outubro 04, 2009

Nós, Voluntários



Bárbara Coelho - LBV

Durante dezasseis anos, o sol alentejano curtiu-lhe a pele. Foi quando entrou na camioneta da carreira e virou costas a Mértola. Não olhou para trás nem disse adeus. Fome e trabalho excessivo não merecem mais considerações.
Bárbara, Coelho de apelido, reside num corpo delicado mas cheio de vida Desenrascanço próprio de quem teve mais enrascanços na vida do que a vida de uma pessoa parece poder suportar. O voluntariado assenta arraiais naquele feitio irrequieto quando lhe surge a vontade de praticar reiki. O dinheiro falha. Edite, a professora, quer oferecer-lhe o curso do primeiro nível, mas a candidata a aluna sente-se mal com estas coisas do usufruto sem pagar. “Pense”, diz-lhe Edite. “Se me quiser encontrar, aos sábados estou nesta morada”. Dá-lhe um papel para as mãos. Calculamos que o embrulhou, juntamente com o desejo de praticar reiki, sempre ali, à mão de semear. Até ao sábado em que, com a arte milenar a alfinetar-lhe o desejo, põe pés ao caminho, rumo à morada. À espera de encontrar uma aula, depara-se com a Legião da Boa Vontade (LBV), uma Instituição Particular de Solidariedade Social.
A pergunta não tardou: quer ser voluntária? Cozinheira de profissão, ali ao Parque Eduardo VII, a madrugada vê-a passar ao encontro do fogão e dos tachos que a esperam no hotel. Tempo não tem muito, mas nunca foi mulher dar costas a experiências novas e o projecto parece-lhe válido: distribuir refeições pelos sem-abrigo de Lisboa. Trata a cozinha por tu, é por aí que começa. Rapidamente acrescentou nova tarefa à sua agenda: participar na Ronda, conhecer fisicamente aqueles para quem prepara a sopa e enche os sacos com alimentos. A quantidade de sopa e de sacos substitui o relógio no ditar da hora de regresso: “enquanto há sopa, encontra-se sempre alguém com fome”.
Vem a reforma mas não o descanso por que tantos almejam. Desconfiamos que aquele corpo franzino, de setenta e dois anos, não foi feito para estar parado. Mais dias na cozinha da LBV, que as Rondas são três por semana, as cozinheiras poucas e a sopa não se faz sozinha. Uma Ronda por mês? Porque não duas? A LBV sugere, Bárbara acede. No entretanto, tem família, meditação, yoga, reiki, livros para ler e um dia elástico. Ajuda a preparar as festas da instituição, participa na recepção aos utentes, vai a hospitais. Deixa a cozinha e parte para o apoio telefónico. Essencialmente ouve, fiel depositária de confissões e queixumes alheios, numa espécie de linha de apoio que a LBV proporciona aos seus utentes e a que Bárbara dá voz e sentimento. Encaminha as questões, ajuda a ultrapassar problemas e, como parece que não lhe chega, sobrando Bárbara para dar, aceitou participar numa outra valência da instituição, o programa “Viva Mais”, destinado a pessoas que se encontram em grande isolamento social. Semanalmente vai da Pontinha a Campo de Ourique, em visita matinal. Para dar, no saco leva comida; nos gestos e nas palavras, afecto.
Mulher dos sete voluntariados, que não serão sete mas assenta bem no texto que assim se escreva: Bárbara, Coelho de apelido.


Adelaide Marques - Hospital D. Estefânia


Adelaidinha é título social, que isto de ser minhota, nascida em 1926, não deu oportunidades de fuga à passagem pela pia baptismal, confirmação perante Deus do registo grafado a tinta permanente. Adelaide Marques é o nome oficial, o que ostenta nos documentos mas que quase esquece no prazer de ser tratada pelo diminutivo que traz afecto à mistura. É talvez a sensação de menina. A menina que sobrevive nas fotografias, ainda coloridas à mão, penteados elaboradíssimos, óculos à moda, que Adelaidinha nunca deve ter sido moça simplória, mesmo que narre parecer a Maria Papoila quando chegou à grande cidade. Olhando-a hoje, optamos pela versão da menina cuja graça no porte e a cor da bata de voluntária do Hospital D. Estefânia lhe valeram, provavelmente de médico mais galanteador, o epíteto de Pombinha Amarela.
Ser primogénita de um rancho de catorze irmãos por terras de Valença do Minho, foi passaporte mais que seguro para chegar a Lisboa. Menos uma boca a sustentar, primeira a fazer pela vida. Ainda antes de ser Pombinha Amarela, foi empregada de casas finas, acompanhante de crianças, pensamento arredado dessas coisas de voluntariado. Até porque a prioridade era viver.
De emprego em emprego, com um quarto para pagar, a catraia lá se vai amanhando em limpezas de salões de cabeleireiro. Faltava o comer mas, irmã de treze bocas, não está habituada grandes atestos de estômago. Encontrou o emprego perfeito. Limpava o salão e tratava do almoço do patrão. Do patrão e do dela, que a moçoila arranjou forma de comprar uma marmitinha e dividir parcimoniosamente o cozinhado. Escondia-a no cesto dos cabelos varridos. Ali ninguém ia descobrir. Comia à vontade, longe de olhares inquiridores.
Aprendiz, diziam eles, “mas como é que eu aprendia se não me deixavam ver?”, reflecte ela. Ficava atrás das portas, a ver como se fazia. De tanto espreitar aprendeu mesmo. Depositária das chaves do salão, aproveitava os domingos vazios para trabalho por conta própria, até um penteado seu ter ganho concurso bairrista. Pronto, estava descoberta a marosca, lá se ia o ganho, mais o almoço. Mas a coisa funcionou ao contrário e Adelaidinha ascendeu na profissão.
Nos meandros da história, que paramos por aqui, Adelaidinha casou e enviuvou sem que do casamento ficasse prole. E logo ela, que alimentava o sonho de ver nascer crianças. Alguém a chamou: “venha fazer voluntariado no Hospital D. Estefânia”. Foi. Viu e ouviu os primeiros sinais dos que acabam de chegar ao mundo. Lembra as seis crianças, paridas de uma assentada; a outra que a encontrou na rua, correu, abraçou-a e disse: “olha, a senhora que me dá bolachas”. Ficou-lhe na memória a criança cujo pai dizia que não iria comer e que, das mãos da Pombinha Amarela, merendou sofregamente.
Tomou-lhe o gosto. Acrescentou visitas a hospitais, lares de terceira idade. Ligou-se a pessoas, assistindo-as nos últimos momentos. Os filhos de alguns, telefonam-lhe todos os dias, visitam-na ao fim-de-semana. Voluntária foste, atendida serás. É assim uma permuta quase divina, feita pela mão do Homem.

Nós #22 de 03 Outubro 2009

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