novembro 23, 2007

Lenine Rodrigues



É homem claro, directo, de sorriso tímido e simples. Fotografias não são muito com ele. Trabalho sim. Só aí se solta e se esquece da máquina fotográfica. Maquetista Naval, Lenine Rodrigues é um homem de artes. Usa o cinzel como usa o formão, o berbequim, como o pincel. O que for não importa. É arte, ele faz.

A sua relação com o Tejo vem desde que nasceu, numa travessa virada para o rio, há 62 anos, entre o casario do Barreiro. Desde cedo se habituou a ver passar fragatas, faluas, bateiras e catraios e desde pequeno se apaixonou por barcos à vela. “Ainda hoje, sou incapaz de ver passar um barco à vela e não parar, para o observar”, afirma Lenine Rodrigues, maquetista naval. Desde a madeira a metais nobres como a prata, este homem dedica-se a fazer réplicas dos barcos que sempre o encantaram. Teimosia, é uma das palavras que mais utiliza para definir a forma como consegue a perfeição dos seus trabalhos. Nós substituímo-la por persistência deste homem que fez o seu primeiro barco à vela ainda miúdo, de cascalheira, a casca castanha do pinheiro bravo, raspado sobre o cimento até lhe dar a forma que gostou de ver. Um pau e uma vela de papel, e corre a experimentar pô-lo a navegar na bacia de lavar as mãos. Foi com tristeza que viu o barquito adornar. Hoje sabe o motivo, que na altura não sabia: o mastro era excessivamente grande para o tamanho do barco. E foram precisamente os barcos à vela que se dedicou a reproduzir, à escala exacta, escolhida por si ou pelo cliente.

Entre França e Portugal

Em 1957 o pai imigra para França. Dois anos depois Lenine segue o mesmo caminho com a mãe. Se em Portugal já se tinha tornado aprendiz de carpinteiro, em França aprende o ofício de torneiro mecânico, trabalhando com “os três tornos: o vertical, o paralelo e o suspenso”. Chegou ao mais alto nível deste ofício, “era requisitado para trabalhar na França toda, inclusive na aeronáutica”. Entretanto, ao mesmo tempo, frequentava a escola ABC de Paris, uma “escola de artistas plásticos: desenho, pintura, desenho publicitário, tudo o que dizia respeito à arte”. Para onde ia levava o papel e os lápis. Fez o curso pelo amor que desde miúdo sentia pelas artes plásticas mas também porque lhe prometeram emprego no fim do estudo. A falência da firma que o empregaria veio a impossibilitar esse sonho e Lenine manteve o hobby a par com o seu ofício. Por motivos particulares, Lenine Rodrigues regressa a Portugal em 1976. Continua a ser torneiro mecânico e não tem dificuldades em obter trabalho mas a doença surge-lhe pela frente e viu-se impossibilitado de trabalhar durante 2 meses. Um pneumotorax impedia-o de fazer força. Disse para a mulher “é agora ou nunca”, referindo-se ao que até aí havia sido o seu hobby.

De auto didacta a maquetista naval

No início era um ilustre desconhecido que trabalhava para si mesmo. A oficina era dividida em duas partes, uma onde trabalhava como serralheiro, a outra onde dava azo à sua veia artística. Pintura, gravura, escultura, maquetismo, tudo lhe servia para se entreter. Um dia o seu hobby foi descoberto por dois amigos, um deles jornalista. Na semana seguinte um jornal do Barreiro falava de Lenine Rodrigues e do seu trabalho. Surgiram as primeiras encomendas para o núcleo naval do Museu de Almada e não parou mais.
A tal persistência e perfeição no que faz levam-no a não descurar qualquer pormenor e até os que não se vêem depois de acabada a peça, estão lá. Quando lhe perguntam porquê, se no fim não são visíveis, ele responde “mas vejo eu!”. É assim que cada barco tem beliches e toda a minúcia que lhes compete e cada modelo que faz é construído no tipo de madeira utilizado no original.

Um desafio vencido

Em 1998 Lenine Rodrigues aceita o desafio que lhe é colocado pela Joalharia Torres: fazer 13 miniaturas em prata. Trabalhar em prata é totalmente diferente de trabalhar madeira. Habituado a fazer os seus modelos em cavername, tal qual eles são construídos em tamanho natural e também através da prática que na gíria se chama o “pão com manteiga”, técnica que não perde valor, a prata obriga-o a martelar e moldar sobre um cepo: acerta de um lado, foge do outro. Mas “venci o desafio”, diz. As treze peças foram entregues e posteriormente expostas no Centro Comercial Colombo.
Afinal, o que é preciso para se ser um bom maquetista naval? “Para já, tem de se gostar daquilo que se faz. Tem de saber minimamente ler desenho naval e depois é cumprir à regra tudo aquilo que vem nos desenhos”. Dito assim parece simples, ao contrário de quando se olha para uma peça ainda em construção. Outra coisa de que Lenine Rodrigues sente necessidade é de se informar sobre a história do barco que está a construir. Autodidacta, os conhecimentos de carpintaria e de torneiro mecânico foram-lhe sempre úteis. “Para se poder ser torneiro mecânico temos de saber ler desenho, embora seja desenho mecânico. Quando se sabe é fácil compreender o desenho naval”, diz rematando: “e depois fui-me informando”.
Pintura, escultura, modelos em prata ou madeira, ourivesaria, gravação em básculas de espingardas, a tudo ele se dedica, desde que possa dar azo à sua imaginação e à sua habilidade manual.
Modesto, o facto de ter peças espalhadas por vários locais públicos e colecções particulares, entre as quais se contam a do rei Juan Carlos de Espanha, em nada lhe mudou a maneira de ser. “Não posso dizer que não sinto orgulho, mas continuo a ser a mesma pessoa que era quando me iniciei”.

Vega Mar & Aventuras #29 - Outubro/Novembro 2007

agosto 30, 2007

Desporto para todos



Esgrima, basquetebol ou ténis em cadeira de rodas, são modalidades que permitem a um deficiente motor praticar desporto como qualquer outra pessoa. O problema está na ainda pouca visibilidade de que usufruem. Quem as experimenta diz que tudo têm de positivo.

Para o Mestre Eugénio Roque, a História da esgrima confunde-se com a do ser humano: “a primeira vez que o homem pegou num osso ou num pau, para se defender ou para caçar, começou a esgrimir”. Sonhador e combativo, Eugénio Roque trouxe a esgrima artística para Portugal. Entre outros projectos, ainda no segredo dos deuses, faltava-lhe lançar a esgrima em cadeira de rodas no nosso país.
Já há muitos anos, quando Eugénio Roque era director da Federação Portuguesa de Esgrima (FPE), “tinha havido o desejo de criar a esgrima em cadeira de rodas. Acabou por não ser possível”. Porém, não desistiu: “um dia, consegui os apoios da Câmara Municipal de Cascais para comprar o equipamento necessário para fazer um curso de formação de monitores. Aí, fui ter outra vez com a FPE e com a Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes (FPDD) e disse: meus senhores, tenho estes meios e vamos fazer isto”. Em 2005 foi então possível reunir esforços e fazer o primeiro curso para treinadores e classificadores de esgrima em cadeira de rodas. Como resultado deste curso, neste momento Portugal tem 24 técnicos aptos a preparar esgrimistas em cadeiras de rodas, apesar de, por falta de atletas, ainda só ser praticado no Estoril, Quarteira e Amadora. Vila Nova de Gaia e Madeira serão provavelmente os próximos locais onde a esgrima em cadeira de rodas poderá vir a ser uma realidade.
“Uma coisa que eu lamento é haver poucos participantes”, queixa-se Henrique Ventura, de 46 anos, ex-campeão de motocross, hoje praticante de esgrima. Um acidente de viação deixou-o numa cadeira de rodas há 13 anos. “Se fôssemos mais, a competição seria maior”. Apesar disso, Henrique afirma: ”quando estamos a praticar esgrima, é como se estivéssemos normais. Naquela altura damos o nosso melhor. Não pensamos que estamos numa cadeira de rodas, que estamos limitados”.
Eugénio Roque confirma: “a esgrima é um desporto fabuloso para o atleta em cadeira de rodas. Está sentado numa cadeira igual, está à mesma distância e está a fazer os mesmos gestos que o outro. Depois é uma questão de perícia, de inteligência, de capacidade. Isso depende deles. Mas é extremamente interessante, porque eles não ficam nada diminuídos por não terem pernas. São iguais a qualquer outro ou melhores”.
Para Eugénio Roque, o mais importante é “ver como um atleta com deficiências motoras consegue superar-se a si próprio, ampliar os seus movimentos. Conseguem ganhar confiança. Porque afinal o braço ou a mão deles, apesar dos defeitos que todos têm, vai ganhando precisão de movimentos. Ver como eles se sentem evoluir e como sentem que afinal não são tão limitados, é muito gratificante”.
Josimario Varela corrobora desta afirmação de Eugénio Roque. Pratica esgrima há um ano e diz que “adquiri outra maneira de pensar em termos das minhas próprias capacidades. Muitas vezes até sinto que sou capaz de fazer melhor do que os outros, mesmo que eles não tenham problemas”. Josimário tem 18 anos e uma paralisia cerebral afecta-lhe o seu lado esquerdo. Não é por isso, porém, que deixa de treinar duas vezes por semana com Adelino Batista, de 22 anos, a quem um cancro numa perna aos 6 anos reduziu a mobilidade.
Por tudo isto, o entusiasmo de Eugénio Roque não esmorece. Segundo o mestre, quase todo o tipo de deficiências permitem que se pratique esgrima: “Até há esgrima deitado. Existe esgrima acamado. Imagina o que é uma pessoa deitada numa cama, acamada, fazer esgrima? E isso existe. Está regulamentado. Ainda não consegui esgrima para cegos, gostava de ter conseguido este ano, mas para o ano, se eu cá estiver e se as coisas puderem continuar, gostava de pôr os cegos também a fazer esgrima”.
Até lá, temos pelo menos um esgrimista cujo sonho é “ir aos paraolímpicos. E, para isso, tenho de participar em 4 ou 5 provas”. Hélder Farroba tem 35 anos e é algarvio. Há 20 anos viu-se amputado das duas pernas na sequência de um acidente de comboio: “tinha 15 anos. Ao princípio custou muito. Depois com o tempo a pessoa esquece. Passou e caminha-se para a frente”. Caminhou até ao ponto de há cerca de três anos praticar desporto para deficientes. Pratica basquetebol e esgrima, em Quarteira. Na esgrima, já foi “ao campeonato do Mundo em Valência, Espanha, e agora convidaram-me para em Julho, se conseguir arranjar verbas, ir a Varsóvia, ao campeonato Europeu”.

Basquetebol, desporto de veteranos

Embora com muitos mais praticantes, também os jogadores para o basquetebol são difíceis de atrair. Quem o afirma é Jorge Almeida, de 45 anos, a quem uma poliomielite aos 17 meses deixou sequelas irreversíveis. No seu dia-a-dia, como chefe de segurança no Hospital de Santa Maria, Jorge Almeida desloca-se com o auxílio de canadianas e em cada turno faz duas voltas completas ao hospital. Actividade não lhe falta, mas a sua paixão pelo desporto levou-o desde muito novo a praticar natação, ténis e basquetebol. Com o tempo, e pela dificuldade de conjugação das três modalidades, optou pela última, tornando-se também treinador da equipa da Associação Portuguesa de Deficientes (APD) de Lisboa.
Homem determinado, o exemplo de um quadriamputado a jogar basquetebol ficou-lhe para sempre na memória e dá-o frequentemente aos seus jogadores: “não há limites para nada, desde que nós queiramos, desde que trabalhemos para esse fim, conseguimos atingi-lo”, afirma. “Não é o facto de termos qualquer tipo de deficiência, que nos faz ser diferentes. Somos pessoas que, se nos criarem as condições ideais, e nós temos de lutar por elas, atingimos tudo como outra pessoa qualquer. Daí eu achar que a deficiência não nos pode proibir nem prejudicar em nada”. Esta forma de pensar adquiriu-a desde muito novo. Diz ter tido o privilégio de nascer num bairro com fracos recursos económicos e nunca ter sido posto de parte pelos seus colegas: “enquanto eles jogavam à bola com os pés, eu jogava com as mãos. E era das primeiras pessoas a ser escolhidas para as equipas deles. Isso fez de mim uma pessoa diferente e extremamente positiva como acho que sou hoje”.
Quanto ao basquetebol, vive-o com intensidade e lamenta não conseguir atrair mais atletas para a sua prática. Delegações da APD que tenham equipas de basquetebol são cinco: Lisboa, Sintra, Braga, Leiria e Porto. “Apesar de termos outras que pretendiam formar equipa. Temos uma na Amadora que anda há uns anos a tentar. Tem material mas não consegue arranjar gente suficiente para fazer a equipa”, avança Jorge Almeida. Nem o programa “Bicas na Escola”, que tem como intenção divulgar a modalidade e obter gente para a sua prática se tem mostrado eficaz. “Eu acho que existem milhares de deficientes a estudar. Possivelmente nós ainda não conseguimos encontrar as escolas certas”, afirma Jorge perante a dificuldade de explicar os motivos do insucesso. “Por este andar, se não conseguirmos trazer gente para a prática, isto tem tendência para acabar”.
Data de 1946 o primeiro registo de basquetebol em cadeira de rodas quando, após a II Guerra Mundial surgiu um grande número de deficientes motores e nos hospitais dos Paralyzed Veterans of América (Veteranos Paralisados da América) se começaram a desenvolver actividades desportivas. “Um médico, achou que tinha de encontrar uma forma de entreter os deficientes de guerra”, conta Jorge Almeida. O basquetebol foi uma das formas de entretenimento encontradas até ao ponto “de hoje haverem Jogos Olímpicos, Campeonato do Mundo, Campeonato da Europa, Taça dos Campeões. Todas as provas que existem dos ditos normais, existem para as pessoas com deficiência”, diz. Para Portugal foram os Deficientes das Forças Armadas que trouxeram a modalidade, fazendo torneios para a sua divulgação.
Actualmente existem no nosso país 10 equipas de basquetebol. “Infelizmente não podemos participar regularmente nas provas europeias devido a falta de apoios, mas em Portugal fazemos campeonatos regulares”, afirma o treinador da equipa de Lisboa. Contudo, também a falta de meios obrigou a “dividir o campeonato em parte norte e parte sul”.
A diferença em relação ao panorama europeu é grande. “Eles têm excelentes condições que nós não temos. Logo aqui ao lado, em Espanha, têm uma liga onde os jogadores são profissionais”, afirma ainda Jorge Almeida que continua: “a nível de selecção é muito difícil obter resultados porque não temos condições. Faltam-nos pavilhões para termos diariamente treinos. Nós temos aqui 2 treinos e a muito custo, porque o estádio não nos cobra. Mas há equipas que sabemos que têm de pagar o aluguer do treino”. Também não existem meios para frequentar os ginásios para musculação, o que faz com que exista “grande diferença na massa muscular nas equipas estrangeiras em relação às nacionais”. Tudo isso origina que seja muito difícil a selecção nacional chegar aos paraolímpicos.
Aparte todas estas questões, para Jorge Almeida, a simples prática da modalidade é positiva: “uma pessoa com canadianas ou de cadeira de rodas tem dificuldades, no seu dia-a-dia, para se deslocar na cidade. Com a prática desportiva, ela adquire uma preparação física que lhe permite mais facilmente ultrapassar as barreiras arquitectónicas”, continua o atleta, concluindo: “dá-nos uma grande mobilidade, cria-nos uma auto-estima excelente, acreditamos muito mais nas nossas potencialidades e, de facto, passamos a ser pessoas diferentes”.

Ténis, uma modalidade à procura de adeptos

Pouco falta para as 16:00 quando a carrinha do Centro de Medicina e Reabilitação Física de Alcoitão chega ao Clube de Ténis do Estoril (CTE). Entre as duas instituições foi firmado um protocolo que visa permitir aos pacientes do centro hospitalar a prática de ténis em cadeira de rodas. O Clube oferece, além dos campos, as cadeiras de rodas e um professor para dar as aulas.
Modalidade praticada há décadas no estrangeiro, é ainda pouco conhecida em Portugal. Trazida para o nosso país há cerca de 10 anos por um holandês, Fred Marx, entretanto regressado à Holanda, o ténis em cadeira de rodas tem-se vindo a desenvolver muito lentamente e Portugal conta neste momento com apenas 9 atletas de competição.
É Filipe Marques, de 34 anos, quem sai da carrinha. Amante de motos e de velocidades, um acidente de viação deixou-o paraplégico há 13 anos: “foi muito difícil no início, depois a pessoa habitua-se”, diz, a propósito das suas circunstâncias. Filipe Marques iniciou-se no ténis há pouco mais de um mês quando, regressado a Alcoitão para a vigilância de rotina, lhe foi proposto praticar a modalidade. “Aceitei vir experimentar, e estou a gostar”, afirma.
Pedro Silva é o professor responsável pelo ténis em cadeira de rodas no CTE e sente, pela quantidade de alunos que lhe passam pelas mãos, que a modalidade ainda não fideliza adeptos: “aquilo que me apercebo é que as pessoas estão em Alcoitão durante algum tempo a tentar fazer a recuperação. Umas ficam um bocadinho mais, outras menos, mas depois têm alta e vão-se embora”.
Desconhecimento da existência da modalidade, dificuldades de transporte e o facto de serem ainda muito poucas as escolas que proporcionam a prática do ténis em cadeira de rodas, não serão concerteza factores alheios a esta falta de adesão por parte de muitos dos deficientes. Além de S. Miguel, nos Açores, a modalidade ainda só pode ser praticada no Estoril, em Pombal, no Porto e em Setúbal, apesar de, como diz Joaquim Nunes, coordenador nacional do ténis em cadeira de rodas,” para o praticar não seja necessário mais do que os clubes de ténis disponibilizem um técnico e que tenham condições de acessibilidade a nível de barreiras arquitectónicas”. Filipe Marques, por exemplo, gostaria de continuar a praticar a modalidade mas tal implicaria um acordo com a empresa que o emprega, devido ao horário das aulas.
O que tem de positivo o ténis em cadeira de rodas? Para Filipe Marques, esta modalidade “faz bem aos braços, à cabeça, faz bem a tudo”. Pedro Silva complementa: “Aquilo que tenho sentido é que, para além de aprenderem algo mais, para este universo de pessoas é importante a prática de uma actividade física. Pelo facto de ser benéfico para a sua própria recuperação e também por uma questão mental, para não caírem numa rotina e fazerem algo de diferente”.
Apesar da existência em Portugal de grandes tenistas em cadeira de rodas como Paulo Espírito Santo, não está por enquanto nos horizontes de Pedro Silva vir a ter alunos desse calibre porque, “o universo que nós temos aqui são pessoas que nunca pegaram numa raquete e o nível é mesmo de iniciação”, apesar de surgir gente “com muito talento, que aprende com muita facilidade”.
Tabu #48 - 11 de Agosto de 2007

julho 19, 2007

Estatuto: solidário


O nome lembra um batalhão de guerreiros e faz justiça ao seu trabalho. Vivem essencialmente da determinação dos voluntários, operacionais e dadores que, em conjunto com os elementos da instituição, formam uma verdadeira Legião da Boa Vontade. Eles foram os primeiros a fazer trabalho de rua, directamente com os sem-abrigo

Segunda-feira, 20:30. Os termómetros marcam 6º e a humidade é da que se entranha na roupa. Aquele sector da rua está sem electricidade. É à luz tímida de duas velas que o grupo de voluntários se atarefa a transpor a sopa, cozinhada pelo turno de dia, das enormes panelas para os recipientes térmicos. Os sacos com os lanches, como habitualmente, erguem-se em pilha sobre as arcas frigoríficas. Ao contrário do que é usual, e prevendo pouca colaboração dos céus, que ameaçam chuva, esta noite os iogurtes e a fruta serão distribuídos pelos sacos antes de a viagem começar. São os preparativos para mais uma noite de Ronda da Caridade na Legião da Boa Vontade (LBV).
A azáfama é grande e não é uma noite tipicamente invernosa que consegue diminuir o labor dos participantes que ultrapassam em pouco a meia dúzia. Este número corresponde a uma ínfima parte dos 220 voluntários que trabalham com a organização, apenas em Lisboa.
A Ronda é talvez, em Portugal, a face mais visível da actuação desta instituição. Através da acção deste programa são atendidas por noite, e apenas na capital, cerca de 180 das 1000 pessoas que vivem na rua, números dos censos elaborados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), em 2004. Três noites por semana, a equipa sai à rua. Na carga, levam alimentos para distribuir e uma poderosa ferramenta de trabalho: a capacidade de escutar quem lhes queira confiar os seus problemas, além da tentativa de resolução das situações mais prementes de exclusão social.
O itinerário está antecipadamente definido, embora exista uma notória ausência de coordenação entre as várias organizações que prestam serviços semelhantes. Esta falta de projecto comum origina habitualmente a sobreposição dos percursos efectuados pelas instituições. Além desta aparente impossibilidade de conjugação de esforços, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) também parece não estar desperta para intuir que um maior planeamento, através dos seus serviços, distribuiria de forma mais equitativa as capacidades de cada instituição. Contudo, essas são questões institucionais que em nada perturbam a actuação dos voluntários que se predispõem a trabalhar com a LBV.
Não é fácil traçar o retrato-tipo dos voluntários. Em cada Ronda, composta habitualmente por sete elementos, convivem pessoas de todas as idades e profissões. Vanda tem 36 anos e é empregada de escritório. Uma noite por mês deixa os filhos entregues ao marido ou à mãe para participar na Ronda. Vive em Palmela e nessa noite pouco descansa mas os seus motivos quase podem ser considerados terapêuticos: ”isto é como um recarregar de baterias para o nosso dia-a-dia. Faz-nos ver que muitas das coisas que consideramos problemas não são nada quando comparados com dificuldades efectivas que encontramos”. Ana Maria, 57 anos e reformada da banca, concorda: “lidar com certas questões faz-nos reequacionar as nossas próprias aspirações. Muitas vezes aborrecemo-nos porque não conseguimos ter a casa que desejamos, o carro que gostaríamos. Ao depararmo-nos com pessoas que não têm nada e não fazem disso um drama temos um exemplo de dignidade.”
Já Pedro tem 31 anos e é funcionário na área das telecomunicações. “Foi através da minha empresa que tomei contacto com o voluntariado”, conta. “As empresas têm acordos com instituições de solidariedade social e, se quisermos experimentar o trabalho de voluntários, um dia por ano, esse dia não nos é descontado no ordenado”. Pedro experimentou e fez-se voluntário efectivo acabando por transmitir o seu entusiasmo à mulher e a alguns dos amigos. A sua motivação é, também ela, muito simples: “é uma forma eficaz de ajudar quem realmente necessita e ainda de me sentir útil”.

Uma ronda por Lisboa

Vinte e uma e trinta, o grito corta o sossego da Rua Mouzinho da Silveira, em Lisboa: “carrinha!” Da sombra dos edifícios nascem vultos humanos. No meio da estrada, algumas pessoas tentam orientar a manobra da carrinha, facilitar a inversão de marcha, estar nos primeiros lugares da fila, quando o veículo estacionar. Carlos (nome fictício), mais antigo nestas lides, com um sorriso e um “boa noite” rasgados, abre cortesmente as portas aos voluntários. Espreita, para reconhecimento dos elementos da equipa que já vão ocupando lugar na retaguarda,
Luís (nome fictício) tem pouco mais de 20 anos. É educado e parece indiferente a todos os que o rodeiam. Da sua boca as palavras saem secas, com um ligeiro travo a ironia. Em voz baixa, conta que após a refeição voltará para casa, “se é que àquilo se pode chamar casa”, o olhar directo, como que a auscultar a reacção. Baixa a cabeça e continua a comer. Aparentemente, criou uma defesa em relação à sociedade que passa pelo silêncio. Perto dele está Maria (nome fictício), também ela mulher de poucas palavras e nenhumas fotografias: “tenho família, e não quero que eles saibam que ando aqui”. Maria trabalha mas o ordenado não lhe permite fazer face a todas as despesas mensais e os alimentos ou roupas obtidos junto das instituições de solidariedade social constituem uma preciosa ajuda ao seu orçamento. Como ela, muitos outros têm vergonha de se verem reconhecidos por familiares, antigos vizinhos ou colegas. A ideia que têm de dignidade não passa por esperarem pelo fim do dia para mitigar a fome com um prato de sopa ou um lanche oferecidos por uma instituição.
Com o intuito de ajudar a ultrapassar as dificuldades emergentes deste tipo de situações, da equipa da LBV fazem parte dois psicólogos e uma assistente social. Contudo, “trabalhar com uma população com este nível de carências não se torna simples.” É Miguel Arede, um dos psicólogos, quem o afirma, continuando: “a maior parte dos problemas que nos surgem têm a ver com situações de privação material que nós não conseguimos resolver no imediato”. Apesar deste grupo de trabalho procurar incessantemente a melhor forma de interagir com os sem-abrigo: “como psicólogos, a abordagem feita no âmbito da Ronda pode ser benéfica porque passamos a ser olhados com maior confiança, mas a nossa actuação não consegue ser terapêutica e torna-se muito pouco interventiva”. Além do mais, “sendo as principais necessidades destas pessoas materiais e urgentes, dificilmente conseguimos que reconheçam os seus problemas psíquicos, se desloquem às nossas instalações para falar deles e, consequentemente, tentemos ajudá-los a sair da situação de debilidade em que se encontram.” A isto acresce ainda o facto de ser “uma população bastante oscilante, a quem se torna difícil acompanhar e auxiliar”.
A oscilação a que se refere Miguel Arede é sentida quando, noite após noite, mudam as caras ou os locais dos que recorrem aos serviços prestados pela equipa de rua da LBV. Se há muitos que se tornam familiares às equipas, de quem já sabem o nome e com quem conseguem continuar a conversa mantida da última vez, outros mudam de local ou desaparecem por longos períodos.
Há contudo lugares onde a população se mantém praticamente inalterável, habitualmente locais onde a presença das caixas de cartão, transformadas em colchões, denotam algum sedentarismo. A estas pessoas mistura-se também muita gente que, apesar de ter habitação, espera pela carrinha para ir buscar os alimentos. Não são raros os casos em que cinco e seis sopas são servidas à mesma pessoa que as consome com a ansiedade de quem, notoriamente, está a comer a primeira refeição do dia. Se em muitas destes indivíduos é evidente a dependência do álcool e de estupefacientes, a eles junta-se gente com reduzidos recursos de sobrevivência: idosos com parcas reformas e desempregados, imigrantes ou nacionais, desmotivados com as dificuldades com que se deparam. Essencialmente quem está em situação de desemprego involuntário, procura em cada equipa alguém com quem falar das suas contrariedades e a quem transmitir os seus pequenos sucessos.
Nely Oliveira é uma das responsáveis pela sucursal da instituição em Lisboa. Brasileira, está em Portugal há cerca de 10 anos, altura em que foi convidada para desenvolver no nosso país um trabalho similar ao já incrementado no Brasil. Para ela é também nesta partilha de experiências que reside uma das mais valias da LBV: “a nossa intenção não é apenas distribuir comida mas também um pouco de ânimo para enfrentar as dificuldades diárias. É importante o trabalho que os voluntários fazem nesse sentido”. Essa importância fica patente quando algum dos utentes da Ronda oferece um ramo de flores ou bombons para um ou todos os elementos da equipa: “estes pequenos gestos são animadores. Afinal são pessoas que, apesar das suas dificuldades, procuram uma forma de nos demonstrar afecto”, diz Manuela, uma das voluntárias, que remata: “e isto acontece algumas vezes”.

Outras valências, os mesmos princípios

Além do programa especificamente dedicado aos sem-abrigo, a LBV desenvolve em Portugal outros projectos, sempre orientados para pessoas carenciadas. Entre eles encontra-se o programa Sorriso Feliz que, em Lisboa, se desenvolve num autocarro doado pela Carris e posteriormente transformado em ludoteca com o apoio de empresas e dadores particulares. Por Lisboa e arredores, este autocarro propõe-se a desenvolver um trabalho de chamada de atenção junto das escolas. Aí, entre actividades lúdicas, são transmitidos aos miúdos conhecimentos básicos sobre a constituição da sua boca, a estrutura dos dentes e os cuidados a ter com eles. Pequenos kits infantis de limpeza são distribuídos pelas crianças, ao mesmo tempo que lhes é feito um exame oral, cujo diagnóstico é registado e enviado aos pais com o intuito serem tratados pequenos problemas que eventualmente existam. Através desta valência, a LBV procura chamar a atenção para a importância da higiene oral na sanidade global do corpo, assim como prevenir situações que, já na idade adulta, possam vir a degenerar em dificuldades de integração social e essencialmente no mercado de trabalho por questões que se prendam com a aparência geral da pessoa.
Vocacionado para agregados familiares com sérias dificuldades de integração e de sobrevivência, a instituição tem vindo a desenvolver um outro programa denominado Um Passo em Frente. Como explica Nely, através desta valência, e “mediante inscrição de famílias ou de pessoas que habitam sozinhas, são diagnosticados os principais problemas existentes e procurada a forma de ajudar o agregado a ultrapassá-los, a dar «Um Passo em Frente»”. Nestes casos, além dos apoios institucional e psicológico, são também facultados alguns meios materiais de sobrevivência. Mensalmente são distribuídos cabazes com bens alimentares básicos e, quando necessárias, roupas que são entregues às famílias referenciadas.
Dulmira C. é uma das pessoas registadas neste programa. Com 81 anos, vive sozinha numa habitação cujas condições estão muito longe das ideais. Quando a equipa da LBV a visita, a comida que tem em casa resume-se a alguns ovos, açúcar, azeite e pouco mais: “é aqui que faço o meu comer”, diz, apontando uma resistência em cima de um grelhador, sobre a mesa de uma salinha. Logo de seguida pergunta com orgulho “já viu a minha cozinha?”: o frigorífico desligado, aberto e vazio, os recipientes que deveriam conter comida dispostos como bibelots, o fogão, sem fornecimento de gás, fechado e coberto por um naperon. Nely chama a atenção para o facto de não existir sequer uma banheira ou um duche: “isto não são condições para um ser humano viver”, diz em voz baixa enquanto dispõe a fruta na fruteira.
Tão graves como a situação daqueles que não têm um tecto são as condições de carência escondidas atrás de uma porta e, afirma Nely, “há muitos casos semelhantes”. Com o intuito de abranger as situações mais diversas possíveis, e ombreando com todas as outras valências, a LBV tem também uma creche para acolhimento dos mais pequenos que aí recebem cuidados e alimentação durante o período de trabalho dos pais, além de desenvolver um programa similar adaptado à terceira idade cuja finalidade, é fazer com que estas pessoas “se sintam menos sozinhas e, em simultâneo, úteis”, explica ainda Nely Oliveira.
Combate à exclusão social, à carência material e à solidão, talvez se possa assim definir a acção da Legião da Boa Vontade. Os meios que dispõem para esta luta dependem quase exclusivamente da sociedade civil e é essencialmente com ela que contam. Sejam bens perecíveis ou não - roupas, cobertores, brinquedos, electrodomésticos ou outras utilidades domésticas - a instituição aceita tudo o que lhes queiram dar porque há sempre alguém que necessita daquilo que os outros não precisam.


Um pouco de história

Entidade ecuménica, fundada há 56 anos no Brasil por Alziro Zarur, a LBV chega a Portugal através da influência do jornalista Penalva Rocha que, conhecedor do trabalho da instituição no outro lado do Atlântico, entendeu ser possível e útil desenvolver um serviço similar no nosso país. Em 1989 o convite efectuado para abertura de um centro de atendimento em Portugal é aceite pela LBV. Dezassete anos depois a sua acção no nosso país estende-se a três cidades: Lisboa, Porto e Coimbra.
Pioneira em Portugal no trabalho directo com os sem-abrigo, a experiência adquirida no Brasil e países limítrofes permitiu que a LBV se movimentasse de uma forma ágil e segura em território nacional. Através de contactos estabelecidos com empresas e particulares obtêm as doações, em numerário e géneros, que lhes permitem o desenvolvimento das suas várias valências. Porém, o carácter esporádico de muitas destas colaborações obriga a um trabalho de procura exaustiva para colmatar falhas e assegurar o funcionamento eficaz dos programas. Só em termos de alimentos doados, referimo-nos a 112.000 quilos anuais movimentados pela instituição e distribuídos por apenas três das suas valências (Um Passo em Frente, Semente da Boa Vontade e Ronda da Caridade), segundo os números de 2004. A quantidade de atendimentos efectuados, também anual, situa-se na ordem das 151.000 pessoas e famílias, todas elas carenciadas, um dos pressupostos para a actuação da LBV que pretende com o seu trabalho melhorar a qualidade de vida de todos aqueles que se encontram em situação de privação social extrema
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Magazine Grande Informação #18 - Julho/Agosto 2007

maio 20, 2007

Choque tecnológico à portuguesa


Bell, Marconi, Diesel ou Edison, são nomes que nos trazem à ideia produtos de uso comum, inventos que simplificaram e melhoraram a nossa vida. Porém, a individualidade, que distinguiu a invenção até ao início do século XX, deu lugar a outros princípios.

Nos tempos modernos, a criatividade é caracterizada pela multidisciplinaridade, passou a desenvolver-se em empresas, universidades e pólos tecnológicos. Cada invento é essencialmente anónimo, resultante não do trabalho de uma pessoa mas de uma comunidade.
Terá o inventor independente perdido lugar na sociedade? Camilo Rodrigues, presidente da Associação Portuguesa de Criatividade (APC), acredita “continuar a haver espaço para os inventores independentes”. E isto, “como resolução das situações práticas do dia-a-dia, mas também para soluções tecnológicas mais avançadas”. Para o responsável pela APC, a independência do inventor facilita que este explore o caminho menos provável, aquele que vai contra as leis aceites e estabelecidas. E talvez seja aqui que começam os problemas dos criadores independentes em Portugal. É o caso de Jesuvino Moleirinho, reformado da Lisnave, neste momento a braços com a tentativa de encontrar quem ceda em lhe fazer os testes à sua novíssima turbina eólica. As pás desta turbina, colocadas na horizontal, aparentam produzir o quádruplo da energia fornecida pelos geradores tradicionais. Do INETI, organismo onde se dirigiu e por nós contactado, a resposta veio clara, de quem preferiu manter o anonimato: “até podemos dar um parecer positivo, mas dificilmente o senhor Moleirinho conseguirá ir contra as ideias instituídas”.
Dias antes, já Camilo Rodrigues, previra atitude semelhante ao afirmar a propósito: “quando uma coisa destas cai num instituto ou numa universidade, o inventor é olhado como o palerma que põe a hélice na horizontal quando todos os fabricantes estão a fazer doutra maneira.” Contudo, “está ali a pequena centelha que o inventor que o inventor independente ainda pode dar. Pode ser essa pequena mudança a originar que uma coisa daquelas se torne ainda muito mais rentável do que já é”.
A hipótese deste parecer traz-nos uma questão mais abrangente que não se prende apenas com Portugal, antes sendo uma característica comum ao Velho Mundo. “A Europa está velha e gorda”, diz Camilo Rodrigues. Na sua opinião, que parece reunir o consenso dos inventores, “ao nível da inovação, há uma dinâmica muito mais intensa nos chamados novos países”. Partindo do exemplo dos Estados Unidos, onde as próprias entidades oficiais analisam periodicamente o registo de patentes sugerindo parcerias aos inventores independentes, a diferença em relação ao peso da burocracia, nomeadamente em Portugal, é notória. Além disso, do outro lado do oceano aposta-se muito mais em coisas práticas e rentáveis, mesmo que tecnologicamente menos evoluídas. Reportando-nos à indústria aeronáutica, exemplo disso é a criação do Concorde, maravilha tecnológica, por parte da Europa, em relação ao Boieng, menos evoluído, incapaz de ultrapassar duas vezes a velocidade do som, mas que veio incrementar as viagens transatlânticas através da democratização dos preços. Se é facto que o projecto europeu Airbus está agora a singrar, para Camilo Rodrigues, “a Europa acordou passados muitos anos e muitos milhões de dólares”.

Um muro feito de burocracia

Ultrapassar a barreira da burocracia e dos preconceitos à novidade nem sempre parece fácil num país cujo governo assumiu o choque tecnológico como estandarte, mas onde a comunidade científica continua a olhar de esguelha as ideias nascidas fora do seu círculo e os empresários dão preferência ao investimento seguro. O resultado, são invenções apenas patenteadas em Portugal que, decorrido o período de direito de prioridade, podem ser livremente utilizadas por empresas estrangeiras. Nos raros casos de sucesso, ele é obtido à custa de empenhamento solitário e riscos económicos pessoais. Os prémios e as medalhas até são conseguidos; tornar os inventos artigos de uso comum é que parece mais complicado. Não por falta de interesse do público mas pela ausência de investidores.
Jesuvino Moleirinho, também o sabe por experiência própria. Das ideias deste homem nasceu o “sapato ventilado”, que apresentou no Salão de Inventos de Genebra. De lá trouxe uma medalha e uma lista de 35 empresas, de vários pontos do mundo, interessadas em revender o sapato. Porém, nem essa lista motivou qualquer industrial português a ensaiar a produção do artigo, antes deixando às marcas estrangeiras a exploração e rentabilização da ideia que originou os hoje célebres ténis com caixa-de-ar. Desta invenção, Moleirinho lucrou apenas a certeza de que, em países com tradições de investimento, a sua ideia é comercialmente rentável. Além disso, e apesar de tal não produzir euros, pode sempre inscrever a patente no currículo, mesmo que muito poucos tenham conhecimento do facto.
Não é motivo de surpresa, esta usurpação legal de ideias. A Europa está unificada mas as patentes continuam a ser pedidas país a país e, habitualmente, qualquer invento apenas é objecto de registo no estado de residência do seu criador. Por si só, e durante 20 anos, sem autorização do inventor, a existência desse registo é impeditiva do fabrico do produto no território onde está patenteado, restando ao criador o período de um ano para proteger a sua ideia no resto do mundo. Porém, muitas vezes sem dinheiro e sem qualquer tipo de incentivos ou certezas quanto ao eventual interesse de empresas estrangeiras, o inventor independente raramente arrisca a gastar milhares de euros em patentes internacionais. Passado esse período, o invento passa então ao domínio público, podendo ser comercialmente explorado a nível mundial.
Edgar Castelo é inventor a tempo inteiro, “que é a mesma coisa que dizer que estou desempregado”, afirma. “Isto é um apartheid tecnológico. Quem é doutor, tem direito a falar de inovação, quem não é doutor, é mão-de-obra barata. Em Portugal, na Europa toda é assim”, queixa-se. “Eu, nesta Europa, já fui a Genebra, já ganhei uma medalha de ouro, duas medalhas de prata, várias medalhas de bronze. O que é que isso me deu?”
O primeiro invento de Edgar Castelo foi um compasso para desenhar elipses. Tinha dezoito anos. “Naquele tempo estava a estudar design, ainda estava no liceu”. Não terminou o curso e insistiu nas invenções mas, sem dinheiro nem apoios, manter a escolha tem-se mostrado complicado. Desenvolveu a ideia do “Triosk”, um triciclo quiosque destinado a deficientes motores. Em Genebra “ apareceu uma senhora que era esposa de um paraplégico e gostava muito de comprar uma coisa daquelas para ver se o marido fazia qualquer coisa com a vida - porque aquilo trata do emprego para pessoas deficientes motoras. Tive de lhe escrever uma carta a dizer que nós somos portugueses, portanto não fabricamos nada. Aquela invenção recebeu uma medalha de ouro em 2002 e o que é a Europa fez por essa invenção?”
Também o “BusStoper” foi premiado a prata no salão de Genebra. Invento destinado a deficientes visuais, “trata-se de um painel com números que se mostra aos autocarros, para os cegos possam mandar parar o transporte que querem”. Contudo, e apesar da simplicidade da ideia, o invento não mereceu melhor sorte que o “Triosk”. “Houve um senhor que disse: olhe, isto vai dar à pessoa o estigma de ser cego”, conta Edgar com um encolher de ombros de quem já se habituou a bater a portas que se fecham constantemente.

Fazer-se empresário é solução

Há porém quem aposte na produção própria dos seus inventos para conseguir fazê-los chegar ao circuito comercial. Fernando Braamcamp, presidente da Junta de Freguesia do Alto Pina, com a sua “cadeira de banho”, pensada para deficientes, é um deles.
“A ideia surgiu de pensar como é que os deficientes entravam para a banheira. Perguntei a um, que tomava banho assim com uma coisa tipo malabarista”. Ao investigar o que oferecia o mercado a nível mundial, depressa concluiu que relação qualidade/preço era muito desnivelada. Começou então a pensar numa cadeira que proporcionasse às pessoas um modo de fazer a sua higiene pessoal de forma mais autónoma, “porque muitas pessoas precisam de ajuda não para se lavarem mas para transpor a banheira”. Surgiu a “cadeira de banho”. Explica: “as pessoas dizem: mas isso é o ovo de Colombo. E é verdade. Não inventei nada, só juntei duas funções nesta cadeira: o movimento rotativo, que normalmente todas têm, com o movimento de translação, para vir fora da banheira”.
Ajuda, para testes ou comercialização desta ajuda técnica, nunca os conseguiu. “O que nós precisamos é de um apoio, não apenas a nível monetário mas a nível institucional, de testes, um técnico que nos diga, olhe, ponha lá esta rodinha. Demorei muito, até chegar à roda com a resistência e desempenho necessários, porque eu fiz testes, fiz uma análise de risco à cadeira, tudo foi testado à exaustão. Todas estas situações, o estado também não garante, porque depois é uma universidade daqui que investiga dali, não há canais privilegiados para isso. Nem na parte dos tecidos monetários, nem na parte dos apoios técnicos”. Optou então por ser ele mesmo a testar o seu produto com o apoio do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, pedir a certificação do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED). Munido destas duas certificações, passou a fazer a apresentação da cadeira porta-a-porta, tornando-se o vendedor do seu próprio artigo, sobretudo em lares de terceira idade. Porque não vender a patente? “Tive aqui também uma preocupação social de tentar que o produto chegasse a um preço justo a quem dele necessita, o que de outra forma seria difícil”, diz.

Energias alternativas

Também Virgílio Preto, engenheiro civil, pensa conseguir ver tornar-se realidade o seu projecto que pretende rentabilizar a energia das ondas. “A ideia nasceu espontaneamente. Foi a observação, conhecimentos internos, depois, tudo conjugado, formou um conceito”.
Para o conseguir, Virgílio Preto criou uma empresa, a Enerwave, à qual se juntam capitais de outros investidores, e tem vindo a estabelecer protocolos com a Universidade do Minho e a Universidade de Aveiro no sentido de criarem “uma unidade, em pequena escala, mas em condições reais e naturais” capaz de aferir da rentabilidade do invento. Será dos poucos casos em que se verifica uma verdadeira cooperação entre um inventor independente e outros parceiros tecnológicos, contudo, “o processo tem sido bastante complicado porque quer a comunidade científica quer a vocação dos apoios, neste momento, estão canalizados fundamentalmente através das universidades das empresas tecnológicas. As coisas estão perfeitamente definidas e é extremamente difícil um inventor independente ultrapassar todas essas barreiras”. Para Virgílio Preto, “Existem mecanismos e formas de apoio reais, o estado português e a comunidade investiram muito dinheiro a criar os organismos mas o investimento não foi feito em formação e devidamente explicado a essas entidades o que é que o país esperava delas. Porque todas estas entidades só têm razão de ser se o benefício para o país for francamente positivo”. E, na opinião do inventor, não é isso que se passa e “os projectos acabam por entrar e morrer porque os organismos em si, em vez de serem uma entidade incentivadora, cortam muitos do projectos à nascença”.
Persistente, Virgílio Preto tem este projecto já patenteado a nível internacional, acreditando que o seu será um dos que conseguirá vingar entre os 5 existentes a nível mundial.
Ao mesmo tempo tem vindo a progredir num outro invento ligado à energia eólica: “Neste momento os sistemas eólicos são baseados para grandes produções e este sistema deixa de ser uma central para produção geral para passar a produzir para sistemas individuais. Pode adaptar-se aos condomínios, aos prédios, às moradias, digamos que é uma democratização da produção de energia”.
Das suas ideias que não consegui concretizar, o inventor diz nunca ter sentido especiais frustrações sempre que se apercebeu que elas eram posteriormente aproveitadas e até rentabilizadas. “Fiquei satisfeito. No fim de contas, eu não tive as condições ou as capacidades para desenvolver as coisas mas verificou-se que eram boas ideias e que tinham viabilidade comercial e real”.

O melhor ecrã do mundo

Joaquim Candeias é arquitecto de formação e desde sempre se sentiu atraído pela imagem. Ver filmes em sua casa com a qualidade que conseguia no cinema foi o seu objectivo quando começou a trabalhar naquele que hoje é considerado o melhor ecrã a nível mundial, o Lusoscreen. São 26 vezes mais luz que o comum dos ecrãs e o dobro do seu mais directo seguidor, um americano. No que toca ao contraste, mais uma vez o Lusoscreen bate, agora por K.O., o adversário americano. São 359 vezes mais de contraste, do português, contra as 13,2 vezes para o produto dos Estado Unidos. “A maior vantagem deste ecrã é poder estar numa sala sem fechar as luzes, sem fechar as janelas, e conseguir ter uma imagem como se estivesse às escuras”, explica Joaquim Candeias. O próprio vice presidente da Sanyo japonesa deslocou-se a Portugal na tentativa de adquirir os direitos de produção do ecrã, mas as condições propostas não agradaram ao seu criador que decidiu tornar-se empresário investir na produção por conta própria.
Do seu percurso como inventor, o arquitecto diz ter começado “por conseguir umas quantas coisas que depois vi surgirem lá fora. E, à semelhança de muitas outras pessoas em Portugal, apanhei dores de barriga, frustrações, senti-me mal, etc. Num dado momento desisti, de registar patentes, comecei a guardar segredo, até que um dia tivesse eventualmente condições para fazer. O ecrã foi um deles”.
Para Joaquim Candeias, os organismos oficiais em Portugal “não reagem” aos inventos nacionais. Em 1996, quando chegou da Cebit-Home, de Hannover, onde o ecrã foi considerado Grande Inovação, trouxe uma lista com “cerca de 150 empresas interessadas em revender o ecrã”. Sem qualquer tipo de incentivos que não a própria listagem que tinha em mãos, conseguiu entregar o primeiro ecrã que lhe tinha sido encomendado passados dois anos.
Tem aliás uma história com um empresário espanhol, interessado em revender os ecrãs, que havia perdido o prospecto onde figurava o contacto de Candeias. “Já tinha telefonado para o ICEP [Instituto das Empresas para os Mercados Externos], para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, para ver se sabia quem é que produzia o ecrã e ninguém sabia”, conta Joaquim Candeias. “Disse-me: porque é que isto não faz ‘boom’? Um ecrã destes tinha a hipótese de criar imensos postos de trabalho, trazer divisas para o país. Em Espanha teria logo todo o tipo de apoios para fazer isto em grande escala e exportar”.
“Em Portugal não é bem assim que se passa”, afirma Joaquim Candeias que chegou a vender a sua própria casa para fazer face às dificuldades entretanto surgidas. De um pequeno armazém de azeitonas, onde iniciou a sua actividade, ocupa hoje um espaço na zona industrial de Palmela. “Tem-se conseguido”, afirma o agora empresário, “já não volta para trás”.


Notícias Magazine #782 20 Maio 2007

abril 26, 2007

Costa de Caparica - "Terra mal amada"



A 7 de Dezembro de 2006 o estado é de alerta permanente. O cordão dunar a norte da Costa de Caparica corre o risco de rompimento. A segurança dos apoios de praia e do parque de campismo do INATEL fica comprometida. Uma intervenção de emergência evita o pior numa área que, por várias vezes, se tem visto fustigada pelo mar. O que provoca a erosão da Costa de Caparica?

“Terra mal amada”, é como António Neves, presidente da Junta de Freguesia, designa a Costa de Caparica. “As pessoas de Trás-os-Montes e da Beira Alta queixam-se da interioridade, eu queixo-me da proximidade. Se estivesse na Costa Alentejana ou a Costa de Caparica fosse no Algarve, se calhar tinha outro tratamento que não tem aqui”.
Apenas a 10 km do centro de Lisboa, as praias da Costa de Caparica contavam outrora com um extenso areal que, entre 1957 e 1963 recuaram 120 metros. A erosão da zona costeira é conhecida mas na Costa de Caparica ela tem sido acelerada. Afinal, o que aconteceu em Dezembro de 2006? “A questão que se coloca aqui já vem de há anos”, afirma o autarca. “Em determinada altura houve muito pouco cuidado na manutenção dos esporões, o que levou a que a sua eficácia fosse praticamente nula”.
Já em 2001 o mar atentou contra a integridade do cordão dunar destruindo vários apoios de praia, o que “coincidiu com o início dos estudos daquele troço de costa. Na altura estava-se a fazer o estudo prévio”, avança António Borges, técnico do Instituto da Água (INAG), desde Dezembro de 2006 a braços com o risco de rompimento do cordão dunar nas praias de S. João da Caparica. O estudo em questão, elaborado pela equipa do Professor Veloso Gomes, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), tem a ver com a frente costeira urbana da Costa de Caparica, aconselhando a recuperação dos esporões e a reconstrução da defesa aderente, numa obra a executar em duas fases. Porém o projecto, que ficou concluído em Dezembro de 2001, “só apareceu no terreno em Dezembro de 2004”, esclarece António Neves e, mesmo assim, apenas a primeira etapa da intervenção foi efectuada. “Imediatamente a seguir devia ter-se processado a segunda parte da obra, que era o preenchimento artificial de areias dos espaços que foram intervencionados, ou seja, até ao INATEL”. Essa alimentação artificial deveria ter sido feita com 3 milhões de m3 de areias de origem off-shore e dessa operação, de acordo com o estudo prévio e projecto base da FEUP, as dunas da praia de S. João viriam também a beneficiar. António Neves continua: “não foi feito, não sei porquê. Dizem-me que não havia dinheiro. A única certeza absoluta que eu tenho é que era aconselhável que, após o acabamento dos trabalhos da primeira fase, se passasse quase no imediato à segunda fase e não se passou”.
Contudo, para António Neves “é óbvio que não é só disto que resulta a invasão do mar. Resulta também e muito, para não dizer que é o principal responsável, do desaparecimento da restinga de areia que ali existia, entre a Cova do Vapor e o Bugio, que desapareceu na década de 60. No princípio da década de 60 já estava a ser reposta e desapareceu na década de 90. Na parte final da década de 90 voltou a desaparecer”. A restinga a que António Neves se refere é a Golada, um banco de areia sedimentado ao longo de centenas de anos entre a Trafaria e o farol de Bugio. “Hoje ainda existem pessoas que, quando eram crianças, na maré baixa, iam a pé, da Cova do Vapor e da própria Trafaria, até ao Bugio”, afirma o engenheiro António Rodrigues.

A importância da Golada

A ruptura da Golada teve início nos anos 40 do século XX, quando daí começaram a ser retiradas areias cujo destino foi, conforme António Rodrigues, “fundamentalmente fazer os cais de Lisboa, segundo rezam os documentos que temos”. Consequentemente as areias, que outrora limitavam a sua circulação entre as praias da Caparica e a restinga, adquirem um ponto de passagem que lhes permite a migração para norte. A livre circulação das areias leva a que estas se instalem no canal de navegação do Porto de Lisboa, obrigando a drenagens periódicas, ao mesmo tempo que originam a erosão costeira na Costa de Caparica.
Em 1964 o mar invade a então vila e é feita a primeira intervenção com a construção de um dique de protecção marginal e de nove esporões. Essa obra e a reposição natural de areias na Golada terá sustido o impulso do mar durante cerca de 30 anos mas, ainda pelas palavras de António Rodrigues: “mais tarde há notícias das quais eu não tenho confirmação de que, até 1998, também foram retiradas dali [da Golada] areias para fazer os aterros da Expo”. Já em 2001 o cordão dunar fica em risco de rompimento: “há uma coincidência entre 1998 e 2001. Estes fenómenos não são imediatos”. Quando ocorre o perigo de ruptura do cordão dunar, “houve a destruição dos bares, os quais estavam muito mais avançados em relação à linha de costa do que estão neste momento”, continua o engenheiro do INAG. Em 2003, nova ruptura, desta vez na obra de defesa aderente e finalmente, em 2006, de novo o risco de fractura do cordão dunar que originou uma operação de emergência, que continua a ser efectuada na tentativa de travar o ímpeto do mar. De caminho, a esplanada de um dos bares, “O Búzio”, também foi destruída, não sendo de fácil compreensão o motivo pelo qual esse e outro apoio de praia, “O Pé Nu”, se encontravam posicionados em local de perigo eminente. António Borges é peremptório ao afirmar que “o plano de ordenamento da zona costeira define exactamente quais são as zonas em que os bares têm de ficar: os bares têm de ficar atrás das dunas”. Da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDRLVT), organismo que licencia as concessões de apoios de praia, a Vega não conseguiu obter qualquer resposta, antes tendo sido remetida para o INAG.

Soluções sem fim à vista

Segundo a Lusa, Francisco Andrade, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, ao falar numa conferência sobre erosão costeira e ordenamento do território organizada pelo Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), defendeu que “deixar o mar galgar as dunas da Costa de Caparica e retirar as populações das zonas de risco poderá ser a solução para o problema da erosão”. Para Carlos Costa, Presidente do GEOTA, a solução adoptada pelo INAG “é um paliativo que se fundamenta na confiança cega na ‘engenharia pesada’ que domina o imaginário técnico nacional, que sossega as consciências de políticos de todos os quadrantes e que dá muito dinheiro às empresas de construção”. Opinião diversa tem o engenheiro do INAG que afirma “é bom é que as pessoas que defendem essa solução façam contas. Quanto é que custa relocalizar uma cidade? Quantos milhões de Euros é que toda aquela zona da Costa de Caparica gera? É uma questão de custo/benefício.” Para António Borges a solução adoptada é a mais viável: repor a duna, numa determinada fase com areias retiradas de cabeços (zonas com de relevo em relação ao resto do fundo marítimo) existentes na própria praia e, posteriormente, numa intervenção que se espera para Março de 2007 e até ao início da época balnear, cerca de 500 a 600 mil m3 de areia provenientes das dragagens do canal de navegação da APL.
Já para o Presidente da Junta de Freguesia, a solução passa por uma obra de engenharia pesada, nomeadamente com o fecho da Golada. Quando inquirido sobre o tipo de intervenção que está a ser feita nas praias de S. João, ele responde “a obra que se está a fazer é uma obra de emergência, seguida de outra obra de emergência, com mais outra obra de emergência e com mais outra obra de emergência”. Acerca de quando se tornará a obra definitiva responde: “não sei. O senhor ministro é que deve saber. Ele é que preconizou pôr-se ali areia e que aquela zona de costa não se deve transformar em costa de pedra mas sim em costa de areia. As palavras são dele, não são minhas.”
É que a colocação de pedra na zona está para já fora de questão uma vez que, segundo afirmações do ministro do ambiente, Nunes Correia, ”a filosofia do Ministério do Ambiente (MA) é só colocar pedra onde ela já exista”, pretendendo assim manter as praias de S. João da Caparica sob a designação de “praias selvagens”, o que é confirmado por António Rodrigues quando afirma que “uma das grandes preocupações do MA é preservar aqueles mil metros de praia sem ser a praia artificializada”.
Porém, esta ideia de manter as “praias selvagens” é contrariada pela existência de um Plano Estratégico do Porto de Lisboa, em cujo relatório de síntese do Diagnóstico Prospectivo e Formulação de Opções de Desenvolvimento se pode entender o intuito de intensificar a actividade do Terminal da Trafaria “onde se movimentam 1,2 milhões de ton/ano [de granéis agro-alimentares] e se podem movimentar 4 ou 5 vezes mais, abrindo perspectivas para uma maior penetração na Estremadura Espanhola, o transhipment e outras utilizações industriais destes produtos”. Chega mesmo a haver uma proposta alternativa “de localização dum novo terminal de contentores da Trafaria, o qual poderá vir a ter uma extensão de 1000 m”, continuando: “Dadas as condições que poderão ser aqui criadas na implantação de um novo terminal de contentores, admite-se que possa vir a desempenhar um papel significativo na atracção de novos tráfegos para o Porto de Lisboa, nomeadamente no segmento de transhipment e no cruzamento de linhas de navegação transoceânica”.
Até ao fecho de edição da Vega, ainda decorrem as marés vivas e é difícil prever onde se irá deter o mar nas praias do norte da Costa de Caparica.

Vega Mar & Aventuras #26 Abril/Maio 2007

fevereiro 12, 2007

"Sorriso Feliz"


Um sorriso sem cáries pode fazer a diferença entre um posto de trabalho e o desemprego. Por isso o Sorriso Feliz vai até às crianças levando-lhes informação sobre higiene oral, até como forma de prevenir uma futura inserção social.

O silêncio só é quebrado pelas palavras do Doutor Dentolas que, na televisão, leva os miúdos numa viagem pela Terra. O inimigo chama-se placa bacteriana, uns monstrinhos verdes que procuram avidamente qualquer sítio para se esconderem dentro da boca de meninos europeus, africanos ou asiáticos. Informar é o primeiro passo dado pela equipa do Sorriso Feliz no sentido da sensibilização aos cuidados de higiene oral. A população alvo são as crianças que têm dificuldade de acesso a esclarecimentos sobre o assunto. O intuito é que cheguem a adultos com uma dentição sã e que esta não seja factor de exclusão social.
“É importante que as crianças sejam sensibilizadas desde muito cedo para os cuidados a terem com a sua boca”, afirma Eloísa Teixeira, psicóloga educacional que com Elsa Silva, higienista oral, constituem a equipa de trabalho da unidade móvel do Sorriso Feliz. Por esse motivo fazem intervenções e palestras desde berçários até ao fim do primeiro ciclo. “Na maior parte dos casos as pessoas não imaginam sequer que a higiene oral deve ser feita desde que a criança ainda não tem dentes”, continua Eloísa. “Passar-lhes com uma compressa nas gengivas após a ingestão da papa é mais do que suficiente para convencer qualquer mãe”.

O Sorriso Feliz é um dos programas da Legião da Boa Vontade (LBV). Fundada há 56 anos no Brasil, a LBV chega a Portugal em 1989 fazendo na altura um trabalho pioneiro no apoio directo de rua aos sem-abrigo através da Ronda da Caridade. Com os anos, outras valências foram sendo implementadas. Surgem programas como Um Passo em Frente, destinado a diagnosticar dificuldades sentidas por indivíduos em risco, apoiando-os no sentido de ultrapassarem os problemas; a Semente da Boa Vontade, que consiste no atendimento em regime de ATL (Actividades de Tempos Livres) a crianças e adolescentes mais desfavorecidas e, desde há cinco anos, o Sorriso Feliz que, em alturas de Natal ou Dia da Criança adquire características do programa Semente da Boa Vontade ao fazer festas e oferecer prendas à miudagem.

Um autocarro doado pela Carris, com a cooperação de empresas e particulares transformado em ludoteca e consultório dentário, serve de apoio a este programa e constitui o rosto mais visível do Sorriso Feliz. Três vezes por semana e até fazerem o rastreio dentário a todos os alunos, o autocarro estaciona junto de cada escola que pede a sua colaboração. Além do ensino de uma forma lúdica, “o que fazemos é observar a boca de cada criança, proteger-lhes os dentes em bom estado com selantes, dar-lhes flúor e informar os pais sobre o estado oral do filho”, explica Elsa. Nos casos em que haja necessidade de intervenção médica, ela é facultada de forma gratuita, conduzindo a criança para clínicas privadas com as quais a LBV tem acordos. Já no Centro Infantil São Gerardo, na Cova da Moura, a equipa da LBV intervém sob a forma de excepção. É Maria José Moreno, coordenadora do São Gerardo quem explica: ”a LBV começou por tratar dos dentes dos nossos meninos no autocarro”. Posteriormente, o acordo entre as duas instituições foi renovado e “concordámos em que fosse um programa contínuo. Ofereceram-nos um escovário, com as gavetinhas, para cumprir todas as normas para que as escovas não se juntassem e, a partir daí, além de nos ensinarem a escovagem aos meninos, começaram a tratar dos dentes a nível de verem as cáries existentes”. A miudagem colabora, leva ensinamentos para casa e até reclamam quando pensam que não vão lavar os dentes após a refeição.
Sol #22 - 09 Fevereiro/2007

fevereiro 04, 2007

Golo a galope


A selecção portuguesa é vice-campeã da Europa na modalidade, mas nem por isso o Horseball é conhecido do grande público. Este é um desporto à conquista de adeptos e de patrocínios: jogar à bola a cavalo. Pura adrenalina, diz quem sabe.

O dia amanhece luminoso, sol a secar a humidade nocturna. Pelas queixas no camião ao lado, a noite anterior foi gelada. Os mais velhos procuraram aquecer-se pelas tasquinhas da Golegã; os mais novos, e únicos acordados àquela hora, enrolaram-se em mantas, após a disputa das meias-finais da Taça de Portugal de Horseball. Quase a culminar onze meses de campeonatos, o Sporting Clube de Portugal/Centro Equestre João Cardiga (SCP/CEJC) ganhou ao Cascais Horseball (CH) num jogo sem história. Por sua vez, o Horseball Club - Colégio Vasco da Gama (HC-CVG) venceu o Clube de Horseball de Alenquer (CHA).
HC-CVG e CHA regressam juntos às boxes, em discussão que raia a cavaqueira. Cláudio Oliveira, do CHA, promete oferecer as rédeas do seu cavalo a um dos adversários: “não as largavas!”. Pedro Santos, também do CHA, comenta ter ficado uns minutos sem visão por conta do braço de Marco Happel, do HC-CVG, duramente esticado para a bola. “Mas não perdi nada de interessante, pois não?”, o humor corrosivo de Pedro a perguntar. Aparentemente, além dos golos, o HC-CVG vencera também em faltas cometidas. “Onde está o van Uden?” é Pedro Serrano, capitão de equipa do CHA, quem se aproxima em demanda. Encontra o adversário, toca-lhe subtilmente no braço, ri-se, ar de puto traquina, apesar dos seus 30 anos: “foi muito bem feita, não foi?”. Só no dia seguinte havíamos de perceber, Serrano cometera uma falta apenas perceptível pelos dois jogadores. João van Uden, sorri: “foi um toque genial, serviu de aprendizagem”. E nem uma ponta de irritação por uma falta que o árbitro não viu? “Não. Talvez até algum orgulho. Significa que constituí perigo para um jogador mais velho e muito mais experiente do que eu”, assunto rematado por van Uden.

Dedicação, aos cavalos e à equitação, é a principal característica dos elementos de todas as equipas. Precisamente por isso, os horários de tratamento dos animais impõem-se sempre aos dos humanos. Com ou sem incursões nocturnas pelas ruas da Golegã, oito da manhã é hora de tratamento dos bichos. Equipas completas, elementos escalados ou tratadores habituais estão lá, para dar cumprimento ao ritual da ração e da água, que os cavalos não se compadecem com os vícios do homem. A equipa do HC-CVG, é a madrugadora. Nota-se que o espírito de grupo lhes é intrínseco: “é natural, foram assim habituados desde miúdos”, justifica a veterinária do clube, Eduarda Paisano. “Se não forem capazes de conviver juntos fora do campo, não conseguem estar unidos em jogo”. Pedro Santos também lá está. É ele quem chama “ganda maluco” a van Uden, e prende a focinheira da égua quando João aparece a montar em pêlo e cabeçada solta, comentando sozinho: “se ela se lembra de arrancar, estou feito”.
Sem equipamentos não parecem adversários. Encostam-se às boxes em troca de opiniões e experiências. Zé João Campeão aparece com uma forquilha cheia de palha. “Onde é que foste buscar isso?”. Veio das boxes do CH. No dia anterior, enquanto esperava pela chegada dos cavalos, João Maria Fernandes, do CH, advertira: “se perdermos, vamos imediatamente embora”. E foram. Da presença da equipa restavam palha e feno nas boxes abandonadas.
Menos de voltar as costas a derrotas, a equipa do CHA mantém-se no terreno. Instalados na zona das boxes, eles são o melhor exemplo do espírito amador da modalidade. Apenas têm o que Serrano designa de “paitrocinador” – Manuel Serrano, o pai, facilita o alojamento dos animais - e só com muito entusiasmo o calendário das competições é cumprido. Com o camião dos cavalos trouxeram carrinhas, sacos-cama, mesa, cadeiras e frigorífico. Durante três dias, é ali que vivem, verdadeiros anfitriões entre os horseballistas. Necessite-se de forquilha, escova ou dois dedos de conversa, é junto ao CHA que se vai buscar. Descontraído, Pedro Serrano acumula as funções de treinador e capitão da equipa. “Não é o melhor, mas ainda não conseguimos encontrar ninguém cujo espírito conjugue com o nosso”, conta. A curiosidade aumenta. Que espírito é esse? “Estamos aqui para nos divertirmos”. Deve ser verdade ou Natália Simões, a única mulher da equipa, não percorreria 120 kms três vezes por semana, para ir treinar a Alenquer tendo um dos clubes concorrentes ao título à porta de casa.
“Isto é um hobby, sem divertimento não valia a pena”, afirma Pedro. Um hobby onde quem não tem apoios, naturalmente, paga. “Mas não é tão caro como muitas pessoas pensam. Praticar karting, por exemplo, não sai mais barato”, diz enquanto se balança na mini-mota de um apoiante da equipa. Em termos médios, a manutenção de um cavalo para prática de horseball poderá custar perto de 200 € mensais.

O horseball continua a ser uma disciplina absolutamente amadora e a sua pouca visibilidade não tem atraído patrocínios de monta. A maior parte dos jogadores e técnicos continua a ter de se articular entre os inevitáveis compromissos profissionais e a prática de uma modalidade que apenas lhes acarreta despesas. Por outro lado, se o número de praticantes é suficiente para manter os vários campeonatos, já a ausência de uma carreira de árbitros de horseball pode levantar alguns problemas. A solução encontrada foi a de cada equipa fornecer o nome de uma dupla de jogadores que passam a constar de uma listagem aprovada pela Comissão Técnica de Arbitragem. Apesar de o sorteio estar previsto, a escolha dos árbitros é feita pelo Responsável de Arbitragem, lugar sujeito a eleição pela Associação de Jogadores de Horseball. Ou seja, a avaliação de cada jogo é feita por elementos de outras equipas, concorrentes no mesmo campeonato do jogo que arbitram. Não é difícil de adivinhar as não raras situações de acusação de favorecimento do árbitro a esta ou àquela equipa, como forma de beneficiar a sua própria.
Afinal, que tem de tão estimulante o horseball? “Adrenalina!”, entusiasmam-se todos quando respondem. Velocidade, capacidade de arranque e de travagem, é o que se pede ao jogador de horseball e à sua montada, tudo conseguido sem o recurso a rédeas, chicote ou bastão. Só o toque das pernas dá instruções. As mãos querem-se livres para o que faz ganhar jogos: alcançar a bola e marcar pontos. “Por isso eles [horseballistas] dizem que o Horseball é mais exigente do que o Pólo”, afirma Eduarda Paisano. A sintonia entre equídeo e cavaleiro tem de ser perfeita. “Em campo, o cavalo é equivalente às pernas do jogador. Um sem o outro não fazem nada”, diz Pedro Serrano. “É um jogo extremamente exigente, em termos musculares, articulares, de respiração. Obriga que os cavaleiros sejam atletas e os cavalos também”, afirma Eduarda Paisano. “Uma partida tem vinte minutos, um intervalo de três. No fim do primeiro tempo, cavalos e jogadores estão estoirados”. Compreensível, considerando que uma montada demora cerca de seis segundos a percorrer um campo regulamentar, cujas medidas ideais são 65 por 25 metros. Para evitar acidentes, os oito jogadores em jogo e o próprio árbitro têm de correr sempre paralelos. Mudanças de direcção só são permitidas nas cabeceiras do terreno, junto às balizas, aros com um metro de diâmetro, a uma altura de 3,5 m do chão. É por ali que tem de passar a bola, envolta em seis correias de couro que permitem aos jogadores arremessá-la, agarrá-la, no ar ou no chão. A ramassage (acto de recolher a bola do solo sem desmontar) é talvez o exercício visualmente mais impressionante desta modalidade. Cavalgar em pé nos estribos até parece fácil, quando comparado com aquele inclinar de corpo, braço esticado em direcção ao chão, cavalo a galope e bola novamente no ar. “Não, eles não ficam de cabeça para baixo”, sorri Eduarda. “Numa ramassage tecnicamente bem feita, quando muito, a cabeça fica ao nível do joelho”. Seja mas, embora não haja conhecimento de acidentes graves no horseball, nem por isso o gesto perde o ar de acrobacia.

Desde sempre o homem gostou de confrontos a cavalo. Nas pampas argentinas, há centenas de anos que o Pato é praticado. Duas quadrilhas de homens a cavalo em disputa por um pato, encarcerado numa saca de serapilheira, com as asas de fora, para facilitar ser agarrado. A desventurada ave terá vindo a ser substituída por uma bola. É essa prática que em 1930 um campeão de saltos de obstáculos a cavalo, o Capitão Clave, faz chegar a França como treino de sela. Com as adaptações necessárias, ao longo dos anos o novo exercício é adoptado para tornar mais lúdico o ensino da equitação. A sua divulgação, já com a designação de Horseball, ultrapassa fronteiras. Em 1988, Portugal assiste à primeira exibição da modalidade. País de cavalos, cavaleiros e bola, a lusa nação não lhe vira costas. A fusão de um jogo de equipa com a equitação, desporto por norma solitário, é aliciante. Em 1989 o número de praticantes já permite a organização de um torneio entre três equipas: Centro Equestre Lezíria Grande, Escola de Equitação Fernando Ralão e Horseball Club (HC), na altura na Quinta da Granja, actualmente HC-CVG, são as pioneiras. Hoje, disputam-se três campeonatos nacionais com 16 equipas participantes e, pela oitava vez em treze anos, a selecção portuguesa é vice campeã da Europa. À sua frente, só a França.
Quando a intenção é falar de divulgação e ensino do horseball em Portugal o nome de Francisco Campeão é incontornável. Instrutor de equitação, habituado a ensinar crianças, para Campeão a modalidade “veio funcionar como uma ferramenta de trabalho” porque, “depois de passar o volteio, a aprendizagem é uma ‘seca’ para os miúdos. Muito longa e monótona.” Fundador do HC, foi da sua prática com classes jovens que nasceram ideias mais adaptadas às necessidades dos miúdos, como a utilização da bola número 2 e a alteração do formato do stick, utilizado para ensinar os póneis a andar. A troca de experiências e o contacto constantes com Jean Paul Depons um dos principais entusiastas da modalidade em França, levaram a que essas alterações fossem inscritas nas regras internacionais do ensino da modalidade.
Fala-se de crianças porque é essencialmente nelas que Francisco Campeão investe. “Embora se possa começar a praticar horseball em qualquer idade, desde que se esteja a montar bem”, há 15 anos o seu lema tem sido: “vamos apostar nos mais novos para daqui a uns anos termos óptimos jogadores adultos”. No SCP/CEJC, é o próprio João Cardiga, responsável do Centro Equestre, quem diz: “o Horseball começou em minha casa em 1993, pela mão do Francisco Campeão”. O método, ao qual não é alheia a ascendência britânica de Campeão, consiste na utilização dos póneis Shetland que, explica Eduarda Paisano, “são peluches vivos, ao tamanho dos miúdos, que conseguem escová-los, aparelhar, dar banho, montar e desmontar sozinhos. Vão desenvolvendo o equilíbrio, o movimento animal, o respeito pelo cavalo e, quando crescem, aumenta o tamanho da montada”. Não será concerteza coincidência que as equipas presentes na final da Taça de Horseball de Portugal sejam as únicas que têm escalões de formação, e ambas nos mesmos moldes.
No SCP/CEJC, a formação é também feita de forma continuada, com um corpo técnico constituído por João Cardiga e dois treinadores, um para os seniores, outro para as categorias mais jovens. É André Ponces de Carvalho, o treinador dos seniores, quem afirma: “há aqui uma mecânica muito grande, que é o diálogo entre estes 3 técnicos. Assisto muitas vezes aos treinos dos escalões jovens, até porque um dia mais tarde vou herdar jogadores desse escalão”. Sobretudo, “falamos todos a uma voz, queremos ter uma imagem de equipa, e essa imagem começa logo a construir-se na formação”.

“Veterinário às oito”. A palavra passara de boca em boca ou pelo telemóvel. “Quer fazer já a fotografia dos vencedores da Taça?” João Tiago Ribas ri-se com toda a equipa do SCP/CEJC, em pose e confiantes no triunfo. Antes da final, nem por um momento o capitão da equipa sportinguista parece duvidar da vitória. Os jogadores do HC-CVG mantêm a sua postura calma e sorridente.
Ponces de Carvalho já puxou toda a equipa para um canto, em conversa vedada a qualquer intruso: “há momentos que são só nossos. É um momento de concentração, um momento místico. É ali que começa a nascer o bichinho para entrarmos em campo”. Equipas e apoiantes ocupam-se com a preparação das montadas, os jogadores exercitam os músculos e fazem o “aquecimento de chão”.
Transpor as poucas centenas de metros que separam as boxes dos equídeos do picadeiro central assume proporções de audácia. As equipas atingem o local perante a indiferença da multidão que se pressente mais inebriada pelo aroma dos grelhados e anúncios dos vendedores ambulantes do que por questões equestres. Nem o facto de se disputar a Taça de Portugal de Horseball confere aos jogadores privilégios particulares. Os animais aquecem na manga, o corredor em torno do picadeiro central, indiferenciados, entre o passeio de póneis, charretes, trajes de equitação à portuguesa. Quando os portões do campo se abrem, a entrada está longe de ser apoteótica. “Quem vir os equipamentos, pensa que é um Benfica/Sporting”, ouve-se. Mas a paixão clubística parece não morar ali e, apesar de considerável, o público tarda em dar mostras de entusiasmo. Nem o esforço do locutor de serviço, que empresta à voz o tom de festa, aparenta surtir qualquer efeito.
O HC-CVG parece ter entrado para ganhar. O SCP/CEJC aparenta nervosismo e dificuldade de organização para um ataque eficaz. Um dos jogadores de verde e branco cai. O cavalo levanta-se, deixa o cavaleiro junto à baliza, sai disparado para a lateral do campo. Treinador e veterinária do HC-CVG, ajudam a agarrar o animal fugitivo. Pelo gesto, a veterinária encoraja o jogador da equipa adversária. O jogo pára. Só assim o atleta pode entrar em campo. Tudo regressa rapidamente à normalidade. Intervalo.
Os cavalos são refrescados, os treinadores ouvidos, muda-se de campo. É um Sporting renovado que entra na segunda parte. O que disse André Ponces de Carvalho à equipa, manter-se-á secreto. “Zanguei-me muito com eles e acho que lhes toquei num ponto fundamental que é o ego. Sou exímio a tocar no ego das pessoas quando é preciso”. Fosse qual fosse o argumento utilizado, o SCP/CEJC dá a volta ao resultado no início da segunda parte. Findos os vinte minutos de jogo a taça, pelo segundo ano consecutivo, passa de mão em mão entre os jogadores do Sporting. Longe do ar que lhe é natural, é um João Cardiga austero que a recebe no fim. A emoção, esconde-a no ombro de cada jogador abraçado.
Após a vitória, Ponces de Carvalho afirmou: “Eu não queria dizer isto, porque se calhar vai ser publicado, mas disse-lhes, antes de iniciarmos as meias-finais da taça: se ganharmos a meia-final, quer dizer que estamos na final e, se ganharmos a final, garanto-vos que durante 2 anos não perdemos um jogo de competições oficiais. Portanto, acho que diz tudo”.
Nos dias 3 e 4 de Fevereiro, as mesmas equipas que disputaram a final da Taça de Portugal, irão lutar pela Super Taça Diogo Santos, no picadeiro coberto da Sociedade Hípica Portuguesa, no Hipódromo do Campo Grande, em Lisboa.
Notícias de Sábado #56 - 03 Fevereiro 2007

janeiro 14, 2007

O que resta dos avieiros


Ribatejo é lezíria, são toiros e cavalos, campinos e touradas. Mas é também morada de outra gente, vinda de longe, à procura de bom porto e de sustento. São os avieiros, a quem Alves Redol chamou “ciganos do Tejo”

No Inverno, quando o mar de Vieira de Leiria se mostrava pouco generoso, famílias inteiras deslocavam-se em campanha até ao Tejo que, na sua riqueza, lhes oferecia sável, enguia, fataça, robalo. Foram ficando por ali à borda-d’água, nos barcos, improvisadas casas de três divisões: à popa, a oficina, destinada ao trabalho da pesca; ao centro, a cozinha; à proa, sob um toldo armado com estacas de salgueiros, o quarto, que abrigava toda a família.
Se o oceano apenas lhes fornecia a sardinha durante o Verão, o Tejo proporcionava-lhes pesca ao longo de todo o ano e, até porque deslocar toda a descendência nem sempre era acessível à economia familiar, aos poucos foram prolongando as campanhas de Inverno. Contam os livros que, há pouco mais de cinquenta anos, começaram a fixar-se ao longo das margens do Tejo. Casa Branca, Palhota, Escaroupim, Caneiras, Conchoso, Patacão, Lezirão, Muge, Valada, Carregado, Vila Franca, eis alguns dos locais onde os avieiros se foram instalando.
A fixação definitiva trouxe-lhes a vontade e a necessidade de uma habitação permanente e segura. Barracas de lona ou coberturas de caniço sobre estacas serviam para as temporadas da faina mas mostravam-se insuficientes quando estas se prolongavam. No início, bem à forma da lezíria, instalaram-se em palhotas, construídas com o material que os valados lhes ofereciam. Quando as condições económicas o começaram a permitir, com características bem diferentes das casas ribatejanas, nascem as aldeias de construção palafítica, típicas da praia de Vieira de Leiria mas também adaptáveis às cheias do Tejo e à necessidade que o pescador sente de estar perto do barco, seu instrumento de trabalho.
Hoje, já não são esses ”ciganos do Tejo” que encontramos na beira-rio mas os seus filhos e netos. Apesar de tudo, ainda é possível encontrar alguns avieiros, embora as suas características se tenham adaptado à realidade actual do Tejo – a construção de barragens impede a circulação do peixe que passou a procurar outros locais para a desova e as descargas das águas residuais no leito do rio, mesmo quando tratadas, matam e deformam o peixe.
Das suas habitações resta a memória, auxiliada pelo espólio documental e o investimento de algumas câmaras na recuperação e manutenção do que sobreviveu ao abandono e à modernidade.
Fomos à sua procura em Escaroupim, uma daquelas aldeias por onde não se passa mas onde se vai. É ali, à beira Tejo, onde termina a estrada vinda de Salvaterra, um lugarejo aparentemente igual a tantos outros. Casas térreas, nas ruas quase ninguém. Ao longe passeiam-se três ou quatro cães, ouve-se o ruído de água que uma mangueira projecta contra o chão de um quintal.
Entre as casas sobressaem quatro ainda em madeira, uma quinta mais à frente, assentes em colunas de cimento, na sua construção palafítica. É o núcleo museológico da aldeia que nos mostra a construção outrora característica da gente do rio – os quartos, sempre em número de dois, fosse a família grande ou pequena, a sala, a divisão maior, separados por tabiques. Do lado oposto ao dos quartos, a cozinha. Portas, apenas as que davam para a rua porque interiormente eram cortinas, de cores alegres e vistosas, que permitiam alguma privacidade. No sótão, divisão criada sobre os quartos, eram guardados os aparelhos de pesca.
Continuando pelo suave declive do terreno, somos conduzidos a um largo cuja recuperação trouxe à população um agradável local de lazer. Sob os chorões, árvore tão característica da borda d’água, bancos e mesas servem os amantes dos piqueniques ou aqueles que apenas gostam de estar sentados a contemplar ou a ler. À esquerda, também recuperadas e em construção palafítica, meia dúzia de casinhas, distribuídas aos pescadores para guardarem as suas artes e o restaurante, para os visitantes do fim de fim-de-semana a quem a paisagem idílica atrai. Os barcos descansam.
As ruas estão desertas. É o fim da manhã de um dia de semana. No cais palafítico, recém recuperado pela câmara, alguns homens, de muito poucas falas. Dispersam rapidamente, talvez pela aproximação de um estranho por tais paragens, talvez justificado pela hora do almoço que se aproxima. É já no café da terra, após a refeição do meio-dia, que encontramos António Simãozinho e Joaquim Letra. A meio do nome, ambos têm o apelido Botas porque “aqui é difícil de encontrar alguém que, mesmo vagamente, não seja de família. Todos os nossos antepassados vieram de Vieira de Leiria”, justifica Joaquim. Assim é. Contam os anais que mencionam a história da terra, ter ela nascido dessa leva migratória de há mais ou menos cinquenta anos. Contudo, os tempos são outros.
Nesta terra de fim de estrada, onde o padeiro ainda se desloca de carrinha com buzina roufenha que anuncia a sua chegada, o sentido da vida mudou. Os outrora pescadores já não o são para alimentar a prole mas quase apenas para ajudar à economia familiar. A agricultura substituiu-se ao rio no sustento dos homens. Empregos como a construção civil ou a hotelaria, por terras próximas, mostram-se mais fiáveis do que continuar a açoitar o Tejo para dele tirar o peixe que não dá para viver. Não porque o rio se tenha tornado avaro mas porque o escoamento do produto se tornou difícil.
Fataça, barbo, enguia e algum camarão, são as espécies que vão vindo à rede ao longo do ano mas, sobretudo a primeira, já perdeu todo o valor comercial: “há uns tempos, todas as semanas vinha aí um intermediário que comprava toda a fataça para fazer farinha de peixe. Agora já não há ninguém a comprar”, conta António, “se houvesse alguém a fazê-lo, toda esta gente andava aí a pescar.” “Hoje ninguém quer isto a não ser para um petisco de fim de tarde” confirma Joaquim.
E nem no mercado público, antiga forma de escoamento do peixe, se encontram hoje as mulheres, outrora com os ranchos de filhos à ilharga, companheiras inseparáveis do homem na arte da pesca, a comercializar o resultado da faina.
É, aliás, como em tudo na vida, o lucro inerente à actividade que se nota ser um travão à sua continuidade. Só no tempo da enguia o rio retoma algum alento, longe, apesar de tudo, dos tempos áureos dos avieiros. O facto de a irós ser uma espécie mais bem cotada e tradicionalmente procurada nos restaurantes do Ribatejo faz com que aos barcos seja dada maior utilidade do que aquela que têm ao longo de quase todo o ano. Além da restauração há ainda os espanhóis, que se deslocam por terras de beira Tejo à procura da enguia portuguesa. Aqui começam a inverter-se os papéis. Cientes da qualidade do produto que capturam, os pescadores portugueses sobem os seus preços até ao ponto que sabem poder vendê-lo para o país vizinho. Por outro lado, os restaurantes nacionais, porque também querem lucrar o máximo possível, passam a comprar a irós espanhola, no dizer de apreciadores e entendidos, muito aquém do sabor e da textura da portuguesa. Contudo, isso não é da preocupação do pescador, que tem nos meses da enguia a melhor altura do ano para complementar o seu ordenado.
É neste imbróglio comercial, que se pode encontrar o motivo daquilo que, por ser proibido, todos se recusam a falar: o rendimento proveniente da apanha do meixão. Sem terem dono aparente, estendidas no chão a secar, podem ver-se redes quase opacas, de tão apertada que é a sua malha. Olhando para o leito do rio, percebe-se uma estrutura, sustentada por estacas grossas. É ali o viveiro das enguias que nunca hão-de crescer nem nadar ao sabor da corrente do Tejo. Todos dizem desconhecer a quem pertence aquela construção, porém, uma coisa é certa: indiferentes ao facto de estarem a comprometer a existência futura da espécie, há pessoas que ali travam o peixe que conseguiu entrar mas não será capaz de sair a não ser para as mãos dos donos de alguns restaurantes ou para intermediários espanhóis, ao valor de 300 euros o quilo.
Mas, apesar de esta ser uma realidade do Tejo, não tem contudo directamente a ver com a faina dos avieiros, a não ser no prejuízo futuro que lhes irá trazer e, desse, apesar da revolta aparente dos dois homens, talvez pelo receio de chamar as atenções para a actividade ilegal, eles preferem não continuar falar, antes predispondo-se a demonstrar a técnica tradicional e a facilidade com que o peixe vem às redes, aproveitando-o para um petisco de fim de dia.
Com a maré-alta fazem-se ao Tejo. No barco, antigamente homem e mulher, hoje dois homens, armados com uma rede atada a varapaus que irão perfurar as águas até encontrarem terra onde se agarrar. Mesmo ali, quase à borda-d’água, remam em círculo, ao enquanto açoitam o rio para espantar o peixe. Em fuga desnorteada, os cardumes ficam presos no muro feito de malha. É altura de recolher varas e rede. Desemalham o peixe e retornam a águas mais fundas para repetir todo o ritual até os peixes aprenderem a desconfiar da acalmia do rio, o que, seja pela abundância da espécie, seja por demasiada tontura dos animais, não acontece facilmente.
Ao atracar no cais de madeira desemalha-se o último peixe. São visíveis alguns dos estragos provocados pela poluição das águas quando um ou outro surgem deformados. Diz António Simãozinho, “com os despejos da ETAR, e apesar de nos dizerem que os graus de poluição são os mínimos e que aquilo vem tratado, nós não acreditamos nisso porque o peixe continua a aparecer morto, a boiar, sem oxigénio.” Esse é um problema aparentemente sem solução. Pelas análises feitas às descargas, os níveis de poluição estão dentro dos limites legais.
O sol quase se põe. Homens e mulheres começam a regressar, não vindos do lado do rio mas de terra. De madrugada ou no fim-de-semana talvez se façam às águas do rio, porque a sua vida agora é outra.


Vega Mar & Aventuras #24 Dezembro 2006/Janeiro 2007

Sapalsado: a casa das ostras


A Sapalsado acreditou ser possível o desenvolvimento da ostra nas próprias águas do rio. Apostou e o desafio parece estar ganho. O Sado volta a ser conhecido em França, pela sua ostraNo horizonte erguem-se as chaminés das fábricas responsáveis pela maior parte da poluição do estuário do Sado.

Para quem olha, do alto de Faralhão, ali às portas de Setúbal, são salinas que parece ver. Estranha-se talvez a largura exagerada dos passadiços ou os engenhos colocados dentro dos tanques, mas apenas isso. A paisagem em nada foi alterada e a passarada vai andando por ali de acordo com os seus hábitos e épocas do ano. Sem qualquer placa sinalizadora ou forma delimitada, é numa zona de antigas salinas que a Sapalsado, uma empresa dedicada à aquicultura, se inscreve. É neste local, onde a paisagem protegida se alia à exploração das potencialidades produtivas do rio, que os sócios da Tambpiscicultura, Reinaldo Mendonça e António Leal, resolveram fazer uma nova aposta: a recuperação da ostra do Sado.
No contexto histórico a apanha da ostra no estuário do Sado sempre se revestiu de alguma importância, reflectindo-se na economia da região. Em França, principal destino do molusco, a ostra sadina era muito conceituada. A procura era grande e os naturais faziam os possíveis por a satisfazer. Famílias inteiras dedicavam-se à actividade, chegando mesmo a vir gente de fora. Os proventos eram consideráveis e a própria aldeia de Faralhão, onde se situa a Sapalsado, cresceu assente nos lucros da apanha do bivalve. Porém, diz António Leal, “as indústrias vieram, destruíram tudo e nunca mais houve ostra”. No estuário do Sado, só passados 30 anos após o seu desaparecimento a ostra regressa de forma tímida, longe da quantidade de outrora e com uma forma de crescimento que denota a capacidade de defesa do ser vivo: “para se proteger da poluição das águas, a ostra cria casca, em vez de desenvolver o músculo”, informa Reinaldo Mendonça.
Experiente e profundamente conhecedor das coisas do mar, Reinaldo Mendonça acreditou que nas águas dos viveiros da Sapalsado, onde já cresciam robalos, douradas, corvinas e linguados de qualidade superior, poderiam também criar-se com sucesso as ostras do Sado. Fundamentava a sua opinião nos resultados das análises às águas, que a empresa sempre teve o cuidado de mandar fazer. “A qualidade da água que sai dos nossos viveiros é superior à que entra no primeiro tanque”, diz. E os papéis estão lá, para o comprovar. A percentagem de metais pesados existentes na água dos tanques é inferior à permitida por lei.
Decidiram-se então por uma primeira experiência, feita com matéria-prima do próprio estuário. As ostras eram apanhadas no Sado e criadas nos tanques da piscicultura. O resultado, atestado por uma equipa da Faculdade de Ciência e Tecnologia (FCT), da Universidade Nova de Lisboa (UNL), foi positivo. Os bivalves desenvolviam-se com muito menos casca nas águas sistematicamente oxigenadas e naturalmente despoluídas da Sapalsado. Obviamente, também a qualidade do músculo, comestível, era superior. Motivados pelo sucesso, os dois sócios apostaram noutra experiência: adquirir ostras a uma maternidade francesa para as deixar crescer nos seus tanques. Em 2003, foram 50.000 as ostras-bebés, com um milímetro de tamanho, que foram mergulhadas nas águas da Sapalsado. O entusiasmo da altura adivinha-se nas palavras de Leal: “passados 30 dias, elas mediam um centímetro, e algumas mais”. Observaram então que em oito meses os moluscos atingiam o tamanho comercial óptimo, com cerca de 7 centímetros e 80 a 110 gramas, acima do qual perdiam valor. Nos viveiros franceses, as mesmas medidas demoram dois anos a serem alcançadas. Se, como diz Reinaldo Mendonça “não se consegue obrigar a ostra a comer”, a quantidade de nutrientes das águas e a sua temperatura influem nesta aceleração do tempo de crescimento. Por outro lado, quando sujeitas a análises, verificou-se que em algumas ostras o peso do músculo ultrapassava o da casca, situação rara num bivalve. A qualidade também estava acima de quaisquer dúvidas, ultrapassando todas as expectativas: os coliformes fecais detectados estavam abaixo do limite mínimo detectado pela análise. “Analisadas antes da depuração, as nossas ostras têm a mesma qualidade que as do estuário depois de depuradas”, declara Reinaldo Mendonça apontando os resultados dos estudos a umas e a outras. Contudo, apenas pela observação da cor do músculo de cada uma delas, permitimo-nos afirmar que a capturada directamente no estuário, mesmo após limpeza, convida muito menos à sua ingestão.
Testes e análises feitos, era altura de efectuar uma última prova, a do consumidor. A quantidade resultante da primeira produção de ostras foi quase totalmente utilizada na divulgação do produto, em Portugal e em França. Se em Portugal o hábito de comer ostra ainda não se instalou e o êxito ficou mais ou menos confinado aos convivas dos eventos em que a Sapalsado participou, em França, um dos países com maior consumo de ostra e mais exigências a nível da sua qualidade, o impacto foi positivo. Em 2003, a empresa exportou para este país 5 toneladas de bivalve, valor que quintuplicou no ano seguinte. Definitivamente, a aposta estava ganha e a outrora famosa “huître du Sado” voltava a ocupar o seu lugar à mesa dos franceses.
Porém, não se pense que tudo são apostas ganhas na Sapalsado. Situada dentro da Reserva Natural do Estuário do Sado (RNES), são grandes os problemas com que se debatem, provocados pelo atrito com o Instituto de Conservação da Natureza (ICN) e com a própria RNES. O acesso à energia eléctrica é um deles. Apesar de, ao longo dos 14 hectares que constituem a propriedade, os olhos tropeçarem sistematicamente nos postes de alta tensão provenientes da central eléctrica de Mitrena, até Maio de 2006 a empresa estava impedida de levar a cabo um projecto subterrâneo de distribuição eléctrica. A energia consumida pela Sapalsado é fornecida por dois geradores alimentados por combustível fóssil o que, como afirma António Leal, “sai mais caro e mais poluente.” Diz o empresário: “Estamos a queimar à volta de 5000 litros de gasóleo por mês e, além disso, no caso de necessitarmos de arejar apenas uma parte do viveiro, temos de ligar tudo.” Contudo, os dois sócios não perderam a esperança de verem aprovado o seu projecto de fornecimento de energia eléctrica à piscicultura. Ainda nas palavras de Leal, “penso que agora há ideia de nos autorizarem”.
Outra situação prende-se com o facto de a empresa estar também impedida de construir uma casa destinada ao armazenamento de rações, à verificação veterinária, ao embalamento do peixe e das ostras e, no caso destas últimas, à sua depuração. Se podemos concordar que a edificação na zona poderá ter um impacto ambiental menos positivo se não cumprir regras, o facto é que a solução entretanto encontrada, e aceite pela RNES, apesar de facilmente movível, traz à zona um aspecto degradado. Ao lado da construção que abriga os dois geradores ficam os contentores onde são guardadas as rações e, no seu seguimento, umas precárias traves sustentam uma rede verde, que pretende abrigar o local de pesagem.
Aliando a falta de energia eléctrica à ausência de instalações capazes, todo o esforço que os dois sócios estão a efectuar para valorizar a ostra do Sado pode ficar comprometido. Impossibilitada de ter os seus meios próprios, a Sapalsado tem de recorrer a uma empresa externa, a Barrosinhos, para depuração e embalamento dos seus bivalves. Apesar de modernamente apetrechada, e de não ser questionado o desempenho desta unidade, a realidade é que o selo de certificação que acompanha as ostras é geral para todos os produtos embalados na empresa. Por si só, o facto não constituiria problema de maior se do mesmo local, e com o mesmo selo, não saíssem também ostras criadas no Sado, de qualidade inferior às produzidas pela Sapalsado, mas facilmente confundíveis pela etiqueta que apresentam. Entretanto, apesar de todos os problemas, e sempre apostada na qualidade, a empresa tem como objectivo aumentar o valor das exportações, que pretendem que ascenda às 50 toneladas, além da vontade de pôr Portugal a comer ostras. No imediato, em território nacional, já há clientes a receberem, por mês, uma média de 350 quilos do bivalve.
Acreditando nas potencialidades da aquicultura e da zona onde se inserem, os dois sócios gostariam de ver autorizados para exploração mais alguns hectares das marinhas abandonadas do estuário do Sado. Como diz António Leal, “se estão abandonadas, elas já foram construídas, já foram mexidas pelo homem e o impacto paisagístico, a existir, será mínimo”. Se pensarmos em termos da melhoria da qualidade da água, e tendo como ponto de partida os resultados das análises feitas em relação à Sapalsado, o estuário só teria a ganhar. Contas feitas pelos dois sócios, a exploração de 5% dos 23.500 hectares da zona protegida, seriam suficientes para criar cerca de 600 postos de trabalho directos, que seriam importantes numa região depauperada como é a de Setúbal.

Ciclo de produção da ostra

Importada de maternidades francesas, a ostra é colocada ainda bebé em sacos de rede de acordo com os seus tamanhos. É dentro destes sacos espalmados, assentes sobre estrados metálicos que pousam no fundo dos tanques, que os bivalves se desenvolvem. Ciclicamente, todos os sacos têm de ser retirados, os moluscos, que entretanto se uniram, cuidadosamente separadas por forma a que a sua casca não fique ferida e a quantidade que anteriormente ocupara um único saco passa a dividir-se por três, de perfuração maior, com capacidade para permitir o crescimento da ostra. Esta operação é executada várias vezes ao longo dos oito meses que o bivalve demora a atingir a medida comercial. Nessa altura, e de acordo com as encomendas existentes, duas vezes por semana a ostra é recolhida do viveiro, levada para a depuração durante 24 horas e embalada. Caixas com 5 quilos da iguaria ficam então prontas para a distribuição. Na região de Setúbal, o próprio Reinaldo Mendonça faz a entrega em mão. Fora dessa área, as ostras são confiadas a uma empresa de distribuição que assegura o transporte em boas condições e prazos compatíveis com o grau de exigência do produto e dos seus clientes, entre os quais se contam o Tavares Rico e a Travessa, em Lisboa ou a Champanheria e a Pousada de São Filipe, em Setúbal.


Vega Mar & Aventuras #23 Outubro/Novembro 2006