setembro 01, 2006

avós da modernidade

Numa sociedade em constante crescimento tecnológico, elas vêm falar da natureza e essencialmente das capacidades inatas do sexo feminino. A palavra que as designa provém etimologicamente do grego e significa “a mulher que ajuda”. Doulas, aquelas que se dispõem a tornar a gravidez e o parto, mais do que actos médicos, no reencontro da força humana contida na mulher. Elas são as avós da modernidade no apoio que dão às mães, futuras e recentes.

Há mulheres que vêem no parto momentos dolorosos e difíceis de suportar. Pelo contrário, outras encontram nele a continuação do acto de amor que lhe deu origem, nove meses atrás. É inegável que cada uma terá a sua forma de sentir o momento do nascimento dos seus filhos, influenciadas pelos mais diversos factores. Porém é notório que quando a sociedade tenta retratar o momento do parto, nomeadamente através do cinema, fá-lo frequentemente recorrendo aos gritos de dor incontida. Visualmente, a narração é feita através de movimentações nervosas mas imperativas da equipa médica e expressão agitada da parturiente. Por outro lado, se pensarmos num sentido mais restrito, limitando a comunicação às narrativas das experiências pessoais de cada mulher, são constantes as histórias de momentos dolorosamente suportados.
Se há alguns anos a sociedade estava estruturada de forma a poder facultar à grávida todo um apoio baseado na experiência de mulheres mais velhas, capazes de dar alento à futura mãe, essencialmente o fenómeno urbano fez com que essa organização se desintegrasse dando lugar a um sistema edificado sobre práticas muito mais tecnológicas. O acto médico passou a sobrepor-se à naturalidade do estado de gravidez e também para o momento do parto a medicina já encontrou fáceis e práticas soluções. Partos induzidos, epidurais e cesarianas são frequentes nos nossos hospitais e naturalmente aceites por grande parte das grávidas. Convenhamos que é compreensível – entre tanta narrativa medonha, é difícil resistir imune à sensação de sofrimento generalizado. Porém, se esta é a tendência da sociedade moderna, é também o que as doulas pretendem inverter, prestando à futura mãe todo um apoio, baseado em experiência e informação fundamentada em evidências científicas.

O nascimento das doulas em Portugal

A Associação Doulas de Portugal (ADP) nasce de uma situação de fragilidade extrema sentida por Luísa Condeço. Era a sua primeira gravidez e considerava-se uma pessoa informada. Como muitas das mulheres modernas, fez preparação para o parto, leu revistas, livros. Mensalmente ia às consultas de rotina, fez todas as ecografias que o médico exigiu, permitiu que este lhe marcasse uma data para indução do parto. “Foi uma violência, o que fiz”, comenta. “O meu filho não estava preparado para nascer”. A esta violência, que ela hoje reconhece, juntou-se uma cesariana, única saída possível para um trabalho de parto que acabou por se precipitar da forma menos desejada, em que mãe e filho correram riscos de vida. A quantas mulheres consegue corresponder este retrato?
Luísa sentia-se incapaz, maltratada, culpada por ter aceite as sugestões do médico, agido de forma errada. Com uma depressão pós parto em mãos, pegou no filho, numa mala com roupa e foi procurar a companhia de Carla Guiomar. Mulher, amiga, confidente, também ela mãe e capaz de entender tudo aquilo porque Luísa estava a passar, Carla tinha acabado de receber um livro, em inglês, que falava sobre parto humanizado. Luísa sorveu-lhe as letras e no final ficou-lhe um desejo: traduzi-lo e divulgá-lo. Nenhuma mulher deveria passar por aquilo que ela mesma acabara de experimentar e, acredita, a informação é o melhor meio de lutar contra os erros instituídos.
Começou por criar a Companhia das Mães, através da qual recebia mulheres grávidas, com quem conversava e trocava experiências. Ligou-se à Internet, entrou em listas de discussão, continuou a ler e a aprofundar conhecimentos. Michel Odent, obstetra e cirurgião, o autor do livro que lhe despoletara a certeza de que a forma como a sua gravidez decorrera e culminara não era a única possível, continuava a ser a sua principal fonte de convicção. Assim que teve oportunidade, e levada por Carla Guiomar, foi a Londres fazer um curso com “o Mestre” e Liliana Lammers. Regressaram cada vez mais seguras das suas certezas sobre a importância da atitude da mulher durante a gravidez e parto e da desnecessidade de muitos dos actos médicos a que esta é submetida durante a gestação e puerpério. Tamanha convicção precisava de um escape, de actuação. Criaram um blog, começaram a ser contactadas por mulheres que pretendiam mais informação, nasceu uma lista de discussão na internet. Estava lançado o embrião para a ADP que, desde Setembro de 2004, tem vindo a crescer, afirmando lentamente a sua luta pela humanização do parto e pelo direito da mulher escolher de forma consciente que tipo de nascimento quer para o seu filho. E por humanização do parto, seja ele domiciliário ou hospitalar, entende-se que este se processe de uma forma segura, isenta de riscos desnecessários, mas onde também estejam ausentes as intervenções médicas supérfluas que, instituídas mais por uma questão de hábito do que por necessidade, em nada beneficiam a mãe ou o filho.

Mudar a forma como se nasce

Em países como Inglaterra e Brasil a actividade das doulas é já sobejamente reconhecida como profissão. Em Portugal as coisas decorrem ainda lentamente. Luísa Condeço e Carla Guiomar foram as primeiras a abraçar e aplicar o conceito de doula por terras lusas. Com a criação da ADP, sempre acompanhadas e apoiadas por Michel Odent, desenvolveram uma estrutura capaz de dar formação a pessoas interessadas em exercer a actividade, alargando a sua actuação a todo o país. Quando alguém pretende obter o serviço de uma doula na sua área de residência, é feito um primeiro contacto para a ADP que faculta uma lista de pessoas, devidamente atestadas, com as quais é possível marcar um primeiro encontro. Esta primeira reunião, sempre gratuita, tem por finalidade permitir que seja encontrada a doula com quem a futura mãe sinta maior nível de empatia, essencial para que o trabalho posterior resulte. Hoje, a nível nacional, o número de mulheres certificadas como doulas já ascende a cinquenta e, apesar do seu crescimento enquanto grupo de actividade, os princípios pelos quais se regem mantêm-se inalteráveis. Baseando-se em evidências científicas e nas orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), transmitem à grávida toda a informação de que esta sinta necessidade. Como afirma Luísa Condeço, “uma doula nunca deixa uma mãe com dúvidas. Pode até não saber imediatamente a resposta para a questão que lhe é colocada, mas vai à procura, utilizando todas as fontes que tem disponíveis”. E estas fontes, além de documentos fidedignos, incluem médicos, psicólogos entre outros profissionais ligados à área da saúde.
Manter a mulher num estado de serenidade absoluta é o ponto fulcral da actuação das doulas que evitam e tentam desmistificar todas as situações que possam ser causadoras de ansiedade, estado que, esclarece Luísa, “leva a que a futura mãe liberte, entre outras, uma hormona, o cortisol, inibidora do desenvolvimento fetal”. Ela acredita profundamente “que o período pré-natal seja muito mental. Trata-se de um processo fisiológico, tal como é a digestão. Nós não pensamos na digestão, confiamos que ela aconteça. De vez em quando pode haver qualquer coisa a correr mal. A gravidez e o parto são processos mais elaborados do que uma digestão mas igualmente fisiológicos”.
Este pressuposto de naturalidade do estado de gestação trata-se do ponto de partida para o trabalho das doulas que acreditam na capacidade inata da mulher parir, afinal “fazemo-lo há milhares de anos”, afirma Luísa. Não pretendem retirar importância ao acto médico e menos ainda substituírem-se aos clínicos ou a qualquer profissional de saúde mas exortam as mulheres a ouvir a linguagem do seu próprio corpo, a confiarem mais em si mesmas, na sua intuição, a questionarem os hábitos instituídos que se mostram verdadeiras situações de violência para mãe e filho. Entre eles estão a rapagem da zona púbica da mulher, os clisteres que lhe são ministrados antes do parto, a episiotomia, a impossibilidade de a parturiente se movimentar livremente, a obrigatoriedade de parir deitada e até a monitorização constante através da cardiotocografia (CTG).
Todos estes actos vão contra as necessidades básicas da mulher que afinal de contas são mínimas. “Para dar à luz, a mulher não necessita mais do que uma cama baixa, um ambiente calmo, privacidade, luz suave e liberdade de movimentos”, afirma Luísa que explica o motivo de desacordo com os actos implícitos à maior parte dos partos ocorridos em ambiente hospitalar: “a rapagem mais não é do que uma forma de facilitar que seja feita a costura após a episiotomia que, por sua vez, habitualmente só é necessária por a mulher parir na posição horizontal, aquela que é mais propícia à equipa médica.” No que diz respeito aos clisteres ministrados, eles tornam-se supérfluos se não for imposto à parturiente que se deite, diminuindo assim substancialmente os riscos de sujar a equipa médica. Além disso, o corpo da mulher começa a preparar-se para o trabalho de parto com a antecedência de alguns dias, processando-se uma depuração natural dos intestinos. Quanto à ligação ao CTG, diz Luísa, “uma mãe sabe naturalmente que o seu bebé está vivo porque se mexe, mas não tem habitualmente consciência dos batimentos cardíacos dado que não os ouve. Na altura do trabalho de parto, ligada ao CTG, ela está constantemente a ouvi-los, tornam-se reais, entram na zona do neocortex, que é a zonal racional do cérebro, e aquela mulher tem a adrenalina sempre em cima.” E nestas coisas de hormonas é importante ter em conta alguns conceitos básicos. Ao libertar adrenalina, o corpo inibe-se de produzir oxitocina que, não chegando ao hipotálamo, limita também a produção de endorcinas, as anestesias naturais, tornando o trabalho de parto mais doloroso.
Ainda no campo das hormonas, e tentando explicar como um único procedimento desnecessário pode trazer por arrasto a urgência de outros anteriormente supérfluos, Luísa Condeço salienta o facto de, nos casos de indução do parto, ser ministrada à parturiente oxitocina artificial. Perante o facto de o hipotálamo se encontrar naturalmente protegido contra químicos artificiais, este tipo de oxitocina não penetra na zona do neocortex que, não sendo estimulado, também não liberta as desejáveis endorcinas. Daqui nasce muitas vezes a necessidade que a parturiente sente da aplicação da epidural que, por sua vez, retira à mulher sensibilidade no momento da expulsão, acabando por dar fundamento à episiotomia.
Também o elevado número de cesarianas praticadas em Portugal é questionado pelas doulas que consideram ser muitas delas desnecessárias. Afinal a cesariana é um acto cirúrgico apenas justificável por situações de risco para a mãe ou filho. Outra situação, esta mais passível de ser contestada, está na relação directa entre a percentagem de cesarianas efectuadas e os índices de criminalidade. Michel Odent costuma referenciá-lo, conta Luísa: “em tom de brincadeira ele diz que, quando viaja para determinado país e quer saber se pode sair à noite, vai analisar as taxas de cesarianas efectuadas nesse território nos últimos 20 anos”. Se o facto pode merecer alguns sorrisos, a realidade é que em cidades como o Rio de Janeiro, onde a criminalidade está em crescendo, as taxas de cesariana são altíssimas, ao contrário, por exemplo, de Amesterdão que tende cada vez mais para o parto humanizado, com um mínimo indispensável de intervenções cirúrgicas.
Apesar da autenticidade desta analogia estar por comprovar, cabe aqui a provocação de querer saber se pretendem mudar a sociedade. É Lia, também ela doula e mãe de um filho, quem responde “a sociedade não, só a maneira como se nasce.” E nada de confusões, não se pense que defendem apenas o parto natural. Como afirma Carla Guiomar, “parto humanizado é aquele que respeita a mulher como protagonista desse evento, como alguém com o direito humano de escolher em consciência a forma como quer trazer os seus filhos ao mundo.” Além do mais, acredita que “nenhuma mulher vai escolher conscientemente uma forma de ter uma criança que não considere a mais segura para si e para o seu filho. O que acontece é que muitas vezes as aparentes escolhas das mulheres não foram realmente feitas por elas ou, pelo menos, não foram feitas em posse da melhor informação.” Neste sentido, as doulas não se limitam a contestar pelo simples acto da refutação: “aquilo em que devemos apostar é na informação, na educação, na consciencialização e auto-responsabilização das mulheres, acreditando que elas vão fazer a melhor escolha para o seu caso. No final a opção é de cada mulher e isso tem que ser respeitado. Uma doula apoia sempre uma decisão tomada em consciência e não faz qualquer julgamento de valor”.

Passos curtos mas seguros

O facto de, na sua actuação, se basearem em evidências científicas, estudos elaborados por investigadores, faz com que sintam a certeza de caminharem na direcção correcta. Aos que as acusam de “prosélitas do passado” por defenderem a pacatez do parto domiciliar, para muitos anterior causa de mortalidade materno-infantil, e apontarem como desnecessários a maioria dos actos médicos executados durante o período de parto, Luísa Condeço responde que “boa parte dessas mortes se deviam à má alimentação, à total ausência de água potável, saneamento básico e medidas simples de higiene, entre outros. A mortalidade baixou exactamente porque todos estes aspectos da vida humana foram implementados e melhorados e não simplesmente porque o local do parto passou de casa para o hospital. Isto é uma evidência científica”.
Nas palavras de Rita Correia, doula e mãe de 5 filhos, “o que tem surgido no nosso país é um número crescente de mulheres conscientes e seguras da sua condição, que preferem ficar no aconchego das suas casas na altura simbólica e absolutamente marcante do nascimento dos seus filhos.” Para esta doula, “essas mulheres têm o direito a serem respeitadas nas suas decisões conscientes, e acompanhadas dignamente por uma enfermeira ou um médico obstetras, se assim o entenderem, que encare a sua opção com a mesma naturalidade com que olham as mulheres que vão ao hospital ter os seus filhos.”
É pois pelo direito à informação generalizada, partindo do próprio corpo clínico, que estas mulheres se batem. Não defendem, como muitos erradamente pensam, uma total desmedicalização do parto e um absoluto "retorno às origens" do nascer em casa. Advogam, isso sim, que a mulher tem há milhares de anos uma capacidade inata, que é parir. Tendo esta aptidão vindo a ser ignorada sob o estonteante crescimento tecnológico da sociedade, torna-se então necessário que o género feminino reaprenda a escutar e interpretar o seu corpo, sobretudo no que diz respeito à maternidade.
"O acto de parir é natural e instintivo"

Deolinda Major é enfermeira obstetra e presta serviço nos hospitais do Barreiro, Vila Franca de Xira e Amadora-Sintra. Com toda a sua equipa, ela é apontada como um exemplo de profissional que actua de acordo com os pressupostos de um parto humanizado.Prefere não emitir opinião sobre o trabalho das doulas dado que, como diz, “apenas assisti uma parturiente que vinha acompanhada por uma doula”. Contudo, e apesar do desconhecimento sobre as convicções destas mulheres, a convergência de ideias é notória quando afirma que “o acto de parir é natural e instintivo”, ou quando menciona o facto de, na sala de partos, baixar o seu tom de voz e trabalhar na obscuridade por achar que “as mulheres ficam muito mais calmas”. Para esta enfermeira, especializada em obstetrícia há 17 anos, “não é suficiente humanizarmos os espaços físicos onde as crianças nascem, é necessário que humanizemos também as equipas que lidam com nascimentos. E quando falo em humanizar é dar oportunidade à mulher de se manifestar como ela bem entender.” De tal forma que já teve situações em que as mulheres quiseram dar à luz de cócoras. A influência que até hoje transporta para a sua profissão vem-lhe da sua própria experiência como parturiente, aquando do nascimento do seu primeiro filho: “fui mãe muito jovem e fui muito bem tratada. Não fiquei nada traumatizada, porque a enfermeira que me assistiu foi extremamente carinhosa. Talvez por isso ela continue a ser o meu ponto de referência na profissão”.

Notícias Magazine # 735 - 25.07.2006

4 comentários:

Luisa Condeço disse...

Eu li na altura mas está tão bom que não resisti a ler mais uma vez. As fotos estavam muito boas tambem. Parbens. Bet

Anónimo disse...

Olá
Já tinha lido na Notícias Magazine mas assim que vi o seu email na lista das doulas não resisti a visitá-la e voltar a ler tão bom artigo.
Espero que consiga fazer a reportagem pois era um grande passo na questão de desmistificar o parto domiciliar.
beijinho e mais uma vez parabéns,
Cristina

Anónimo disse...

Olá!
Eu sou enfermeira e quero ser doula! Um sonho que um dia espero conseguir realizar mesmo porque desejo ser mãe e gostaria muito de ter também nessa altura uma doula para cuidar de mim e do meu bebé como uma avó faria. Avós que já não tenho mas guardo com carinho no meu coração. As duas foram parideiras de muitos bebés, sózinhas e sempre em casa, de cócoras junto à cama, e com algumas dores que consideravam necessárias para parir (Elas diziam que as dores de dentes eram piores). Adorei o artigo e se me puder dar mais informações sobre esta associação em Portugal agradeço imenso. Beijinhos.

Anabela Oliveira disse...

http://www.doulasdeportugal.org