do Sal e no Museu Municipal de Alcochete mas sobre a origem ninguém sabe esclarecer. Manuel Nicolau, o último marnoteiro no activo da região, apenas se recorda de sempre os ter visto fazer. Tal como os mestres de marinha de antigamente, tem um jogo de formas que também ele utiliza. As formas, que podem ter um aspecto triangular ou quadrangular, eram feitas de bocados de madeira com desenhos invertidos feitos a lápis, esculpidos a canivete e, posteriormente, alisados com cacos de vidro.
Escorrido o sal de embate, ele é calcado dentro das formas que, depois de abertas, permitem observar nos pãezinhos a meticulosidade com que foram elaboradas.


Glossário:
Baracha – muros de defesa, construídos com o desaterro;
Caldeira de moirar – reservatório que pode servir de reserva para os talhos ou produzir sal. Se a água não tiver graduação (salsugem) bastante, serve como reserva;
Cozimento – tapete de algas. Cobre apenas as caldeiras de moirar e a talharia;
Marnoteiro – operário encarregue da marinha;
Moio – cerca de 840 litros de sal, 15 canastras a 56 litros cada;
Rapar – puxar e juntar o sal em pequenos montes para escorrer antes de ser colocado na serra;
Rasa – primeira colheita que se efectua debaixo de uma camada de água, com rodos;
Sal de embate – cristaliza nas águas remexidas pelo vento (móveis), sendo sempre sal fino, macio e com mais goma o que, quando utilizado no fabrico dos pãezinhos de sal, permite que estes não se desfaçam;
Serra – é formada pelo sal das diversas rasas, antigamente transportado à cabeça em canastras. Em Alcochete é coberta com junco e palha-carga, também chamada palha de paul;
Talharia – conjunto dos vários talhos;
Talho – rectângulo de terreno escavado onde o sal cristaliza;
Viveiro – encontra-se na parte mais elevada da marinha de forma a poder encher-se na preia-mar e despejar na baixa-mar. Comunica com o Tejo por uma porta de água aberta na baracha, que se abre e fecha através de um postigo de madeira. Tem capacidade para alimentar a marinha por quinze dias ou um mês.


Notícias Magazine # 740 - 30 .07.2006

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