agosto 31, 2006

originalmente ostra


Cria e recria em concha de ostra, coral, madrepérola, búzios. Das suas mãos podem sair reproduções fiéis do quotidiano como peças abstractas que foram tomando forma na sua mente irrequieta. Tanto quanto julga saber, o seu trabalho é único no mundo. Em Portugal não tem dúvidas, não há mais ninguém que o faça. Está disponível para ensinar, só não tem quem queira aprender.

António Cruz nasceu há setenta anos, por terras do Norte. De lá transporta o sotaque vincado, que o tempo não apagou. Foi aí, ainda miúdo, que começou a trabalhar os arames e as madeiras para fazer os brinquedos que os pais não lhe podiam dar. Para este homem vindo “do tempo em que, com sete anos, já ia apanhar lenha”, “a bola era uma meia e uns trapos. Se apanhasse uma bola de borracha pequenina, já me considerava muito rico.”
Contudo, a falta de meios económicos nunca retirou a criatividade ao miúdo: “uma coisa que eu gostava de fazer era barcos”. O gosto ficou-lhe pela vida fora, mesmo que aos quinze anos, se tenha feito ao mar para ganhar a vida. Teve várias profissões, “mas fui essencialmente pescador. Andei na pesca do bacalhau, depois andei nos barcos, em Lisboa, mais tarde vim para Alcochete”.
O atelier de António Cruz fica num anexo da sua casa. No espaço que medeia os dois edifícios podem ver-se ostras a secar. É aí que António ou a mulher esmagam as cascas dos bivalves para os acabamentos das peças. Já no interior da oficina, junto à janela, uma bancada de trabalho serve-lhe de poiso. Empurrado contra a parede, um monte de conchas que esperam por vez para verem aproveitadas as suas formas em objectos que crescem ao ritmo de quem as cria. O artífice gosta de trabalhar ao sabor da sua inspiração e encomendas, torna-se difícil aceitá-las. Embora já o tenha feito, diz que esta forma de laboração se torna “um compromisso e não é a mesma liberdade de estar a criar”, afirmando peremptório: ”eu gosto sempre de fazer coisas diferentes, é isso que me entusiasma”.
Comprovam-no as peças expostas numa segunda divisão do atelier. Num espaço com pouco mais de 20 m2 espraiam-se por vitrinas alguns dos seus trabalhos. Entre reproduções e figuras simbólicas, pode apreciar-se de tudo. A um canto, uma cópia da Alcatejo, a fragata pertença da Câmara Municipal de Alcochete, de um dos lados, algumas barcaças, representações das artes piscatórias, com as redes miúdas, elaboradas com minúsculos búzios. Há ainda toda uma série de presépios e figuras abstractas que o artesão gosta de elaborar, pequenas obras-primas da habilidade de um homem que começou nisto de ser artesão há 37 anos.
Por volta de 1969, António Cruz decidiu deixar as lides marítimas: “ vim para Alcochete, porque andava sempre fora de casa. Escolhi fixar-me na Câmara, em fiscal de mercados.” Passou a ganhar cerca de metade do que auferia anteriormente mas contava com o jeito que sempre o tinha acompanhado para fazer pequenos trabalhos. No início dedicou-se à marcenaria. Já aí gostava de produzir peças diferentes e é com orgulho que fala nos guarda-jóias com segredo que saíram das suas mãos. Contudo, a insistência da filha para que visse umas peças feitas por um pescador veio mudar-lhe o rumo da inspiração: “era uma pessoa que tinha um barquito e fazia uns trabalhos com ossos de galinha e concha de berbigão e amêijoa.” Quando viu aquilo, ocorreu ao artífice começar a trabalhar em casca de ostra. A matéria-prima estava ali bem à mão: “comecei à base de concha daqui de Alcochete. Era eu quem a ia apanhar, nas marés baixas.” Para as escolher, olhava as suas formas. Se, ainda no chão, lhe sugerissem o início de uma peça, então trazia-as consigo.
Segundo conta, a inspiração vem-lhe essencialmente do feitio dos materiais que utiliza “todas as formas que vejo, posso servir-me delas. É uma questão da pessoa ter a capacidade de as aproveitar.” Quanto às suas peças maiores, “qualquer delas são a história da vida”. E por história da vida entende-se aquilo que António vivenciou ao longo da sua, como é o caso de duas das mais imponentes peças que podem ser vistas no seu atelier: uma, a reprodução de uma das mais ancestrais tradições da terra que o acolheu, o quotidiano da vida numa salina; a outra, o dia-a-dia num bacalhoeiro, peça baseada na sua experiência pessoal pelos mares da Terra Nova.
A representação da água é executada em madrepérola, os barcos em cascas de ostra cuidadosamente ligadas. Apenas alguns pedaços de arame são utilizados em peças que necessitam de um esqueleto que as suporte e, mesmo esses, são escrupulosamente cobertos com o mesmo material moído, utilizado nos acabamentos, de cores previamente escolhidas. Isto porque nem tintas entram no trabalho deste artesão, sendo todas as tonalidades dos pormenores das peças escolhidas entre os pós de cascas de bivalves esmagadas e posteriormente peneirados de acordo com a espessura pretendida. Também as velas que enfeitam os barcos são feitas utilizando o mesmo sistema. Depois de escolhido o matiz pretendido, o pó é deitado sobre uma placa metálica, na qual é colocada também cola e é dessa pasta, devidamente misturada, que irão sair as imitações dos panos enfunados.
Para todos estes apuramentos técnicos obtidos através de longos anos de experiência é que António Cruz não tem seguidores. Se em tempos a Câmara Municipal de Alcochete promoveu um curso para formação de artesãos nesta área , findo este, os potenciais artífices dispersaram-se e não há notícia de que mais alguém se dedique a este tipo de trabalho. Como diz António Cruz, “se houvesse mais gente a trabalhar nisto, ganhava o país e ganhava a terra, até porque o estrangeiro ia ver um trabalho que mais ninguém faz”. Mas, para o conseguir, seria necessário o apoio de alguma instituição, uma vez que a forma de trabalhar deste artesão, com a inspiração em roda livre, não se presta à contratação de um aprendiz.
Quanto à divulgação, ela é pouca. Excepção feita a uma ou outra entrevista, à presença num dos livros editados pela câmara, apenas a comparência em exposições e em feiras de artesanato têm difundido o seu trabalho. Contudo, António Cruz não é grande adepto desta modalidade e os seus motivos são vários. “Sou uma pessoa que gosto muito é de estar a trabalhar no meu cantinho”, diz, adiantando “é diferente. Estar numa exposição é ficar ali à espera.” Se este não fosse motivo suficiente, outros há que se prendem com a própria organização destes eventos. É que, nas exposições de artesanato, o artífice é convidado mas tem de pagar o espaço que ocupa e, apoios, o artista apenas tem o da Câmara Municipal de Alcochete que se limita a fazer o transporte das obras, o que o leva a comentar: “se alguém vai a uma televisão cantar um fado, recebe um cachet porque dá espectáculo. Um artesão vai a uma feira, dá espectáculo e ainda tem de pagar. Em Vila do Conde, ultimamente, além de pagar o stand, ainda tive de pagar 3% sobre as vendas.”
Com obras, que podem custar entre os módicos 7,50 € e os 7.500,00 €, este homem tem trabalhos espalhados por colecções particulares desde a Europa até à Ásia. A ele recorre a Câmara Municipal de Alcochete quando quer fazer uma oferta institucional e, embora já tenha tido alguns convites para trabalhar para o estrangeiro, declina as ofertas, antes convidando os potenciais compradores a visitar o seu atelier para aí escolherem entre as peças já produzidas.
António Cruz é o típico o artesão movido essencialmente pelo bafo da inspiração.
Vega Mar & Aventura #20 Abril/Maio 2006

Sertão é recolhimento



Dizem, e é bem capaz de ser verdade, que o amanhecer brasileiro se esmera quando se aproxima do São Francisco.

Se há algo que este rio possui e transmite é a identidade, essa identidade caipira, de fala mansa e olhar brilhante, num ritual pausado de dádiva sem esperar permuta.
Porém, outro dos seus traços marcantes, este extensível à totalidade do território brasileiro, é a desigualdade que faz com que metade da sua riqueza esteja concentrada em apenas 10% da população. Todo o Nordeste observa esta regra sendo-lhe habitual a convivência entre o progresso e a regressividade social ao que não é alheia toda a sua história - a ligação entre o cristianismo e a escravatura de que resultou uma sociedade teoricamente cristã mas de práticas opostas; a combinação entre o liberalismo e a escravidão de onde resultaram liberdades civis para uma escassa minoria, até à aliança entre o desenvolvimento e a desigualdade estrutural que originou uma discrepante concentração de riqueza.
A história do Nordeste e da gente do São Francisco está intimamente ligada à da descoberta e colonização do Brasil, simples de contar nos atropelos aos direitos do homem e da natureza - 1501, dia de São Francisco, Américo Vespúcio ao serviço da coroa portuguesa descobre a foz daquele a que, há milhares de anos vogando entre margens, retirando do seu curso o alimento, a argila para os utensílios, os índios chamavam Opara (Rio-Mar). Obedecendo às ordens reais, os nomes nativos dariam lugar a outros que evocassem a cultura cristã dos colonizadores. Se inicialmente a alteração se limitou ao nome, o tempo e o homem trataram de fazer evoluir a transformação. Em 1549 chega o primeiro governador do Brasil, Tomé de Souza, acompanhado por Francisco Garcia d'Avila, primeiro senhor da Casa da Torre e percursor dos bandeirantes. Nas caravelas, gado. Estavam reunidos os ingredientes principais para o início da lenta devastação - evitando a destruição dos canaviais, o gado era conduzido para o sertão, preferencialmente ao longo do rio. Os animais teriam terra e água para crescer e Portugal iniciaria o processo de colonização. Terras? As dos índios, agora dizimados e foragidos. Em 1600 começaram a chegar os missionários com outras intenções que não as dos lucros económicos, mas as facilidades previstas estiveram longe das encontradas. Se por ordens reais cada donatário deveria conceder uma légua de terra às missões, na colónia longínqua prevalecia a lei do mais forte. Por outro lado, o efeito das missões na preservação das culturas nativas estava em consonância com a época que se vivia. Os missionários que conseguiram instalar-se tentavam efectivamente defender os indígenas da violência física dos colonos mas faziam-no agregando-os em aldeias tipicamente europeias, tentando alterar as suas crenças, negando-lhes a ancestral memória cultural e civilizacional, descaracterizando-os. Em simultâneo, e na dificuldade de escravizar a população nativa, a rota da escravatura passou a fazer escala no Brasil onde eram deixados alguns dos negros capturados em África. Em tudo isto o São Francisco tomou parte activa e é mostra viva, ficando assim composta a miscelânea genética vindoura, o retrato do homem do São Francisco dos nossos dias, um misto do sentimento semi-trágico do colono ibérico, da dignidade do índio e da estrutura física do africano numa amálgama condensada de crenças e costumes tão díspares como as culturas que o compõem.
Desde a sua nascente no Miradouro da Canastra, em Minas Gerais, até à foz no pontão do Cabeço, em Alagoas, o “Velho Chico” atravessa cinco estados (Minas, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas). Uma das principais referências hídricas do Brasil, ele tem sido estrada, energia e alimento, além de ponto de confluência cultural.Com o evoluir dos séculos a importância deste rio nunca foi ignorada. Na voz do povo ele foi o “Caminho Geral do Sertão”, o “rio dos currais” que, auxiliados por longos e pesados varejões com pontas de ferro que apoiavam no fundo como forma de impulso, homens atravessavam nas suas balsas transportando gado, carga preciosa à altura Já pelo século XVII, a notícia de ouro por aquelas paragens atraiu exploradores, aventureiros, desempregados. Foram alguns os casos em que o rio foi represado ou desviado artificialmente para outros canais deixando o seu leito a descoberto. Durante a Segunda Guerra Mundial o São Francisco foi uma alternativa segura para evitar os submarinos alemães como, mais tarde, foi caminho para seringueiros recrutados para trabalhar na Amazónia ou para os migrantes em busca de vida melhor em S. Paulo. Era o tempo dos vapores que misturavam na sua carga pessoas, legumes, café, algodão e animais, o tempo em que foi chamado o “rio da unidade nacional”. Para o designar assim hoje, só percorrendo as suas margens.
Onde antes navegavam vapores hoje apenas podem circular balsas, pequenos barcos de transporte entre populações ribeirinhas ou barcaças de pescadores que açoitam o rio na tentativa de espantar para as suas redes o pouco peixe existente. Apesar do rio se mostrar depauperado muitos mantêm-se na lida, conscientes de que os seus poucos estudos não lhes proporcionariam outra renda maior.
A decomposição ecológica levada a cabo pelo homem ameaça ressequir essa corrente ainda valiosa: cerca de 95% dos manguezais e vegetação que outrora ladeava as suas margens foram destruídos para fornecimento da indústria do carvão provocando um assoreamento constante; as barragens vêm retendo as águas, alterando a sua temperatura, os ciclos do rio e da piscicultura; os dejectos químicos dos mega- projectos agrícolas contaminam as águas e aniquilam o peixe na mesmo proporção; fábricas de açúcar drenaram terreno e plantaram cana; as cidades ao longo do seu curso vertem nele as águas residuais. Debate reacendido em cada campanha eleitoral, discute-se a sua transposição que levará água às terras mais áridas do Ceará ao que se opõem os que reclamam pela revitalização do “Velho Chico”.
De tudo vai restando a memória da gente do São Francisco, a fartura que o rio lhes proporcionou. Adaptaram-se e aguardam sem grandes expectativas. Essencialmente pescadores e agricultores, vendem nos mercados o resultado do seu labor na terra ou na água. São também artesãos, seguidores dessa arte que lhes ficou dos seus antepassados índios. Modelam o barro, agora mais para turista comprar do que para seu próprio usufruto. Porque o presente não tem muito para mostrar, moldam as “boiadas” e os “boiadeiros”, imortalizam Lampião, o cangaceiro justo do Nordeste. Por poucos reais, camionetas levam o seu trabalho anónimo para a Bahia, bastião do turismo nordestino.
Nas pequenas comunidades ribeirinhas o quotidiano decorre lento, ainda indiferente no que respeita ao futuro. Miúdos mergulham ou lançam a tarrafa que traz o peixe miúdo para o lanche, lava-se roupa, areiam-se tachos, numa autêntica casa sem tecto nem paredes. Da povoação maior chega a barcaça com aqueles que foram buscar o essencial. Por um real, dois miúdos carregam os sacos e entregam-nos na carroça puxada pelo burro pachorrento. De quando em vez passa o barco com turistas curiosos. Na esplanada do bar observa-se calmamente a passagem do dia ao sabor da cerveja anunciada em cartazes apetecíveis. O ensino e a saúde chegam ali bem mais dificilmente do que a publicidade.
Território não é apenas um mapa como um povo não é um mercado mas uma interacção de gente, cultura, trabalho, memória, política e fé. Torna-se por isso necessário melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) sendo prioritário transformar as comunidades ribeirinhas em guardiãs da sua própria riqueza fomentando a reflorestação das suas margens bem como a vigilância sobre a evolução da piscicultura em conjunto com técnicos, além de alertar todos os que estão ligados ao ensino e possuem meios para despertar a consciência ecológica nos alunos, não apenas nos municípios, banhados pelo São Francisco mas também dos que ladeiam os seus afluentes, bombeadores de água e de vida para o “Velho Chico” envelhecido.
Cheias e secas fazem parte da história de vida do povo ribeirinho e integram a história económica e social da região do São Francisco. Se as cheias representam grandeza para o povo, as vazantes correspondem à sua miséria. Contudo, chuvadas invulgares como a de 2004 não encontraram recipiente que as comportassem. As descargas das barragens, há 10 anos de comportas fechadas, fizeram com que o São Francisco e seus afluentes saíssem das margens, ensaiando retomar as suas terras cobrindo as cidades que banham como que reclamando do desrespeito de que têm sido alvo pelo homem.
Desde 1979 que o nível das águas não sofria um aumento tão significativo – desembocando no Atlântico entre Alagoas e Sergipe, a foz do rio aumentou 316%: passou de 1.200 para 5.000 metros cúbicos por segundo, a Defesa Civil ficou em alerta máximo. Populações inteiras viram-se desalojadas, o barco passou a ser o transporte possível entre telhados. Comunidades, já por si naturalmente depauperadas, viram os seus campos de cultivo submersos, as colheitas destruídas. Há quem fale na alegria do sertanejo que vê nestas cheias o aumento da procura de mão-de-obra para o conserto da destruição visível, emitem-se opiniões sobre o verde que emergirá de terrenos agora empapados de um castanho devastador, omite-se o juízo daqueles que, habituados a ter pouco, se viram repentinamente sem nada.
A Secretaria Nacional de Defesa Civil alertou as prefeitos de todas as cidades que ficam às margens do rio nos estados de Alagoas e Sergipe e pediu para que as prefeituras e as coordenadoras estaduais de defesa civil tomassem as providências de retirar as pessoas das áreas que devem ficar inundadas, é certo. É também realidade que o director do Departamento de Minimização de Desastres da Secretaria Nacional de Defesa Civil informou que os órgãos federais estariam preparados para enviar ajuda aos municípios atingidos pelas inundações dizendo “Nós estamos em contacto directo e, se houver alguma coisa que fuja do controle e que dependa do accionamento de alguma coisa da área federal, esse accionamento vai ser de imediato e nós vamos tomar as providências”, mas cabem aqui duas perguntas: de que controle podem as coisas fugir? Que providências conseguem ser tomadas substituindo a ausência delas ao longo de séculos?
As chuvadas já lá vão e basta uma pequena pesquisa para perceber que as suas consequências já são passado, já não fazem notícia, deixaram de importar ao país e menos ainda ao mundo. Lentamente tudo volta ao que é a normalidade nesta região e apenas os locais terão mais histórias para contar, sempre naquele sotaque sertanejo, pausado e sorridente de quem não se insurge contra a desgraça, venha ela dos céus ou da gente terrena. Unicamente memórias, porque o importante é passar este dia, amanhã se verá. O Deus dos brancos, os dos índios ou todos em conjunto se ocuparão da gente do Nordeste e do São Francisco defendendo-os de desgraças maiores.
Vega Mar & Aventura #17 - Novembro/Dezembro 2005

os cavalos também curam



Já na Grécia Antiga Hipócrates chamava a atenção para a prática da equitação como forma de melhorar o estado anímico das pessoas com doenças crónicas e, no século XV, Dom Duarte, na sua obra “ Artes de Bem Cavalgar em Toda a Sela”, salientava os benefícios que a prática de montar a cavalo trazia à saúde dos praticantes. Hoje, a hipoterapia é definitivamente reconhecida como uma forma terapêutica alternativa e complementar.

O vento é agreste mas não o suficiente para desmotivar os voluntários da Associação Hípica para Deficientes de Cascais (AHDC) que vão chegando ao picadeiro. Maurício e Índia, os cavalos escolhidos para esta sessão, já foram passados à corda para que se mantenham calmos, característica essencial dos animais utilizados na equitação terapêutica. Fisioterapeutas, monitores de equitação e voluntários trazem a caixa onde os toques são guardados. Cadeiras, pinos e jogos de cores são dispostos nos locais previamente estabelecidos. Está tudo a postos para quem começa a chegar nas carrinhas das instituições, das autarquias ou em carros particulares.
São alunos especiais que nestes dias frequentam as aulas de equitação no picadeiro do Clube D. Carlos, no Guincho. Crianças e jovens com quem a exactidão da natureza ou dos médicos falhou, deixando-lhes marcas e incapacidades mais ou menos severas, umas vezes bem visíveis outras nem tanto, e a quem a equitação terapêutica auxilia a ultrapassar as suas dificuldades. Problemas que vão desde a paralisia cerebral ao autismo podem ver resultados práticos de melhorias físicas e comportamentais através da prática da hipoterapia.
Como explica Paula Caracol, uma das voluntárias da AHDC, “a equitação terapêutica tem várias vantagens. Ao andar, o cavalo envia ao cérebro do cavaleiro estímulos em tudo semelhantes aos de uma caminhada, o que conduz a uma melhor noção do espaço e aumenta o sentido de equilíbrio”, além de que, “se pensarmos que a maior parte destas pessoas passa a vida numa cadeira de rodas, a visualizar tudo de baixo para cima, o simples facto de estar em cima do cavalo, numa posição superior, vai influenciar de forma positiva a sua forma de olhar o mundo. Ela deixa de se sentir numa posição de inferioridade e aumenta a sua auto-estima ”.
O ambiente é de boa disposição. Os primeiros cavaleiros são conduzidos até às montadas enquanto os restantes aguardam ansiosamente a sua vez. Os exercícios, porque todos os casos são diferentes, são adaptados a cada situação e vão sendo desenvolvidos em cima do cavalo: “Vamos dizer adeus a todo essa gente! Com as duas mãos!”, ouve-se uma voz. Sem dar por isso, ao retirar as mãos do cavalo, Paula executa um movimento que vai ajudá-la a melhorar o equilíbrio. Do lado oposto do picadeiro outro grupo anima David a apanhar os sacos coloridos previamente dispostos no muro: “Muito bem, David! Agora vamos atirá-los para os baldes.” E, ao acertar no recipiente da cor do saco, a criança exercita a sua parte cognitiva ao mesmo tempo que desenvolve a sua força muscular.
Também o corpo peludo e quente do animal constitui um centro de estímulos para o cérebro do cavaleiro que ao acariciar o cavalo desenvolve o seu lado afectivo. Talvez por isso Paula se debruce agarrada ao pescoço de “Maurício” e lhe diz: “és o melhor amigo que eu podia ter arranjado, e não tenho vergonha de o dizer”.
Já no Centro Equestre João Cardiga (CEJC), em Barcarena, Leceia, o ambiente é despreocupado e familiar. Laura chega pontual cumprimentando toda a gente na alegria dos seus quatro anos. Percebe-se que conhece bem os cantos e os hábitos da casa. Não é caso para menos. Elisabete, a mãe, cedo intuiu que a equitação seria uma forma de ultrapassar os problemas originados pela Trissomia 21 que afecta a filha e com apenas dois anos já a pequena Laura se sentava sobre o dorso de "Jackie". A mãe está convicta de que o contacto com os cavalos ajudou a que a filha seja hoje uma criança muito afectiva e segura de si mesma. Educadora de infância de profissão, Elisabete nota que, apesar do problema congénito da Laura, “saltar com os dois pés juntos ou subir para uma cadeira não constituem problema para ela, ao contrário do que acontece com algumas crianças da sua idade”.
No picadeiro, muito compenetrados, os miúdos levam "Jackie" à corda. Também este momento é importante para a sua auto-estima. Os papéis invertem-se e a criança, habituada a ser conduzida, passa a ser responsável pelo animal que segue a seu lado.
Já em cima da montada, os exercícios tornam-se momentos lúdicos. Sobre o tapete de pêlo que se move a passo, Alfredo Nogueira, o fisioterapeuta do CEJC, vai pedindo posições que ele mesmo exemplifica: "mãos atrás do pescoço. Isso mesmo!” Sobre o dorso do cavalo, deitados, de costas ou de frente, os miúdos riem com as brincadeiras dos monitores: “vamos descalçar o chulé?” André ri-se e deixa que lhe tirem os sapatos. “E agora, senhoras e senhores, para a televisão, o André vai fazer um exercício muito difícil!”, Alfredo faz a locução enquanto coloca a criança em pé, sobre o pónei, continuando: “ e aqui está! Uma volta em pé sobre a "Jackie"! Diz adeus à mãe, André!” E o miúdo segue caminho, mandando beijos de mão para trás do vidro onde a mãe o observa. André tem problemas de equilíbrio que o levam a cair muito facilmente. A conselho médico começou a frequentar a hipoterapia e a mãe confirma os resultados positivos: “o tónus muscular do André tem vindo a aumentar, assim como o seu equilíbrio”.
Cada pequeno progresso notado nos pacientes é motivo de satisfação para todos os envolvidos. É o caso de Sara. Ela tem 24 anos e frequenta as sessões de hipoterapia há cerca de um mês. “Quando chegou, a tensão dos músculos da Sara não lhe permitia deitar-se sobre o cavalo, neste momento já o faz”, conta Alfredo que, de acordo com o diagnóstico clínico de cada paciente, lhe aplica os exercícios apropriados para melhorar as zonas mais fragilizadas do corpo. “Não é milagroso, mas verificamos muitos progressos nos nossos miúdos e isso deixa-nos naturalmente satisfeitos”, afirma Lurdes Cardiga que, em conjunto com o marido, João Cardiga, dirigem o CEJC.
É aliás um sentimento generalizado entre os que estão ligados à hipoterapia, pequenos gestos são motivo de regozijo para todos.
Malica, outra das voluntárias da AHDC, não esconde a sua satisfação quando Diogo bate palmas em cima do cavalo. Já na sessão anterior ela percebera que, apesar do aparente alheamento sobre o que o rodeava, Diogo seguia o pai com os olhos quando este se deslocava e ficara contente quando o jovem resistiu à mão com que o segurava. Os gestos que Diogo efectua agora sobre a montada trazem-lhe novo sinal: “este menino está a reagir, isto é muito bom!”

Equitação adaptada para competir a sério


Mas não se pense que o tratamento pelos equídeos termina na hipoterapia. Como afirma Carlos Lopes, do centro hípico da Quinta do Senhor da Serra, em Belas, “a equitação terapêutica é uma etapa que nos permite partir para uma verdadeira reintegração social destas pessoas através da aposta na equitação adaptada”. Esta modalidade permite aos seus praticantes o desenvolvimento de capacidades que lhes vão facultar a autonomia no manejo dos cavalos e, inclusivamente, participar em competições nacionais e internacionais.
Se tal é importante sobre o ponto de vista físico, as proporções a nível psicológico são muito maiores. Para quem sempre sentiu limitações inerentes à sua condição física, a possibilidade de as ultrapassar e atingir lugares de pódio é no mínimo encorajadora. Com este intuito Carlos Lopes é um dos mais acérrimos impulsionadores da equitação adaptada, empenhando-se, no ano de 2002, em trazer o Campeonato Europeu para Portugal: “Se nós não tínhamos dinheiro nem apoios para levar os nossos cavaleiros à Europa, trouxemos a Europa até Portugal” diz, continuando: “se temos praticantes, não podemos ficar parados! Temos o dever de investir nestas pessoas, mostrar-lhes novos horizontes, fazê-los acreditar que podem e devem fazer tudo para ultrapassar as suas dificuldades físicas.”
Sendo a prática da equitação adaptada ainda mais recente do que a da hipoterapia, os atletas portugueses, maioritariamente sem apoios, dependem quase exclusivamente de si e da boa vontade dos seus treinadores para o bom desempenho da modalidade e apresentação em concursos. A título de exemplo, até fins de Fevereiro de 2005, ainda não existia qualquer calendário de provas que permitisse aos atletas competirem entre si e aferirem dos progressos alcançados.
Outro problema que se coloca são as dificuldades que a maior parte dos cavaleiros tem em adquirir um cavalo que se adapte às suas condições físicas. “Uma solução possível poderia ser a parceria entre alguns criadores, que cederiam cavalos, e os atletas, que os representariam nas competições”, sugere Lurdes Cardiga, do CEJC, centro ao qual pertence Sara Duarte, um dos exemplos de sucesso possível de alcançar.
Sara, que ficou em terceiro lugar no Campeonato Nacional de Equitação Adaptada em 2004, tem vinte anos e começou a praticar equitação aos sete. Apesar da paralisia cerebral que a afecta, a jovem tem hoje uma vida autónoma, frequenta o primeiro ano do curso de farmácia e é motivo de orgulho do seu treinador, João Cardiga, que afirma retirar do seu trabalho como técnico de equitação adaptada “um prazer muito pessoal que é o de assistir à evolução miúdos marcados por dificuldades, tornando-se autónomos até ao ponto onde está a Sara”.

"É possível"

Marco Mateus tem catorze anos e chegou ao centro equestre de Belas há 3. Uma paralisia cerebral à nascença marcava-lhe a força, o equilíbrio, as capacidades físicas. Na sequência das sessões de hipoterapia, Carlos Lopes viu nele as potencialidades necessárias a um atleta de equitação adaptada e decidiu investir no jovem cavaleiro a quem exige treino e persistência. Como o próprio treinador afirma: “ele tem hipóteses, em cima do cavalo é igual a qualquer outro. Se tiver a força de vontade suficiente pode perfeitamente ultrapassar todas as dificuldades físicas e chegar às competições”.
Para já, Marco vai construindo a sua própria autonomia. Quer ser informático e para o conseguir divide o seu tempo entre o estudo e a equitação. Sente melhorias relativamente a força muscular e ao equilíbrio embora por vezes sobrevenha o desânimo dos treinos repetidos mas, para essas ocasiões, lá estão a mãe e os dois treinadores, Carlos Lopes e Miguel Gomes, repetindo-lhe que: é possível.

Notícias Magazine #688 - 31.07.2005

espadartes ao largo



Para o visitante comum, Sesimbra são os acessos íngremes, a marginal, as traineiras e pequenos barquitos a remos, as gaivotas que indiciam o barco que regressa carregado com peixe, o cheiro do pescado misturado com o da maresia. Para os seus naturais e para os amantes da pesca desportiva a vila é bem mais do que isso.

Nessa noite ainda só cheirava a mar. O peixe chegaria mais tarde, pelas mãos daqueles homens que caminhavam ao longo da marginal em direcção às embarcações ancoradas no porto de abrigo. No escuro sobressaíam as luzes onde alguns pescadores se dirigiam para tomar o café antes de se fazerem ao mar.
Era o último dia do quinto Torneio José Pinto Braz, onde apenas é aceite a chamada “pesca grossa”, efectuada com cana e carreto, bem à maneira das tradições sesimbrenses.
Para o “Andalucia”, uma das embarcações concorrentes, foram transportados os bidões e as caixas com o isco fresco. A bordo, além dos quatro elementos da equipa, seguiam o Mestre Marcelino, para conduzir a aiola, e a organizadora do torneio, Geny Braz. A intenção era assistir ao nascer do sol no ponto anteriormente escolhido para lançar as linhas. No moderno sistema GPS visionava-se a rota, pelo rádio eram trocadas coordenadas com os outros barcos participantes.
Sacudido pelo cortar das pequenas vagas, o tema da conversa prendia-se necessariamente com a história do homem que dá o nome a este torneio e que está intimamente ligada ao historial turístico e piscatório de Sesimbra - José Pinto Braz.
Recordado como um homem dinâmico e de espírito empreendedor, José Braz foi durante muitos anos organizador de encontros de pesca desportiva em alto mar.
À altura, várias aiolas, pequenas embarcações que tinham como tripulantes apenas um remador e um pescador, faziam-se ao mar. A partir de uma traineira, o organizador comunicava com os participantes através de intercomunicadores, prestando-lhes a assistência necessária. No regresso aguardava-os o conforto, pouco comum à data, do Hotel Espadarte e restaurante com o mesmo nome, unidades hoteleiras também geridas por José Braz.
A eficiência deste homem nas organizações a que se propunha valeu-lhe o reconhecimento, traduzido na adesão de pescadores amadores portugueses e estrangeiros.
Em simultâneo, e na época baixa, “o vistas largas”, como era conhecido na vila, transportava Sesimbra à Europa, divulgando a sua terra natal e as organizações dele dependentes. De tal forma que, em 1975, a Direcção Regional de Turismo da Madeira convidou-o a desenvolver um projecto similar na região.
Desiludido pelo facto de não ver aprovado o seu propósito de ampliação do Hotel Espadarte, José Braz decide aceitar o desafio levando consigo a sua filha, Geny Braz, cujas potencialidades aproveitou ao inseri-la no mundo empresarial.
Contudo, a sua alma manteve-se sesimbrense e muitos, na sua terra e fora dela, também não o esqueceram. Por isso, talvez herdando a tenacidade de seu pai, Eugénia Maria Braz, com algum apoio do Clube Naval de Sesimbra e da Câmara Municipal, decidiu homenagear o homem que levou Portugal até à Finlândia e trouxe a Europa até Sesimbra. Para o fazer nada mais apropriado do que a organização de um torneio com as mesmas características dos organizados por José Braz.
Hoje as aiolas são em menor número, os remadores mais difíceis de encontrar mas, em maior ou menor quantidade, elas continuam a acompanhar as equipas, cujos elementos se revezam na aiola, à qual se prendem, a si e à cana, através de um arnês. Depois é esperar o toque do espadarte, a quem são oferecidos os iscos favoritos: chaputa, lula, sardinha.
Porém, este ano, nem todo o engodo deitado ao mar chamou a pescaria. Falou-se em “toques” à linha e em duas das embarcações pescaram-se peixes de sete e catorze quilos, que foram devolvidos ao mar. Esta é outras características deste torneio: exemplares com menos de vinte quilos continuam livres para percorrer o oceano, até porque aquilo que se pretende, além de recordar um nome, é recuperar a velha tradição em que os mares de Sesimbra davam ao homem a oportunidade de se debater com exemplares com mais de 100 quilos de peso, como aconteceu em 1958 quando Sesimbra alcançou dois recordes - da Europa e do Atlântico Norte, o maior espadarte e a captura de dois espadartes no mesmo dia, respectivamente com 259,5 Kg e 144,5 Kg, pescados pelo mesmo homem, Augusto Vilas Boas. Talvez no sexto torneio José Pinto Braz.
Magazine Domingo - 10.10.2004

marionetas de Lisboa



O quarteirão tem ar de abandono com o corpo da Feira Popular em decomposição de um dos lados e o defunto teatro-estúdio Vasco Santana do outro. Lá para o meio, despercebida, uma porta alta, em ferro. É no número 103-B da Avenida da República, que ficam as instalações das Marionetas de Lisboa.

Trata-se de uma instituição cultural criada por actores, dramaturgos e artistas plásticos que se juntaram com a intenção de estudar a Arte da marioneta, contribuindo para a sua renovação estética. Em simultâneo, assumem-se como uma companhia de reportório, preparada para ser itinerante e com vontade de divulgar a cultura portuguesa.
Como nos explica José Ramalho, director artístico do grupo, ao tentarem alcançar o chamado ”público escolar”, acreditam estar a contribuir para uma sensibilização às actividades artísticas, levando a que os jovens desenvolvam o hábito de consumir e valorizar a Arte como algo que é executado por profissionais.
No espaço cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, e do qual, perante a decrépita vizinhança, desconhecem o futuro, espalham-se alguns dos artefactos para uma nova produção, “ A menina que queria ser bobo da Corte”.
Trata-se de um sonho antigo de Cristina Pereira, um espectáculo apenas seu. Só agora se sentiu preparada para o fazer. Descreve o método utilizado no fabrico das marionetas que manuseia delicadamente. “Idealizei o espectáculo e compreendi que o sistema “bunraku” era aquele que mais se lhe apropriava. Estou a construi-las com os materiais mais naturais que me é possível. Mexem-se como se tivessem mecanismos e parafusos mas apenas têm linhas e pano”. Cristina quer que este espectáculo demonstre a sensibilidade feminina e, sobretudo, que de coisas muito despretensiosas também é possível criar o Belo.
Num espectáculo direccionado para todos as idades, no palco vão estar duas actrizes-marionetistas: a própria Cristina Pereira e Magda Moreira. É a elas que, durante quarenta minutos, cabe dar vida às várias marionetas, utilizando a já mencionada técnica “bunraku”, além de bonecos de luva e sombras.
Sozinho ou com crianças, que são sempre uma boa justificação para estas circunstâncias, vale a pena descobrir ou reencontrar a magia das marionetas, das vozes, das luzes e sombras, deste misto entre a realidade humana e a fantasia dos bonecos.
Estreia a 17 de Setembro, no mistério daquela sala com cheiro próprio, protegida das correrias da cidade pela porta alta, o número 103-B da Avenida da República.
Magazine Domingo - 26.09.2004

sacudindo a memória

Estamos habituados a comentar as glórias, ou a sua ausência, no desporto. Vestimos as janelas e os carros com bandeiras nacionais durante o Euro 2004, aplaudimos as medalhas dos olímpicos, esquecemo-nos geralmente dos Paraolímpicos, também eles atletas de alta competição e verdadeiros campeões.

Eles são aqueles que ganham prémios habitualmente mas a quem as câmaras raramente focam. Foram quinze, entre ouro e bronze, as medalhas trazidas de Sydney em 2000. Temos bi-campeões europeus, mundiais e paraolímpicos, nomes e feitos quase desconhecidos pela maioria das pessoas.
É gente que colecciona medalhas no estrangeiro e promessas quando regressam a casa. O incumprimento dos compromissos para com eles assumidos, ou a sua tardia concretização, consciencializam-nos de que lutam quase sozinhos para glorificar um país que esquece a sua existência.
Seja a nível de apoios estatais ou de prémios obtidos em competição, os praticantes de desportos adaptados continuam a ser alvo de distinção comparativamente aos seus colegas não portadores de deficiências físicas. A título de exemplo, só a 19 de Agosto deste ano foi assinado entre os organismos estatais competentes e a Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes (FPDD) o protocolo que permitiria aos atletas e respectivos técnicos usufruir de uma bolsa de preparação para os Jogos Paraolímpicos de Atenas.
Se é certo que esta bolsa tem efeitos retroactivos a 2003 e 2004, é também verdade que toda a preparação dos atletas foi feita à custa de si mesmos, do apoio das instituições a que estão ligados, que lhes disponibilizaram técnicos inteiramente dedicados e os espaços adequados à sua preparação, e da bolsa proveniente do “Projecto Super Atleta” cuja responsável, a FDPP, pretendeu mobilizar o país para as causas do movimento paraolímpico. No âmbito deste projecto, com a finalidade de captar a atenção do público em geral e, particularmente, do segmento onde estas pessoas estão inseridas, foram nomeados seus embaixadores algumas figuras da vida pública portuguesa como o actor Ruy de Carvalho, ou os desportistas Eusébio e Rosa Mota, sendo Luís Figo o patrono. Em simultâneo foi criado um programa de patrocinadores regulares da Federação, o que permitiu a atribuição de uma bolsa em numerário aos atletas participantes e assegurou os meios financeiros necessários para despesas inerentes à presença da comissão portuguesa em Atenas.
De salientar a atitude de técnicos e de atletas que, embora gostassem de ser tratados de forma igual, está muito longe de ser uma postura de queixa. Como afirma Carlos Mota, um dos treinadores destacados para acompanhar os participantes na modalidade de natação: “Não somos tão apoiados como os atletas olímpicos, mas temos o apoio que é possível.”
De 17 a 29 de Setembro decorrerão os Jogos Paraolímpicos de Atenas e Portugal estará representado em seis modalidades: atletismo, basquetebol, boccia, ciclismo, equitação e natação. As deficiências de que são portadores os atletas participantes são várias: motora, visual, intelectual e paralisia cerebral. Congénitas ou adquiridas, elas são algo que os tem acompanhado ao longo dos últimos anos ou durante toda a vida, problemas com os quais se habituaram a viver, barreiras que tentam constantemente transpor. Nas diversas modalidades que praticam eles são agrupados de acordo com o seu grau de deficiência, competindo assim em igualdade de circunstâncias com atletas cujas insuficiências são similares às suas.
Em Portugal talvez soprem ventos de mudança: as objectivas da comunicação social começaram a mostrar os nossos desportistas ao país e uma ou outra janela mantém-se enfeitada pelas cores nacionais, em sinal de apoio aos participantes nos Paraolímpicos.
Quanto aos atletas, estes mantêm-se fiéis ao que sempre pretenderam: com ou sem visibilidade, honrar as cores nacionais como vêm fazendo desde 1988, ano da primeira participação de uma missão portuguesa nos Jogos.

Atletas da Gesloures, trabalho e companheirismo

Carlos Mota é treinador na Gesloures e um dos técnicos destacados para acompanhar os atletas da modalidade de natação a Atenas. É ele quem explica: “Na Gesloures temos uma estrutura de trabalho montada. Quando as pessoas precisam de fazer reabilitação, muitos dos médicos aconselham a natação ou a ginástica aquática. A Gesloures está preparada para os receber e fazer a sua reabilitação, mas temos também outras saídas – depois de aprenderem a nadar, quem quiser pode continuar a frequentar a instituição por lazer, da mesma forma que há quem continue por desporto de rendimento, com o objectivo de ir a provas e participar em competições. Aqueles que mais se destacam acabam por fazer marcas de qualidade internacional e participar neste tipo de eventos.”
Aos atletas, se há alguma coisa de comum que os caracterize, é a boa disposição. Aceitam-se como são, tentam tornear os problemas que a sociedade lhes coloca como o fez Leila Marques quando quis entrar para o curso de medicina. Aparentemente a lei barrava-lhe o acesso pela notória ausência de um dos braços. Após muita insistência da candidata, finalmente alguém teve o bom senso de entender que a rapariga “dificilmente poderia fazer cirurgias mas nada a impossibilitava de ser médica”. Frequenta hoje o quinto ano de medicina, conciliando o curso com os treinos, num horário que a obriga a levantar-se às 5h30 para fazer duas horas de treino às 6h, seguir para a faculdade e voltar para a musculação às 17h.
Em circunstâncias semelhantes Susana Barroso, Nuno Vitorino e Maria João Morgado.
Susana Barroso é portadora de uma disfunção muscular progressiva. Embora sempre com esperança que a evolução da genética lhe venha a impedir a progressão da sua doença, tal não a impede de ocupar um cargo de responsabilidade no campo profissional e ser bi-campeã europeia de natação e vice-campeã paraolímpica nos 50 metros costas. Por seu turno, o nadador e informático na Câmara Municipal de Lisboa, Nuno Vitorino, afirma que “há muito sacrifício por parte dos atletas para chegar aos Paraolímpicos. Apenas 5% deles, ou talvez menos, conseguem cumprir esse percurso”, ao mesmo tempo, e sem falsas modéstias, declara: ”Sinto-me orgulhoso por fazer parte desta equipa de elite.” Quanto a Maria João Morgado, vítima de uma paralisia cerebral provocada à nascença, encara a vida com um ar sorridente. Fala cinco línguas e trabalha em traduções como free-lancer, ao mesmo tempo que faz um curso profissionalizante que lhe permitirá vir a ser monitora de pessoas portadoras de deficiência.
Observá-los entre eles é uma lição de camaradagem e boa disposição. O que um tem dificuldade em fazer há outro que pode ajudar, para o que nenhum consegue, existe Carlos Mota. Fora dos treinos ele é o companheiro capaz de auxiliar no que for necessário. Porém, dentro de água, as pressões mudam. Os atletas têm de lutar contra o relógio e o treinador não tenciona ver a modalidade como forma de fisioterapia. Tal como afirma: “As medalhas são importantes, sim. Eles são atletas como quaisquer outros e tenho a obrigação de exigir deles“.
É neste equilíbrio entre o ambiente descontraído e o de trabalho intenso que vive a capacidade de ultrapassar barreiras e verem concretizado o sonho que foi o de serem convocados para os Jogos Paraolímpicos de Atenas e agora, o de trazerem medalhas na bagagem.


O boccia, uma outra realidade

Modalidade para muitos desconhecida, o boccia foi criado a pensar especificamente nas pessoas com deficiência mental. Contudo, é praticado por atletas com esta característica como por para e tetraplégicos, alguns deles também vítimas de distrofia muscular degenerativa.
Se entre eles existem os que são relativamente autónomos, outros há que por dificuldades ou impossibilidade de sincronização motora, muitas vezes aliadas à dificuldade de fala, dependem em quase tudo de alguém. É nestes casos que a relação entre atletas e acompanhantes técnicos é mais surpreendente.
A professora Helena Bastos, treinadora e seleccionadora nacional da modalidade, explica, referindo-se aos acompanhantes técnicos, “eles são uma extensão do jogador que lhes diz o que eles têm de fazer através de inclinações do rosto. Estes acompanhantes, que em competição passam o tempo de costas para o jogo sem poderem sequer falar, entendem-nos muito bem, têm uma grande empatia com eles, são os braços que o atleta não pode usar”.
Para esta mulher, cuja voz e gestos estão envoltos numa calma impressionante, começar a trabalhar com os atletas do boccia foi um percurso absolutamente natural. Nas suas próprias palavras: “Estas coisas acontecem. A pessoa vê, gosta e tem uma compensação pessoal muito grande que é a de ver os atletas satisfeitos e a evoluir.” Professora de educação física no ensino secundário e superior considera que o seu trabalhos com os atletas é o seu hobby: “Posso cansar-me mas é também um recarregar de baterias, porque eles têm problemas muito grandes mas vivem, tentam ser felizes e levar a vida para a frente.”
Quanto ao grupo que irá estar presente em Atenas, Helena Bastos afirma que “em termos de campeonatos nacionais lutam ponto por ponto mas competem de uma forma muito saudável. Em competições internacionais funcionam muito unidos - o fracasso ou o sucesso de qualquer jogador reflecte-se em todos os outros.” E o facto de os meios de comunicação social lhes estarem a dar alguma evidência “é muito bom. Estes atletas eram indivíduos que há uns anos atrás estavam fechados em casa, sem que ninguém lhes prestasse atenção. Esta visibilidade faz com que os familiares e os amigos apareçam. Deixaram de ser os coitadinhos e sentem que são capazes de fazer coisas”.
Magazine Domingo - 19.09.2004

dentro da tenda

Na arena, à noite, circo é magia. Durante o dia, para lá das lantejoulas e das maquilhagens, é o quotidiano de gente vulgar, provavelmente mais feliz do que o comum – fazem o que gostam, amam a liberdade da sua forma de vida e afirmam que no circo é como em todas as profissões, há gente bem sucedida, outra nem por isso. Falamos do “Circo Ruben”, poderia ser de outro qualquer.

Ângelo Dias fala pouco sobre si mesmo. Foram outros que nos contaram como aos seis anos já ensaiava acrobacias e como ainda hoje é recordado nos meios circenses de Itália. Um acidente na pista fez com que Ângelo desse entrada no hospital com um dos pés ao seu lado, conservado em gelo. Julgaram que não voltasse a andar, contudo a vontade do homem foi mais forte do que as suposições dos médicos. Regressou à pista mas as dificuldades dos exercícios eram agora excessivas para o seu corpo lesionado. Ângelo optou por tornar-se domador de tigres, e criar a sua própria companhia.
Sempre a seu lado tem estado Isabel, nascida e criada em Mértola. O casamento com Ângelo trouxe-a para o circo já lá vão nove anos. À pronúncia, se alguma a vez teve, deve tê-la trocado ao longo do tempo pelo dia-a-dia atribulado da vida circense. Sorrindo, diz que hoje teria dificuldade em se readaptar à vivência calma que tinha anteriormente.
Se a Ângelo cabe tratar dos ensaios das luzes, música, artistas e pessoal de apoio, além das burocracias essenciais às deslocações da companhia, Isabel trata dos animais que, como diz, são “sempre a prioridade no circo”. É fácil encontrá-la junto dos bichos, de manhã cedo, de forquilha na mão, limpando o local e orientando o empregado que a apoia.
Também os filhos são essencialmente da responsabilidade de Isabel. Quando regressa à caravana após o tratamento dos animais, encontra Eveline, nos seus cinco meses, sorridentemente untada em chocolate que um dos irmãos lhe deu. Ângela, a mais velha dos quatro, passeia-se num vestido da mãe, enquanto Ivan e Ruben ostentam felizes a liberdade da sua nudez.
Isabel tenta repor a ordem na trupe loira que se dispersa em gargalhadas por entre caravanas. Eveline, porque ainda não anda, acaba por ser a mais fácil de tratar. A ideia do banho arranca-lhe sonoras reclamações mas regressa menos pegajosa e com o mesmo sorriso.
Ângela, muito feminina e ciente do seu estatuto de irmã mais velha, já trata de si mesma vestindo-se e escovando a longa e rebelde cabeleira.
Enquanto a mãe consegue vestir e calçar Ivan, Ruben aparece com uns calções vestidos, dos quais não tardou a desenvencilhar-se, e os seus sapatos serão os únicos a manter-se no degrau da caravana. Minutos mais tarde, torneando a intimidação de Isabel para que não voltasse a aparecer nu junto de si, o reguila de cabelo cor de palha surge com uma luva que lhe “veste” a mão: «olha mãe, estou “assim”». Isabel finge ignorar, prefere fazê-lo. Sabe que os filhos são felizes desta forma e que, a seu tempo, terão oportunidade de cumprir este tipo de regras sociais. Defende que vivam intensamente a sua infância mesmo que a sociedade os olhe de lado – as crianças nem dão por isso e ela aparenta não reparar.
No entanto, recorda uma manhã em que encontrou à porta da caravana um saco com roupas e sapatos. Alguém tinha visto Ruben no dia anterior a brincar todo nu e pensou: “coitadinhos, não têm roupas”. Num acesso de solidariedade, a pessoa revolveu o roupeiro dos netos conseguindo reunir coisas que já não lhes faziam falta. Só não deve ter entendido que aos miúdos do circo também não - eles apenas viviam a liberdade que aos seus netos era negada.
É por situações destas que o casal afirma que artista de circo não é gente sem eira nem beira. Quase todos têm a sua casa, igual a qualquer outra, onde regressam após as digressões. Lamentam que as pessoas os olhem de forma desconfiada ou com pena. Afinal o circo não é mais do que uma empresa, sem relógio de ponto, que circula por aí em camiões e atrelados.
Que lhes dêem melhores condições para exercerem a sua profissão é tudo o que pedem, o que se pode resumir à disponibilidade para aluguer, a preço justo, de terrenos públicos onde possam actuar no Inverno sem que a assistência tenha de se sujeitar a enterrar os pés na lama ou sem que os animais se assustem perante um ressalto do piso.

Se no estrangeiro os circos têm um professor pago pelo estado para acompanhar os filhos dos artistas, em Portugal as crianças andam de escola em escola, ao ritmo das caravanas.
Se falarmos nos compêndios escolares, só no ano lectivo 2003/2004, para que Ângela conseguisse acompanhar minimamente os colegas do primeiro ano, Isabel comprou cinco manuais diferentes - um por cada escola por onde a criança passou, o quinto para que ela mesma pudesse exercitar um pouco mais a filha. Para minimizar esta situação, apesar das deslocações do circo, Isabel prefere muitas vezes manter a criança por mais umas semanas na mesma escola, chegando a fazer 120 quilómetros por dia para a transportar.
Domingo Magazine 05.09.2004

arte-xávega na margem sul


A escassos quilómetros da capital ficam as praias que muitos dos lisboetas frequentam: o areal que se estende entre a Costa de Caparica e a Fonte da Telha. Outrora terra de pescadores, hoje ainda há por lá gente que faz da faina a sua profissão. No Verão, ao longo do dia, pode ver-se um ou outro junto dos barcos, a preparar as redes. Quando as praias começam a ficar vazias de gente, eles invadem os areais. É a arte-xávega, que ainda se pratica na zona.

Do molhe, olhando para Sul, avista-se um aglomerado diferente de pessoas. São cerca das 18h30 e o sol começa lentamente a baixar. Com a proximidade percebe-se que aquela é gente da terra, melhor dizendo, que é gente do mar. Todos usam oleados, alguns trazem gorros de lã, preparados para o frio ao largo. Movimentam tractores, mexem nas redes, entram e saem das “chatas”, que é como quem diz barcos, naquela região. Não falam muito, o que dificulta o contacto. Recuando no tempo, vêm à lembrança muitas horas a andar nos areais, muitos rostos fechados. Quis o acaso que um dia o Buissa salvasse a máquina fotográfica de sucumbir entre as ondas enquanto eu me ocupava a engolir borbotões de água salgada. Na chata e em terra haviam risos, mas o gelo estava quebrado e ficou uma ténue ligação: “Apareça quando quiser. Pergunte pelo Paulo Graça. Aqui toda a gente o conhece, é ele o arrais.”

O mestre mais novo da zona

Ser arrais de uma chata é um estatuto, é ser conhecido não apenas entre a comunidade dos pescadores mas também por toda a vila, pelo menos entre os residentes mais antigos, mesmo que sem ligações ao mar. E Paulo Graça é-o, apesar de ser o mestre mais novo da zona. Com os seus trinta e nove anos nota-se-lhe no porte e no olhar alguma rebeldia, talvez ainda resto de uma juventude cheia de afirmação própria. O seu rosto fechado é capaz de se abrir num sorriso quando fala de coisas que lhe dão prazer ou ganhar um ar longínquo enquanto passa as mãos nos cabelos de alguma das filhas “é por elas que eu trabalho tanto”, afirma, com o olhar num local inalcançável. “Não as quero no mar, é uma vida muito instável. Até podem ir por brincadeira, mas a sério só quando tiverem uma ocupação estável.” Para elas sonha com a medicina, mas esta escolha já não lhe pertence. Suas foram as opções que foi tomando ao longo da vida. Filho, neto e sobrinho de pescadores, com doze anos já andava ao mar. Aos catorze, assim que a lei lho permitiu, tirou a cédula marítima. Primeiro de pescador, até chegar ao mestre de costa, que é hoje. Aos dezoito anos, ”porque queria ser mais independente e ter as minhas coisas”, deixou de acompanhar o pai na faina, passando a andar às ordens de outros arrais. Até que, por “brincadeira aí com outros companheiros que diziam que era bom”, fez-se imigrante pela Europa. “Fui experimentar, mas não gostei. Voltei para a pesca.” Sentado no muro, com as mãos apoiadas, balançando os pés pendentes, olha para baixo quando queremos saber o que o atrai tanto na pesca: “tudo. É a adrenalina que isto tem. Gosto de andar no mar.” Vendo-o a comandar o Neptuno, o barco de que é arrais, pleno daquela segurança que só possuem os que gostam do que fazem, sente-se que não mente.

A instabilidade da Natureza

Paulo Graça dedica-se à arte-xávega de Maio até Novembro, “a partir daí o peixe migra e nós deixamos de pescar porque não é rentável”. É sobretudo desta instabilidade motivada pelo factor Natureza que se queixa,” há anos em que há muito peixe, outros em que há pouco. O peixe passa por aqui mas segue, não fica. Nos outros anos tem havido muito camarão, que é a comeria do peixe e aguenta por cá o carapau, a lula. Principalmente o carapau, quando tem muito alimento fica junto à costa, se não tem, amara” diz, rematando ”e este ano tem sido dos piores dos últimos 10.” Ocorrem-nos então todas as vezes que, após a abertura do saco da rede sobre o oleado, vimos sobressair as sardas e os caranguejos, espécies que ninguém compra, ao mesmo tempo que se ouvia: “Isto hoje nem para o gasóleo dá”. Como fazem, nessas alturas? “Acumulamos a despesa até que venha um dia que dê para as pagar. Chegam por vezes a ser muitos dias à espera disso.” Quanto aos próprios pescadores, alguns estão prevenidos com algum dinheiro amealhado nos dias melhores, outros apoiam-se nas pequenas reformas. No caso de Paulo Graça, pode contar também com o ordenado fixo da mulher, mas nem sempre é fácil fazer face às despesas diárias. Casos há em que apenas o peixe distribuído entre todos impede que as, já de si precárias, condições de vida piorem. É o motivo por que Paulo Graça diz que a arte-xávega “ajuda muita gente a sobreviver”. Observando os pescadores ao longo da praia, constatamos que muitos deles já estão bem longe da juventude, o que nos faz inquirir sobre o futuro desta arte. A realidade é que já só os mais velhos sabem montar as redes para este tipo de pesca, que têm uma forma própria. Se Paulo Graça começa agora a preocupar-se em aprender a montá-las, diz-nos também que não tem conhecimento de muitos mais companheiros que o façam. Contudo, a resposta vem rápida: “a arte-xávega não acaba. É a arte mais antiga que há no país e talvez do mundo. Não acaba, nem que seja para manter a tradição, como já fazem em alguns sítios”.

Depois do Verão

Chegado o Inverno, Paulo Graça dedica-se à pesca do polvo e “da rede de emalhar. É uma pesca mais perigosa, feita em alto mar, ali na barra. Por vezes o mar vira de um momento para o outro e apanha-nos lá no meio”. Por isso, considera a pesca mais fácil no Verão, mesmo que possa ganhar menos. Do Inverno recorda dois naufrágios, o último deles há um ano, na barra, no qual perdeu quase tudo: um amigo, o barco, as redes, e ia perdendo também a vida, não fosse outra embarcação tê-lo resgatado ao fim de três horas de andar à deriva sem que nenhuma patrulha marítima desse por isso. Na sua opinião, “a polícia anda mais à procura da multa – se pescamos no canal, somos multados, se pescamos a menos de duzentos metros de terra, somos multados…” Sem grande parte do rio para trabalhar, os pescadores “afastam-se para o largo, para zonas bastante mais perigosas onde ocorrem por vezes grandes acidentes e, porque não há qualquer proibição, não existe patrulhamento.” Foi o que aconteceu no seu último naufrágio. Se o assustou? Claro que sim, mas ficou sem nada e não pode parar. O barco, por se tornar muito caro, não estava no seguro e ajudas não as teve, embora obtivesse algumas promessas, nomeadamente da junta, ainda por cumprir. O que tem a fazer é tentar recuperar o que perdeu e sabe que, se arriscar um pouco, a pesca de Inverno será bem mais compensadora do que a do Verão. Até lá, para sua sobrevivência e para prazer de todos que queiram assistir, vai seguindo o ritual da arte-xávega: o tractor que leva a chata ao mar, as primeiras remadas dadas pelos pescadores até que o motor possa ser posto a trabalhar, o lançamento da rede e o regresso a terra, enquanto os outros dois tractores tratam de alar os braços da rede até à chegada do saco que será aberto sobre o oleado. Tudo isto uma, duas, três, as vezes que o mar lhe oferecer peixe.
Notícias Magazine #639 - 22.08.2004