agosto 30, 2007

Desporto para todos



Esgrima, basquetebol ou ténis em cadeira de rodas, são modalidades que permitem a um deficiente motor praticar desporto como qualquer outra pessoa. O problema está na ainda pouca visibilidade de que usufruem. Quem as experimenta diz que tudo têm de positivo.

Para o Mestre Eugénio Roque, a História da esgrima confunde-se com a do ser humano: “a primeira vez que o homem pegou num osso ou num pau, para se defender ou para caçar, começou a esgrimir”. Sonhador e combativo, Eugénio Roque trouxe a esgrima artística para Portugal. Entre outros projectos, ainda no segredo dos deuses, faltava-lhe lançar a esgrima em cadeira de rodas no nosso país.
Já há muitos anos, quando Eugénio Roque era director da Federação Portuguesa de Esgrima (FPE), “tinha havido o desejo de criar a esgrima em cadeira de rodas. Acabou por não ser possível”. Porém, não desistiu: “um dia, consegui os apoios da Câmara Municipal de Cascais para comprar o equipamento necessário para fazer um curso de formação de monitores. Aí, fui ter outra vez com a FPE e com a Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes (FPDD) e disse: meus senhores, tenho estes meios e vamos fazer isto”. Em 2005 foi então possível reunir esforços e fazer o primeiro curso para treinadores e classificadores de esgrima em cadeira de rodas. Como resultado deste curso, neste momento Portugal tem 24 técnicos aptos a preparar esgrimistas em cadeiras de rodas, apesar de, por falta de atletas, ainda só ser praticado no Estoril, Quarteira e Amadora. Vila Nova de Gaia e Madeira serão provavelmente os próximos locais onde a esgrima em cadeira de rodas poderá vir a ser uma realidade.
“Uma coisa que eu lamento é haver poucos participantes”, queixa-se Henrique Ventura, de 46 anos, ex-campeão de motocross, hoje praticante de esgrima. Um acidente de viação deixou-o numa cadeira de rodas há 13 anos. “Se fôssemos mais, a competição seria maior”. Apesar disso, Henrique afirma: ”quando estamos a praticar esgrima, é como se estivéssemos normais. Naquela altura damos o nosso melhor. Não pensamos que estamos numa cadeira de rodas, que estamos limitados”.
Eugénio Roque confirma: “a esgrima é um desporto fabuloso para o atleta em cadeira de rodas. Está sentado numa cadeira igual, está à mesma distância e está a fazer os mesmos gestos que o outro. Depois é uma questão de perícia, de inteligência, de capacidade. Isso depende deles. Mas é extremamente interessante, porque eles não ficam nada diminuídos por não terem pernas. São iguais a qualquer outro ou melhores”.
Para Eugénio Roque, o mais importante é “ver como um atleta com deficiências motoras consegue superar-se a si próprio, ampliar os seus movimentos. Conseguem ganhar confiança. Porque afinal o braço ou a mão deles, apesar dos defeitos que todos têm, vai ganhando precisão de movimentos. Ver como eles se sentem evoluir e como sentem que afinal não são tão limitados, é muito gratificante”.
Josimario Varela corrobora desta afirmação de Eugénio Roque. Pratica esgrima há um ano e diz que “adquiri outra maneira de pensar em termos das minhas próprias capacidades. Muitas vezes até sinto que sou capaz de fazer melhor do que os outros, mesmo que eles não tenham problemas”. Josimário tem 18 anos e uma paralisia cerebral afecta-lhe o seu lado esquerdo. Não é por isso, porém, que deixa de treinar duas vezes por semana com Adelino Batista, de 22 anos, a quem um cancro numa perna aos 6 anos reduziu a mobilidade.
Por tudo isto, o entusiasmo de Eugénio Roque não esmorece. Segundo o mestre, quase todo o tipo de deficiências permitem que se pratique esgrima: “Até há esgrima deitado. Existe esgrima acamado. Imagina o que é uma pessoa deitada numa cama, acamada, fazer esgrima? E isso existe. Está regulamentado. Ainda não consegui esgrima para cegos, gostava de ter conseguido este ano, mas para o ano, se eu cá estiver e se as coisas puderem continuar, gostava de pôr os cegos também a fazer esgrima”.
Até lá, temos pelo menos um esgrimista cujo sonho é “ir aos paraolímpicos. E, para isso, tenho de participar em 4 ou 5 provas”. Hélder Farroba tem 35 anos e é algarvio. Há 20 anos viu-se amputado das duas pernas na sequência de um acidente de comboio: “tinha 15 anos. Ao princípio custou muito. Depois com o tempo a pessoa esquece. Passou e caminha-se para a frente”. Caminhou até ao ponto de há cerca de três anos praticar desporto para deficientes. Pratica basquetebol e esgrima, em Quarteira. Na esgrima, já foi “ao campeonato do Mundo em Valência, Espanha, e agora convidaram-me para em Julho, se conseguir arranjar verbas, ir a Varsóvia, ao campeonato Europeu”.

Basquetebol, desporto de veteranos

Embora com muitos mais praticantes, também os jogadores para o basquetebol são difíceis de atrair. Quem o afirma é Jorge Almeida, de 45 anos, a quem uma poliomielite aos 17 meses deixou sequelas irreversíveis. No seu dia-a-dia, como chefe de segurança no Hospital de Santa Maria, Jorge Almeida desloca-se com o auxílio de canadianas e em cada turno faz duas voltas completas ao hospital. Actividade não lhe falta, mas a sua paixão pelo desporto levou-o desde muito novo a praticar natação, ténis e basquetebol. Com o tempo, e pela dificuldade de conjugação das três modalidades, optou pela última, tornando-se também treinador da equipa da Associação Portuguesa de Deficientes (APD) de Lisboa.
Homem determinado, o exemplo de um quadriamputado a jogar basquetebol ficou-lhe para sempre na memória e dá-o frequentemente aos seus jogadores: “não há limites para nada, desde que nós queiramos, desde que trabalhemos para esse fim, conseguimos atingi-lo”, afirma. “Não é o facto de termos qualquer tipo de deficiência, que nos faz ser diferentes. Somos pessoas que, se nos criarem as condições ideais, e nós temos de lutar por elas, atingimos tudo como outra pessoa qualquer. Daí eu achar que a deficiência não nos pode proibir nem prejudicar em nada”. Esta forma de pensar adquiriu-a desde muito novo. Diz ter tido o privilégio de nascer num bairro com fracos recursos económicos e nunca ter sido posto de parte pelos seus colegas: “enquanto eles jogavam à bola com os pés, eu jogava com as mãos. E era das primeiras pessoas a ser escolhidas para as equipas deles. Isso fez de mim uma pessoa diferente e extremamente positiva como acho que sou hoje”.
Quanto ao basquetebol, vive-o com intensidade e lamenta não conseguir atrair mais atletas para a sua prática. Delegações da APD que tenham equipas de basquetebol são cinco: Lisboa, Sintra, Braga, Leiria e Porto. “Apesar de termos outras que pretendiam formar equipa. Temos uma na Amadora que anda há uns anos a tentar. Tem material mas não consegue arranjar gente suficiente para fazer a equipa”, avança Jorge Almeida. Nem o programa “Bicas na Escola”, que tem como intenção divulgar a modalidade e obter gente para a sua prática se tem mostrado eficaz. “Eu acho que existem milhares de deficientes a estudar. Possivelmente nós ainda não conseguimos encontrar as escolas certas”, afirma Jorge perante a dificuldade de explicar os motivos do insucesso. “Por este andar, se não conseguirmos trazer gente para a prática, isto tem tendência para acabar”.
Data de 1946 o primeiro registo de basquetebol em cadeira de rodas quando, após a II Guerra Mundial surgiu um grande número de deficientes motores e nos hospitais dos Paralyzed Veterans of América (Veteranos Paralisados da América) se começaram a desenvolver actividades desportivas. “Um médico, achou que tinha de encontrar uma forma de entreter os deficientes de guerra”, conta Jorge Almeida. O basquetebol foi uma das formas de entretenimento encontradas até ao ponto “de hoje haverem Jogos Olímpicos, Campeonato do Mundo, Campeonato da Europa, Taça dos Campeões. Todas as provas que existem dos ditos normais, existem para as pessoas com deficiência”, diz. Para Portugal foram os Deficientes das Forças Armadas que trouxeram a modalidade, fazendo torneios para a sua divulgação.
Actualmente existem no nosso país 10 equipas de basquetebol. “Infelizmente não podemos participar regularmente nas provas europeias devido a falta de apoios, mas em Portugal fazemos campeonatos regulares”, afirma o treinador da equipa de Lisboa. Contudo, também a falta de meios obrigou a “dividir o campeonato em parte norte e parte sul”.
A diferença em relação ao panorama europeu é grande. “Eles têm excelentes condições que nós não temos. Logo aqui ao lado, em Espanha, têm uma liga onde os jogadores são profissionais”, afirma ainda Jorge Almeida que continua: “a nível de selecção é muito difícil obter resultados porque não temos condições. Faltam-nos pavilhões para termos diariamente treinos. Nós temos aqui 2 treinos e a muito custo, porque o estádio não nos cobra. Mas há equipas que sabemos que têm de pagar o aluguer do treino”. Também não existem meios para frequentar os ginásios para musculação, o que faz com que exista “grande diferença na massa muscular nas equipas estrangeiras em relação às nacionais”. Tudo isso origina que seja muito difícil a selecção nacional chegar aos paraolímpicos.
Aparte todas estas questões, para Jorge Almeida, a simples prática da modalidade é positiva: “uma pessoa com canadianas ou de cadeira de rodas tem dificuldades, no seu dia-a-dia, para se deslocar na cidade. Com a prática desportiva, ela adquire uma preparação física que lhe permite mais facilmente ultrapassar as barreiras arquitectónicas”, continua o atleta, concluindo: “dá-nos uma grande mobilidade, cria-nos uma auto-estima excelente, acreditamos muito mais nas nossas potencialidades e, de facto, passamos a ser pessoas diferentes”.

Ténis, uma modalidade à procura de adeptos

Pouco falta para as 16:00 quando a carrinha do Centro de Medicina e Reabilitação Física de Alcoitão chega ao Clube de Ténis do Estoril (CTE). Entre as duas instituições foi firmado um protocolo que visa permitir aos pacientes do centro hospitalar a prática de ténis em cadeira de rodas. O Clube oferece, além dos campos, as cadeiras de rodas e um professor para dar as aulas.
Modalidade praticada há décadas no estrangeiro, é ainda pouco conhecida em Portugal. Trazida para o nosso país há cerca de 10 anos por um holandês, Fred Marx, entretanto regressado à Holanda, o ténis em cadeira de rodas tem-se vindo a desenvolver muito lentamente e Portugal conta neste momento com apenas 9 atletas de competição.
É Filipe Marques, de 34 anos, quem sai da carrinha. Amante de motos e de velocidades, um acidente de viação deixou-o paraplégico há 13 anos: “foi muito difícil no início, depois a pessoa habitua-se”, diz, a propósito das suas circunstâncias. Filipe Marques iniciou-se no ténis há pouco mais de um mês quando, regressado a Alcoitão para a vigilância de rotina, lhe foi proposto praticar a modalidade. “Aceitei vir experimentar, e estou a gostar”, afirma.
Pedro Silva é o professor responsável pelo ténis em cadeira de rodas no CTE e sente, pela quantidade de alunos que lhe passam pelas mãos, que a modalidade ainda não fideliza adeptos: “aquilo que me apercebo é que as pessoas estão em Alcoitão durante algum tempo a tentar fazer a recuperação. Umas ficam um bocadinho mais, outras menos, mas depois têm alta e vão-se embora”.
Desconhecimento da existência da modalidade, dificuldades de transporte e o facto de serem ainda muito poucas as escolas que proporcionam a prática do ténis em cadeira de rodas, não serão concerteza factores alheios a esta falta de adesão por parte de muitos dos deficientes. Além de S. Miguel, nos Açores, a modalidade ainda só pode ser praticada no Estoril, em Pombal, no Porto e em Setúbal, apesar de, como diz Joaquim Nunes, coordenador nacional do ténis em cadeira de rodas,” para o praticar não seja necessário mais do que os clubes de ténis disponibilizem um técnico e que tenham condições de acessibilidade a nível de barreiras arquitectónicas”. Filipe Marques, por exemplo, gostaria de continuar a praticar a modalidade mas tal implicaria um acordo com a empresa que o emprega, devido ao horário das aulas.
O que tem de positivo o ténis em cadeira de rodas? Para Filipe Marques, esta modalidade “faz bem aos braços, à cabeça, faz bem a tudo”. Pedro Silva complementa: “Aquilo que tenho sentido é que, para além de aprenderem algo mais, para este universo de pessoas é importante a prática de uma actividade física. Pelo facto de ser benéfico para a sua própria recuperação e também por uma questão mental, para não caírem numa rotina e fazerem algo de diferente”.
Apesar da existência em Portugal de grandes tenistas em cadeira de rodas como Paulo Espírito Santo, não está por enquanto nos horizontes de Pedro Silva vir a ter alunos desse calibre porque, “o universo que nós temos aqui são pessoas que nunca pegaram numa raquete e o nível é mesmo de iniciação”, apesar de surgir gente “com muito talento, que aprende com muita facilidade”.
Tabu #48 - 11 de Agosto de 2007