novembro 08, 2009

Nós, Humoristas

Dá pelo nome artístico de Pantufa Negra mas só responde ao chamamento por Rita. Gata e preta, avisou no primeiro cartoon: “a minha tira cómica vai enriquecer-me! Terei tanta popularidade que grandes companhias irão bater-se por patrocinar o meu blog. Vou reformar-me antes dos quatro!” Tinha dois anos quando o escreveu. Entretanto, passaram quase três. Excepção feita a algum robustecimento desde a primeira tira, não se lhe conhecem sinais exteriores de riqueza. Falhou na idade da reforma mas quem não o falha, nos tempos que correm? Talvez não tenha grandes companhias em luta renhida para lhe patrocinarem o blog mas rapidamente passou da individualidade do seu simples T0 cibernético, situado num enorme (con)domínio blogspot, para uma suite cedida pelo Expresso online ,no seu servidor. A popularidade, essa já cresceu ao ponto de ser convidada sair dos monitores para a edição em papel do semanário. De simples gata doméstica para a ribalta do caderno de economia do Expresso, poder-se-ia dizer.
Luís Faustino é o dono e manager de Rita, autor da Pantufa Negra e das coisas que “até uma gata preta percebe”. Formado em Engenharia Electrotécnica, foi sempre muito mais dedicado a outras áreas Fotógrafo freelance, afirma que fotografa tudo, “até a relva a crescer”. Terá sido eventualmente nessa ferocidade do disparo que apanhou a felina pelo caminho: vulgar mas expressiva, o arquétipo de todos os gatos. Foi a conjugação perfeita para quem “queria fazer uma certa crítica e sátira”. Tentou transformar a gata em desenho, porém, os conhecimentos técnicos eram escassos. “Em vez de caçar com cão, cacei com gata”. O que também podemos ler como: foi à caça da gata. A 2 de Fevereiro de 2007 é lançada na rede a tira zero da Pantufa Negra. A intenção é fazer uma tira diária, “uma crónica de costumes”. Faustino procurou a melhor forma de a lhe dar voz e expressividade. Como fonte de inesgotável inspiração, os noticiários que “são o melhor programa de humor de toda a televisão”. Mais do que isso, apenas ao espaço noticioso concede total assiduidade como telespectador: “acho piada aos golpes palacianos dos políticos”. Senhor de um humor cáustico, de si próprio diz ter dificuldade em ser entendido sem ironia. “Se digo que gosto de uma coisa, as pessoas pensam que estou a gozar”.
As regras apreendidas reforçam a qualidade da pantufada dada pela gata, que se mantém atenta à actualidade, que diz o inusitado, dificilmente transponível para as linhas corridas da prosa. A expressividade física aliada às frases curtas, calculadas e improváveis levam-nos a um nível de humor cáustico, mordente, muito diferente do que Portugal conhecia por safra sua. Luís Faustino faz por isso: “quero evitar a piada fácil, o que já está feito, mesmo que saiba que pode resultar”. Não poupa a portugalidade, o europeísmo, o deslize deste ou daquele colunável. O idiotismo não passa em branco pelo cérebro de Pantufa, gata moderna e informada, que mete conversa com a televisão, os jornais, o portátil, e boceja finalmente uma opinião. Quando a convidaram a arejar semanalmente, na edição em papel do Expresso, foi porque alguém notou os dotes específicos da felina em matéria de economia. Instalaram-na então comodamente no caderno próprio. Contudo, Faustino sentiu necessidade de fazer qualquer coisa de diferente para a versão em papel. Pantufa Negra evolui a caminho do estrelato e “apresenta: conversas com as criaturas”. O nonsense mantém-se, resistente. É ele que nos faz rir. É a ausência de sentido que levamos connosco na memória do enroscanço de uma gata que se deitou sobre uma opinião final. É a dela. Podia ser a nossa, se fossemos mais inventivos. É, seguramente, aquele nosso lado irónico, que combate o nacional-cinzentismo.
Quando aprimorar a técnica do traço, Luís investirá com maior empenho noutro projecto em que se envolveu e que “pretende ser mais venenoso”, a Batata Frita Digital. Por agora, um homem, uma gata, uma máquina fotográfica, um caderno do Rato Mickey e um computador. Já merecíamos um cartoon assim.
Nós #27 de 07 de Novembro 2009

outubro 24, 2009

Nós, resistentes



Se cada comerciante do Chiado é um resistente, que dizer de quem ousa abrir uma loja numa rua esconsa e pouco movimentada, com artigos que, durante décadas, Portugal quis esquecer? Chiado abaixo, entre esplanadas, lojas ainda originais e as tomadas pelo franchising, atingimos a livraria Bertrand, seguimos as suas montras, pela rua Anchieta. Quando estas terminam, na secção infantil, tem início um maravilhoso mundo reanimado. No número 11 ficavam os armazéns da perfumaria David e David e foi precisamente aí que Catarina Portas decidiu dar existência ao seu projecto de “A Vida Portuguesa”.
Quando lhe perguntamos quem é, Catarina examina-nos bem de frente, olha a seguir para o lado. Matutamos sobre o que estará a pensar. Refazemos a pergunta para nós mesmos, equacionamo-la. Sim, era mesmo aquilo que queríamos saber. Facilitaria imenso o trabalho se a própria se definisse de forma detalhada. Mas Catarina é objectiva, ponderada e económica nas palavras. A resposta vem finalmente mas de forma sucinta, mesmo que sujeita a interpretações: “sou uma lisboeta irrequieta”.
Vamos ter de esgravatar. Essencialmente, queremos saber mais do que já lemos; ouvir de fonte fidedigna o que ainda não sabemos. Não nos chega a história da adolescente que queria aprender a confeccionar chapéus porque, sendo uma profissão em vias de extinção, a ela nunca faltaria trabalho e forma de subsistência. Também não nos basta saber que esteve na Índia por várias vezes, que escreveu um livro sobre Goa, outro sobre os Olivais, que começou por ser jornalista no Independente, continuando na Marie Claire, no Diário de Notícias e na televisão. Também nós gostaríamos de ser resistentes, ou talvez apenas mais persistentes, mas Catarina não desarma.
Lisboeta irrequieta fica. “Estrangeirada” também. Viajou desde muito cedo, viveu em Inglaterra aos cinco anos, em França aos oito. “Tinha consciência de que era portuguesa, mas alguma coisa há-de ter ficado dessa época”. Estudou no Liceu Francês e foi nos dois últimos anos que quis ser chapeleira. Emancipou-se da casa materna aos dezassete anos, pelo que “é natural que seja uma pessoa independente”. A forma como viveu durante os dois anos que medeiam a mudança de lar até ao primeiro dinheiro ganho como jornalista não vem aqui ao caso. Basta que acreditem em nós: Catarina é resistente e, tem razão, é irrequieta. Por isso andou pelas Índias. De lá trouxe outro olhar para com Portugal: “conhecia mal o meu próprio país e passei a olhar para ele como se fosse exótico”. Experimentou olhar para Portugal “de forma diferente, sem preconceitos”.
Continuava a ser jornalista. Efectuava uma pesquisa para uma revista de moda quando percebeu que alguns produtos, em cerca de 10 anos, quase tinham desaparecido. Por outro lado, preocupava-a “que houvesse uma espécie de blackout em relação ao passado”. As novas gerações não têm a noção de como se vivia há cerca de cinquenta anos, desconhecem objectos que fazem parte da história do povo português, da vida dos seus próprios pais. “Não acho que seja necessário estar continuamente a inventar coisas novas”, afirma Catarina. Cada época tem coisas boas e más. “Se estes produtos resistiram até aqui é porque têm qualidade”. Nessas circunstâncias, porque não dar visibilidade ao que tem carácter e perdura no tempo? Irrequieta, sempre a irrequietude, decide fazer documentários. É nessa altura que aprofunda as suas pesquisas, sabe da história dos artigos, quem ainda os produz. Procura fábricas e artesãos. Encontra terreno fértil para a sua ideia e começa a sementeira.
Ainda sem espaço comercial, é a partir da sua própria casa que se lança no desafio. Desenhou caixas, colocou-lhes dentro produtos tradicionais portugueses. Sabonetes, pasta de dentes, latas de azeite, artesanato. Tudo o que fosse genuinamente português lhe alimentava a inspiração. Ao lado dos produtos, a sua história porque: “a história de um produto é um argumento de venda importantíssimo”. Pegou no mostruário, levou-o à estranja. O problema maior residia em corresponder aos pedidos. Fabricar os artigos não dependia dela. Recorda o dia em que chegou da Maisons et Objects com uma encomenda de seiscentas andorinhas tradicionais portuguesas e a dificuldade que foi arranjar quem lhas produzisse. “Telefonava para as fábricas, estávamos na época do Natal, e respondiam-me que estavam a fazer presépios. Andorinhas só na Primavera”. Sugeria que empregassem mais pessoas para aquele fluxo menos vulgar de trabalho, defendia que eram peças de molde, sem necessidade de um oleiro especializado mas os argumentos enterravam-se em terreno absorvente. Teve de levar a voz mais longe, directamente a Joana Garrido, à altura vereadora para o artesanato da Câmara Municipal de Barcelos e, curiosamente, foi um oleiro dedicado a peças de autor, Carlos Baraça, o único que se disponibilizou a satisfazer-lhe a encomenda.
Irrequieta, sim, irrequieta. Jogou e ganhou. Apostou numa loja. “Fiz a loja contra a visão típica do país, muito limitada”. Estamos aqui para o comprovar. Um espaço dinâmico, com recordações do passado, o respeito do presente pela história do espaço. As épocas não têm de colidir, bastando que se integrem e foi o que Catarina fez quando recuperou o armazém da loja de perfumes David & David. Manteve armários, frascos, balcões, o pequeno escritório, com guichet para caixa e expediente. Portas pesadas, bem próprias de armazém, montras pequenas, supostamente pequenas demais para um espaço comercial. Ledo engano. A montra da loja é o próprio espaço, nos armários originais, abertos de par em par. Por secções, consoante a idade, é feito o convite a recordar ou a conhecer a história do quotidiano de uma casa portuguesa. Aliás, foi esse o primeiro nome do projecto: “A Casa Portuguesa”, ao que diz Catarina, por motivos um pouco provocatórios, pela evocação de outros tempos, bem antes de 1974. Só não apreciou de sobremaneira quando uma cliente quis estabelecer paralelos com o Estado Novo. Quando a oportunidade surgiu, a designação mudou para “A Vida Portuguesa”.
No currículo da loja constam marcas tão diversificadas como a Ach Brito, a pasta de dentes “que anda na boca de toda a gente”, de nome Couto, o restaurador Olex, os sabonetes Confiança, os lápis Viarco, os cadernos Serrote, produtos Coração, as andorinhas da Bordalo e mais uma imensidão de marcas, além de objectos anónimos, porém tão próximos da vida portuguesa.
Para Catarina, na altura em que se lançou no projecto, ”havia um momento de crise eminente. A globalização que entrara em Portugal deixava-nos desconfiados em relação ao que fazemos”. Perguntamos se acredita ter auxiliado a que algumas fábricas mantivessem a laboração. Responde rápida: “não tenho dimensão para impedir uma fábrica de fechar”. Contudo, o objectivo inicial foi cumprido “fazer com que os produtos vendessem mais, para não desaparecerem”. Tanto foi que em breve abrirá um novo espaço, nos Clérigos, no Porto. Em andamento está também o projecto da loja online, absolutamente adaptado às necessidades da vida moderna, piscando o olho a quem, gostando dos produtos, não tem tempo ou paciência para se embrenhar pelo centro da cidade. Em parceria com Alexandra Melo, da “Feitoria”, dividiram o catálogo, dispondo de um carrinho comum para as duas lojas. Até ao fim do ano tencionam disponibilizar cerca de mil produtos diferentes, na loja virtual.
Mulher com uma gaveta de projectos, no início do ano tirou mais do rectângulo, que acreditamos ser de madeira, para o atirar para a praça. Mais precisamente, para as praças: do Camões, do Príncipe Real e das Flores.
Aproveitando o lançamento dos concursos de concessão, por parte da Câmara Municipal de Lisboa, para os tradicionais quiosques, em parceria com João Regal, da DeliDelux, Catarina Portas cria uma rede de quiosques onde nos podemos viciar, e não é engano na utilização da palavra, porque o termo é exactamente esse, nos refrescos tradicionais portugueses. É o espaço “Quiosque de Refresco”. Limonada Chic, Mazagran, Leite Perfumado, Orchata, Groselha, Capilé, Chá Gelado, as sandes alfacinhas, mais as queijadas de Sintra, também em versão miniatura, estão ao nosso inteiro dispor. Ser lisboeta e não ter ainda provado, não é resistência, é pecado.
Venha, vamos fazer um tour. Primeiro passamos pelo 11 da rua Anchieta, compramos um caderno de apontamentos da Emílio Braga, um lápis da Viarco, um licor de Singeverga para a noite, uma caixa de chocolates da Arcadia, para passar o tempo. Atravessamos o largo do D. Carlos, subimos as escadas até ao Chiado. Camões espreita-nos do alto. Cumprimentamo-lo, reverenciosos e atingimos finalmente o Quiosque de Refresco mais próximo. Uma Orchata cai bem em qualquer hora do dia. Sentamo-nos, fechamos os olhos, pensamos em Eça de Queiroz e numa Lisboa de charme. Abrimos o saco que trouxemos d’”A Vida Portuguesa”, lemos a história do que comprámos e começamos a criar, em lápis sobre papel. Só a imaginação nos limita.
Viver ou fazer viver é resistir. Ao tempo, às dificuldades, ao esquecimento. Há quem tenha a alma talhada para resistir e fazer resistir. É Catarina Portas uma resistente? Acreditamos que sim.


Nós #25 de 24 Outubro 2009

outubro 04, 2009

Nós, Voluntários



Bárbara Coelho - LBV

Durante dezasseis anos, o sol alentejano curtiu-lhe a pele. Foi quando entrou na camioneta da carreira e virou costas a Mértola. Não olhou para trás nem disse adeus. Fome e trabalho excessivo não merecem mais considerações.
Bárbara, Coelho de apelido, reside num corpo delicado mas cheio de vida Desenrascanço próprio de quem teve mais enrascanços na vida do que a vida de uma pessoa parece poder suportar. O voluntariado assenta arraiais naquele feitio irrequieto quando lhe surge a vontade de praticar reiki. O dinheiro falha. Edite, a professora, quer oferecer-lhe o curso do primeiro nível, mas a candidata a aluna sente-se mal com estas coisas do usufruto sem pagar. “Pense”, diz-lhe Edite. “Se me quiser encontrar, aos sábados estou nesta morada”. Dá-lhe um papel para as mãos. Calculamos que o embrulhou, juntamente com o desejo de praticar reiki, sempre ali, à mão de semear. Até ao sábado em que, com a arte milenar a alfinetar-lhe o desejo, põe pés ao caminho, rumo à morada. À espera de encontrar uma aula, depara-se com a Legião da Boa Vontade (LBV), uma Instituição Particular de Solidariedade Social.
A pergunta não tardou: quer ser voluntária? Cozinheira de profissão, ali ao Parque Eduardo VII, a madrugada vê-a passar ao encontro do fogão e dos tachos que a esperam no hotel. Tempo não tem muito, mas nunca foi mulher dar costas a experiências novas e o projecto parece-lhe válido: distribuir refeições pelos sem-abrigo de Lisboa. Trata a cozinha por tu, é por aí que começa. Rapidamente acrescentou nova tarefa à sua agenda: participar na Ronda, conhecer fisicamente aqueles para quem prepara a sopa e enche os sacos com alimentos. A quantidade de sopa e de sacos substitui o relógio no ditar da hora de regresso: “enquanto há sopa, encontra-se sempre alguém com fome”.
Vem a reforma mas não o descanso por que tantos almejam. Desconfiamos que aquele corpo franzino, de setenta e dois anos, não foi feito para estar parado. Mais dias na cozinha da LBV, que as Rondas são três por semana, as cozinheiras poucas e a sopa não se faz sozinha. Uma Ronda por mês? Porque não duas? A LBV sugere, Bárbara acede. No entretanto, tem família, meditação, yoga, reiki, livros para ler e um dia elástico. Ajuda a preparar as festas da instituição, participa na recepção aos utentes, vai a hospitais. Deixa a cozinha e parte para o apoio telefónico. Essencialmente ouve, fiel depositária de confissões e queixumes alheios, numa espécie de linha de apoio que a LBV proporciona aos seus utentes e a que Bárbara dá voz e sentimento. Encaminha as questões, ajuda a ultrapassar problemas e, como parece que não lhe chega, sobrando Bárbara para dar, aceitou participar numa outra valência da instituição, o programa “Viva Mais”, destinado a pessoas que se encontram em grande isolamento social. Semanalmente vai da Pontinha a Campo de Ourique, em visita matinal. Para dar, no saco leva comida; nos gestos e nas palavras, afecto.
Mulher dos sete voluntariados, que não serão sete mas assenta bem no texto que assim se escreva: Bárbara, Coelho de apelido.


Adelaide Marques - Hospital D. Estefânia


Adelaidinha é título social, que isto de ser minhota, nascida em 1926, não deu oportunidades de fuga à passagem pela pia baptismal, confirmação perante Deus do registo grafado a tinta permanente. Adelaide Marques é o nome oficial, o que ostenta nos documentos mas que quase esquece no prazer de ser tratada pelo diminutivo que traz afecto à mistura. É talvez a sensação de menina. A menina que sobrevive nas fotografias, ainda coloridas à mão, penteados elaboradíssimos, óculos à moda, que Adelaidinha nunca deve ter sido moça simplória, mesmo que narre parecer a Maria Papoila quando chegou à grande cidade. Olhando-a hoje, optamos pela versão da menina cuja graça no porte e a cor da bata de voluntária do Hospital D. Estefânia lhe valeram, provavelmente de médico mais galanteador, o epíteto de Pombinha Amarela.
Ser primogénita de um rancho de catorze irmãos por terras de Valença do Minho, foi passaporte mais que seguro para chegar a Lisboa. Menos uma boca a sustentar, primeira a fazer pela vida. Ainda antes de ser Pombinha Amarela, foi empregada de casas finas, acompanhante de crianças, pensamento arredado dessas coisas de voluntariado. Até porque a prioridade era viver.
De emprego em emprego, com um quarto para pagar, a catraia lá se vai amanhando em limpezas de salões de cabeleireiro. Faltava o comer mas, irmã de treze bocas, não está habituada grandes atestos de estômago. Encontrou o emprego perfeito. Limpava o salão e tratava do almoço do patrão. Do patrão e do dela, que a moçoila arranjou forma de comprar uma marmitinha e dividir parcimoniosamente o cozinhado. Escondia-a no cesto dos cabelos varridos. Ali ninguém ia descobrir. Comia à vontade, longe de olhares inquiridores.
Aprendiz, diziam eles, “mas como é que eu aprendia se não me deixavam ver?”, reflecte ela. Ficava atrás das portas, a ver como se fazia. De tanto espreitar aprendeu mesmo. Depositária das chaves do salão, aproveitava os domingos vazios para trabalho por conta própria, até um penteado seu ter ganho concurso bairrista. Pronto, estava descoberta a marosca, lá se ia o ganho, mais o almoço. Mas a coisa funcionou ao contrário e Adelaidinha ascendeu na profissão.
Nos meandros da história, que paramos por aqui, Adelaidinha casou e enviuvou sem que do casamento ficasse prole. E logo ela, que alimentava o sonho de ver nascer crianças. Alguém a chamou: “venha fazer voluntariado no Hospital D. Estefânia”. Foi. Viu e ouviu os primeiros sinais dos que acabam de chegar ao mundo. Lembra as seis crianças, paridas de uma assentada; a outra que a encontrou na rua, correu, abraçou-a e disse: “olha, a senhora que me dá bolachas”. Ficou-lhe na memória a criança cujo pai dizia que não iria comer e que, das mãos da Pombinha Amarela, merendou sofregamente.
Tomou-lhe o gosto. Acrescentou visitas a hospitais, lares de terceira idade. Ligou-se a pessoas, assistindo-as nos últimos momentos. Os filhos de alguns, telefonam-lhe todos os dias, visitam-na ao fim-de-semana. Voluntária foste, atendida serás. É assim uma permuta quase divina, feita pela mão do Homem.

Nós #22 de 03 Outubro 2009

setembro 20, 2009

Jogar com a diferença

São nomes que podíamos desfiar pelas letras desta página, alinhados em qualquer disposição. Podíamos ordená-los e desordená-los, virar para um lado e para o outro, que teriam sempre algo em comum: momentos de lazer para pessoas com necessidades especiais. Proporcioná-los e usufruir deles.

A luz de Outono recorta as árvores folha a folha e define cada detalhe do Mosteiro dos Jerónimos. Junto aos autocarros de turismo, chega uma carrinha branca, logótipo verde e azul da Acessible Portugal. Pedro Brandão sai do lugar de motorista, dirige-se à traseira do veículo, acciona o elevador. Não é uma carrinha qualquer esta, nem turistas vulgares que nela se deslocam. Tão pouco Pedro é uma pessoa banal. Licenciado em História, trocou as voltas à vida ao abraçar o projecto que se lhe oferecia: guia turístico de pessoas com necessidades especiais. Um a um, faz descer acompanhantes e turistas em cadeiras de rodas.
Raymond conduz a a mulher, Angela. “Viajamos bastante, normalmente de avião”, diz. Mas “muitos locais não estão preparados e há falta de acessibilidades”. Estão a fazer um cruzeiro por vários portos europeus, integrados num grupo de ingleses onde cerca de metade tem necessidades especiais.
Ligeiramente afastados, Allan e Jane embalam-se em carícias. Jurista ele, ela com dificuldades de locomoção. Para ambos, “este é o terceiro cruzeiro e é a primeira vez que podemos fazer excursões num veículo especialmente adaptado para pessoas com deficiência”. Afirma Allan, “quando estivemos na Noruega, havia excursões todos os dias a partir do barco mas quem estivesse numa cadeira de rodas não podia ir a quase nenhuma”.
Foi com uma realidade semelhante que Joana Prates e Luís Varela, os sócios co-fundadores da Acessible Portugal se depararam quando resolveram criar uma agência de viagens para um nicho de mercado especial, o das pessoas com mobilidade reduzida. Como faz notar Pedro Brandão, “em Portugal, raramente vemos pessoas em cadeira de rodas na rua".
Explica Ana Garcia, também sócia da Acessible Portugal, “há falta de acessibilidades, e muitos dísticos mal colocados, o que leva a uma cultura em que as pessoas evitam sair porque as dificuldades com que se deparam são muitas”.
Durante os três primeiros anos de existência, a Acessible Portugal “funcionou essencialmente como animação turística para os estrangeiros”, diz Ana Garcia. Os sócios da agência de viagens acreditam que, “quem não tem o hábito de viajar, deve experimentar fazê-lo primeiro em Portugal, para conhecer as dificuldades que há numa viagem”. Estará então preparado para fazer um safari na África do Sul, visitar as pirâmides do Egipto, ou viajar até à Terra Santa. “Coisas que pensamos serem impossíveis para pessoas em cadeiras de rodas e não é, é perfeitamente possível”, conclui Ana.

Sentados à proa

Também para Carlos Caetano a palavra “impossibilidade” é tida como expressão a riscar do léxico de pessoas com necessidades especiais. Para o responsável do Náutico Clube Boa Esperança, não há obstáculos que sejam inultrapassáveis. Veleja há largos anos e afirma que “este desporto está dirigido a todas as pessoas que queiram ter no rio a possibilidade de sentir o prazer da vela, sem excluir rigorosamente ninguém”.
Abrem-se cais e passadiços, vêm cadeiras de rodas, cegos e bengalas, paralisias cerebrais, síndromes disto e daquilo, porque ninguém fica em terra. Coletes vermelhos contra o verde do rio e o azul do céu, em embarcações específicas para o assunto. Não viram e permitem que os tripulantes se sentem à proa. “Uma pessoa com necessidade de cadeira de rodas não pode sentar-se na borda de uma embarcação”, explica Carlos.
Seguimos viagem com Filipe Patrício e Miguel Machado. Os rapazes, acertam a idade pelas duas dezenas e são ambos cegos. Filipe é estudante. A cegueira, foi consequência de um tumor cerebral aos 10 anos, faz agora outros tantos. Passou metade da vida às escuras, mas rasga a cara num sorriso. “Comecei a velejar por influência de um primo”, diz. É a segunda vez que se faz ao rio, naquilo que afirma ser “uma experiência boa e muito agradável”. Característica dos invisuais, nas artes de marear, não tendo a percepção da linha do horizonte, não têm noção do equilíbrio e consequentemente, não enjoam.
Carlos faz com que Miguel sinta a direcção do sopro de ar na própria mão. O estudante angolano percepcionou e em breve saberá o que fazer para pôr a vela a jeito. Esta é a primeira aventura em veleiro do rapaz a quem, aos nove anos, problemas de retina retiraram a visão. A penumbra acompanha-lhe os passos há mais ou menos 14 anos, mas não é por isso que deixa de ser amante do desporto e acção. "Quero experimentar tudo o que puder", afirma.
Vantagens de um deficiente praticar vela? Carlos Caetano começa a desfiá-las: “aumenta os reflexos e a relação de equilíbrio. A relação sensorial aumenta imenso, a auto-confiança e a auto-estima que, por exemplo, para uma paralisia cerebral é essencial”. E afinal, o que parece impossível nem o é: “eles podem andar sem instrutor”. Como? – inquirimos. “Se um tem maior facilidade motora para regular a abertura de uma das velas, vamos usar isso. Se outro só tem capacidades para o uso do leme, fazemos todos os esforços para que exista uma equipa que consiga ser construída com autonomia, complementando-se”.

Na senda de Molière

Paragens mais calmas, mas nem sempre menos oscilantes. Andamos de um ginásio para o outro sem saber bem por onde pára o Grupo de Teatro da Crinabel. É o que faz não ter acesso a um espaço próprio, usar locais cedidos por este ou por aquele, retirados de vez em quando. Rodrigo Duque, o terapeuta da fala, leva-nos ao sítio certo, onde estão os “miúdos”. Pessoas de 20, 30, 40 anos, a quem Milou dirige, servindo de ponto para as deixas esquecidas.
“Dá-me a tua mão!”, pede Joana Cruz quando contracena com Rui Fonseca. Rui estende-lha, responde-lhe com aquela força que vem de dentro, só visível nos que gostam muito do que fazem. Sente-se o nervosismo de Joana, quando faz de boneca tímida que, diz, “é o que eu sou, e tenho medo de falhar”.
“Eles entregam-se a trabalhar com toda a alma e coração, com todas as suas potências, com tudo o que sabem e podem, com uma disponibilidade extraordinária”, diz Francisco Brás, o responsável pelo grupo. “Portanto, só posso olhar para eles com respeito, como seres humanos. E foi isso que sempre pautou o nosso trabalho”.
Francisco é um pioneiro. Estávamos em 1986, quando foi convidado a dar aulas de expressão dramática na Crinabel. Os alunos eram jovens, portadores de trissomia 21. Palavra dada ao director da companhia: “no final de um ano comecei a perceber que havia material humano muito rico para evoluir”. Investiu neles. Em 2001, Marco Paiva juntou-se-lhe, na organização do projecto que é provavelmente a face mais mediática da instituição. Representam Franz Kafka, Bertold Brecht, Almada Negreiros. Elementos do grupo participaram em séries de televisão, telenovelas, projectos musicais e Tomás Almeida foi distinguido, ex-aequo, com o prémio de melhor actor no Festival de Montreal, para a interpretação no filme “A Outra Margem”. Como se conseguem estas participações? É Marco quem responde: “as pessoas escrevem para uma personagem com estas características, sabem que nós trabalhamos com esta população e contactam-nos directamente”.
“Nós não utilizamos o teatro como terapia, mas como um objectivo de vida para estas pessoas”, afirma Francisco a quem perguntam muitas vezes como é possível que alguns dos actores, que não lêem, decorem papéis. Para ambos os responsáveis, “o processo é natural, é o processo da criação”. Inicialmente uma abordagem à temática, seguida de um estudo da personagem, fase em que “já há um domínio da situação, e uma série de coisas que favorecem. Por exemplo, se eu vou abrir a janela, o próprio movimento já os leva a decorar o texto”.

É tempo de usar a cor

A monitora, Luísa Henriques, abre a porta. Largueza, luz. Pincéis e frascos, tintas e água, cavaletes e telas. O som dos sapatos no soalho de madeira clara, sem mácula de pintor menos cuidadoso.
Junto à janela vive Maria Papoila, a galinha. No canto oposto, o trono sem rei. O imponente galináceo tem milho reciclado e água fresca, mudada todos os dias. O trono espera por quem nele se sente. “A intenção é criar a estas pessoas uma realidade paralela, em que saibam verificar o que é de faz-de-conta, mas que pode existir se eles quiserem”, explica Luísa
Luís esmera-se a explicar como fazem a esmaltagem. Saltam frascos dos armários, acena mãos em explicações nem sempre simples. Chama a tesoura de corte, o alicate para revirar e procura algo: Um par de brincos que acaba por vender ali mesmo. Presta contas a quem de direito e vira-se para a tela onde um enorme peixe azul paira no ar, escamas bem torneadas, cuidadosamente coloridas, numa nova modalidade de peixe anfíbio.
Elsa passeia-se pela sala, pára a cabeça no ombro de Luísa que a afaga, enquanto conta do livro para o qual fizeram capa, dos concursos participados, das obras vencedoras. Licínio Reino, o director, ciranda pelo espaço. Conversa aqui, palavra ali. Paula concentra-se, também ela, num escamudo peixe verde, enquanto Pedro solta pinceladas vermelhas, transformadas em pétalas de flores que crescem na tela. Mais afastado, João preenche a amarelo o desenho, traçado a encarnado, que cheira a África, nas ramagens verdes. “O João tem um traço muito interessante e característico. Mas temos ainda algumas dificuldades em que o passe do papel à tela”, afirma Luísa. São todos utentes da Crinabel. Homens e mulheres que para ali entraram, há mais ou menos tempo, mas onde dão largas à imaginação, em Centros de Actividades Ocupacionais (CAO’s) como o que Luísa conduz. Pintura, reciclagem, costura, cozinha, uma imensidade, num mundo que parece transportado de um livro de contos na inventividade demonstrada. O intuito é proporcionar momentos lúdicos a gente com necessidades especiais. Pessoas que, em casa, estariam confinadas a um espaço reduzido, com menos contacto humano, mais longe do idealismo.
Síndromas de Down, misturados com paralisias cerebrais e questões mentais várias. Comportamentos fracturantes numa unidade liberta de preconceitos, a fazer obra visível.
São felizes na arte da criação. Trabalham para isso, labutam com gosto. Criam ao seu ritmo, num equilíbrio entre o mundo dito normal e o deles próprios, tão rico e exequível como o de qualquer outro.



Notícias Magazine #904 20 Setembro 2009