setembro 01, 2006

era uma vez


Sobejamente conhecido, o Museu do Brinquedo, em Sintra, é local de deleite para crianças e adultos. Porém, antes da sua própria história tem uma outra, constituída por pequenos fragmentos da vida de um homem: Arbués Moreira. Apoiado pela mulher, Ana Moreira, ele deu um novo valor à arte da brincadeira.

Era uma vez um avô… Este podia ser o começo da narrativa sobre o Museu do Brinquedo, há muitos, muitos anos.
João Arbués Moreira era um miúdo que, como todos os miúdos, gostava de brincar. E tinha um avô, esse sim, diferente. Era um senhor deveras rico que, além de gostar que os netos brincassem, tinha um hábito bastante peculiar: de cada vez que um deles tinha más notas, ele oferecia-lhe um brinquedo.
Arbués Moreira crescia, como crescem todas as crianças e um dia, já ele tinha alguns anos e muitos brinquedos, um professor perguntou aos alunos o que coleccionavam. João, que não se lembrava de coleccionar mais nada, disse: “brinquedos”. Os colegas riram-se, mas o pedagogo explicou: “uma colecção de brinquedos é tão importante como outra qualquer porque eles representam a época em que são feitos”. E aquilo, conta o actualmente engenheiro Arbués Moreira, “deu-me uma volta tão grande à cabeça, que eu comecei a comprar brinquedos já com o intuito de representar o mais possível a época”.
Terá sido mais ou menos este, há mais de cinquenta anos, o início do Museu do Brinquedo que hoje se situa em Sintra, no antigo quartel dos bombeiros.

Um passado feito de histórias

O museu abre ao público após vários anos de coleccionismo e muitas histórias, algumas delas onde é notória a forte presença de João Capucho, o avô. Foi com ele que Arbués Moreira e o irmão aprenderam os riscos de alguns brinquedos: ”por exemplo as máquinas a vapor são brinquedos perigosos. Ele deixava-nos brincar mas explicava-nos os perigos e qual a pressão a que devia estar a máquina”, diz.
Também as primeiras experiências com electricidade foram partilhadas com Capucho, que submetia os miúdos a um estranho ritual: “tínhamos um reóstato e todos os dias, quando chegávamos da escola, íamos pôr os dedos na ficha. O choque era sempre um bocadinho mais forte que o anterior. Um treino para, se um dia apanhássemos uma descarga eléctrica grande, não nos acontecer nada”, conta o neto, com um sorriso entre o divertido e o saudoso.
Na tentativa que Arbués Moreira escapasse à influência do avô, que achava os estudos absolutamente desnecessários e tentava desviar a atenção dos netos para coisas menos maçadoras, o pai enviou-o, juntamente com o irmão, estudar para Inglaterra. Persistente na ideia da inutilidade do estudo, João Capucho descobre o número da conta bancária dos netos. Perante o achado, e com o intuito que os rapazes se divertissem em território bretão, aí faz avultados depósitos que acabaram por levar os dois jovens a terem de justificar, perante a polícia inglesa, tal quantidade de dinheiro. Ninguém acreditava na versão dos dois adolescentes e muito menos na excentricidade do ancião.
Se a distância imposta pelo pai permite que os dois irmãos terminem os seus cursos, os incrementos dados pelo avô à conta bancária dos jovens possibilitam o acréscimo da colecção de brinquedos de Arbués Moreira. Desses tempos ficou-lhe o hábito de percorrer as igrejas e os antiquários de Londres. Ainda hoje Ana Moreira, mulher do coleccionador e directora do Museu do Brinquedo, reclama sempre que se proporciona uma viagem à capital britânica: “não vou a Londres contigo, és um chato, só queres visitar as igrejas!”. Arbués Moreira confirma, não que seja “um chato”, mas que dos anos de Inglaterra lhe ficou o hábito de explorar os cestos cheios de brinquedos oferecidos pelos paroquianos e que os pastores têm o costume de colocar à venda nas igrejas.
Anos mais tarde, em viagens a Paris com a avó, durante um mês negociava a sua companhia em desfiles de costureiros da época ou museus que o cansavam, em troca de incursões a locais que lhe despertavam bastante mais interesse. Ia então “às lojas, aos antiquários, ver se encontrava peças que mais ninguém tinha cá em Portugal”.
De casa para o Museu

Durante anos juntou peças em casa: “tinha um cão que ficava triste cada vez que eu trazia mais um brinquedo. Ficava a olhar para mim como se pensasse: este tipo é louco, um dia já não cabe mais. Tinha a casa de banho com barcos… parecia uma casa de doidos”, conta o engenheiro que, sendo sócio de clubes internacionais, tinha pedidos constantes de pessoas que pretendiam ver a colecção.
“O museu, as visitas guiadas, começaram em casa”, diz. “Uma das minhas filhas, professora de liceu, trazia os alunos. Depois eram as amigas que diziam: eu também queria. Até que um dia, perdi a cabeça e achei que tinha de fazer qualquer coisa.” O que fez o coleccionador “perder a cabeça” foi o facto de uma senhora francesa lhe pedir para levar um grupo de amigas para ver a colecção. Com a solicitude habitual, Arbués Moreira combinou um dia para a visita. Perante o atraso na hora, pediu ao filho que verificasse se havia alguém na rua, à espera: “ «Oh pai, está um autocarro cheio de gente lá em baixo!» Eram quarenta e tal senhoras. Impraticável, tantas pessoas para verem a casa, porque tinham mesmo de ver a casa. Estavam por todo o lado!” Nessa altura decidiu agir.
Se antes do casamento Ana Moreira não se interessava excepcionalmente por brinquedos, o marido “era tão interessado que ela não teve outra hipótese”. E foi já a dois que começaram a procurar um espaço que conseguisse albergar toda a colecção. A câmara Municipal de Évora fizera-lhes um convite mas a distância levou-os a declinar e a pensar num local mais próximo de Lisboa, onde pudessem estar sempre presentes. João sempre gostara muito de Sintra e resolveu escrever à câmara propondo-lhe a abertura de um museu. A proposta foi aceite e um espaço cedido mas, diz Ana Moreira, “era uma área muito pequena”.
Durante uma visita, Edite Estrela, ainda candidata à vereação, considerou que a colecção era demasiado importante para a vila, merecendo ser exibida num espaço maior. Pouco tempo após a sua eleição, a então presidente da câmara propôs fazer obras no antigo quartel dos bombeiros da vila e passar para aí todo o espólio. Aceite o novo espaço, é altura de mudanças. Por essa altura Arbués Moreira sofre um acidente vascular cerebral (AVC) e a sua memória ressente-se mas, estranhamente, sobre os seus brinquedos ele continua a saber tudo. Conta Ana Moreira que “a montagem do novo espaço foi toda assistida por ele. Na cadeira de rodas, até às 3 da manhã, com amigos e família a ajudar, dizia: este é aqui, aquele é com aqueloutro. Era ele quem sabia tudo.”
Com a simplicidade que o caracteriza, o coleccionador afirma: “sei o porquê de cada brinquedo que tenho”. E disso podemos nós atestar. Uma visita ao Museu, guiada e comentada por Arbués Moreira, é um acréscimo para a cultura geral de cada um. Tal como dizia o professor do miúdo, os brinquedos “representam a época em que são feitos”, e João usa de tal paixão na narrativa dos seus conhecimentos que o visitante é transportado na história e naturalmente convidado a entender a sociedade da altura.
Diz este homem que “os brinquedos não nascem por acaso, e os motivos do seu aparecimento interessam-me imenso”. Foi precisamente esta sua curiosidade sobre as peças que possui que o levou a procurar o motivo porque os brinquedos de folha ou madeira fabricados em Portugal eram habitualmente tão coloridos. Afinal, o que poderia pensar-se ser uma preocupação com o desenvolvimento perceptivo da criança, não passa de uma questão económica: “o fabricante deslocava-se junto dos fornecedores de tintas e comprava, a um preço mais baixo, as sobras da fábrica” que eram habitualmente as cores fortes.
Todos estes conhecimentos acabam por ser partilhados entre coleccionadores que mantm entre si uma rivalidade que Arbués Moreira classifica como saudável. “Ajudamo-nos todos uns aos outros”, diz, enquanto sorri perante a recordação das primeiras mostras de brinquedos em Lisboa, efectuadas num restaurante. “Depois do jantar, todos nós, alguns já velhotes, começávamos a abrir as malas, a tirar carrinhos, brinquedinhos, a discutir, e as pessoas admiradas, sem fazerem a mínima ideia do que se passava”. O coleccionador delicia-se com as situações provocadas por esta paixão. “A última vez que fui a Londres a uma dessas feiras era num hotel grande, com uns corredores enormes”, conta. “Ia no elevador com mais algumas pessoas que estavam hospedadas no hotel e entrou um americano com uma galinha de brincar que cacarejava e punha um ovo. As pessoas olhavam admiradas, mas o interessante foi quando chegámos ao 11º andar: os corredores estavam cheios de pessoas, algumas já com alguma idade, entretidas com brinquedinhos, no chão. Uma das senhoras olhou para mim e perguntou: «I’m in a hotel?»” Ri-se: “adoro estas coisas”.

Como se faz uma colecção

Com um público constituído por 52% de crianças e 48% de adultos, o Museu do Brinquedo tem patentes ao público cerca de 40.000 peças. Por falta de espaço, longe dos olhos dos visitantes, nas reservas estão mais 20.000. O critério escolhido para a exibição foi “o de expor aqueles que melhor mostram a história através do brinquedo”, explica Ana Moreira.
Incansável na procura de novas peças, sempre que se desloca ao estrangeiro Arbués Moreira tenta trazer mais um bocadinho de história para o seu Museu. Foi assim que, na Síria, lhe foram oferecidos, por um antiquário árabe, brinquedos romanos com dois mil anos. Também os amigos ajudam na demanda e a encontrar as mais almejadas peças para aumento do espólio. Sim, porque há brinquedos que, e Arbués Moreira não sabe explicar, “parece que todo o meu horizonte fica ali...eu preciso daquela peça”. Talvez o melhor exemplo deste estado de espírito seja um Ferrari, brinquedo muito raro, que a fábrica mandava fazer para oferecer aos seus melhores clientes. Conhecedor da vontade do coleccionador de possuir um destes exemplares, um amigo telefonou avisando-o de estar uma dessas peças à venda num antiquário em Milão. Arbués Moreira não perdeu tempo e no dia seguinte aterrou em Itália. Sobre o custo da peça fala como um menino envergonhado: “não posso dizer, foi uma fortuna. De tal maneira que a minha mulher, quando lhe disse o preço ao telefone, me perguntou: «compraste um Ferrari verdadeiro ou uma miniatura?» Os coleccionadores perdem a cabeça. Eu às vezes perco a cabeça”, diz, com um sorriso consciente mas garoto nos olhos.
Porém, não é apenas destas pequenas loucuras se tem vindo a constituir o espólio do Museu do Brinquedo. Muitas ofertas aqui chegam, sobretudo de bonecas, cujo conjunto faz as delícias essencialmente das meninas. Perante a estranheza de tão completa colecção levada a cabo por um homem, Arbués Moreira conta que, além das ofertas, grande parte dela provém das incursões às casas das suas próprias tias: ”Ia lá almoçar e, a seguir, ia ao sótão. A minha mulher costuma dizer que eu sou como os cães de caça. Olho para as malas e digo: «aquela tem brinquedos»“. E tinham, normalmente bonecas que, juntamente com outros brinquedos tradicionalmente femininos, hoje preenchem o terceiro piso do edifício.
Não é fácil enumerar todos os tipos de brinquedos que povoam o espaço. São três andares capazes de pôr a miudagem a sonhar. Desde os já mencionados brinquedos com dois mil anos ao recente astronauta, filhos, pais e netos encontram, seguramente, um brinquedo capaz de lhe prender a atenção.
Desta diversidade nascem pequenas histórias, como a de um judeu que se mostrou incapaz de conter as lágrimas ao reconhecer os soldadinhos iguais aos que ele próprio teria pintado durante a sua prisão nos campos de concentração nazis. Mais divertida, a conversa entre um casal, frente aos fogões de lata, e que Arbués Moreira recorda, divertido: “Oh António, lembras-te do que fazíamos com estes fogões? Lembro, tu tinhas a mania dos perus e, como não cabiam no forno, obrigavas-me a matar pardais e a depená-los para os assar no forno, a fingir que eram perus.” Depois também há aquelas pessoas que só tiveram um brinquedo na vida, feito por eles próprios, e que se emocionam ao vê-lo hoje colocado na parede de um museu.
A tudo isto assiste Arbués Moreira, o homem que considera os computadores e as consolas de jogos como o brinquedo mais representativo da época actual mas que fica horrorizado quando ouve os netos, à frente de um videojogo: “oh pá, tu és estúpido! Então estás a chocar com outro carro! Se atropelasses a velhinha com o bebé tinhas ganho mais pontos! isto põe-me louco”, diz. “Tento desviar-lhes a atenção para outras coisas”. E assuntos de interesse não lhe faltam.
É ternamente divertido este homem de 69 anos que, na sua cadeira de rodas, quando as crianças de visita ao Museu lhe perguntam porque não anda, responde com ar simpático: “Não ando porque não me dão corda.” E os miúdos, acabados de ver os brinquedos que se movimentam a corda, interrogam as professoras: “porque é que não dão corda àquele senhor?”. “Passo o dia divertido. Isso é que é importante”, remata.
Notícias Magazine #744 / 27.08.2006

amiga anorexia


Não é uma doença de modas ou de manias nem é exclusiva do género feminino. Enredados nas malhas da doença, os rapazes também são suas vítimas, sem diferenças, na deterioração sentida.


Enquanto a família se dispersava pelos seus afazeres, Sérgio ia para a escola. Sem comer. Quando voltava bastava-lhe mentir para justificar a aparente falta de apetite. Tinha comido na escola, dizia. Pegava então num iogurte e fechava-se no quarto, longe de olhares que pudessem descobrir a magreza que lhe tomava conta do corpo. Mantinha-se cheio de energia e o domínio que conservava sobre o seu físico mostrava-lhe que afinal era capaz de alguma coisa. Se alguém ousava dizer que algo ia mal, Sérgio reagia: “o que querem é que eu coma e perca o controle sobre mim, sobre a minha vida, sobre o meu corpo”.
Tudo começara uns tempos atrás. Sérgio nunca foi um miúdo magro. Na escola, o simples facto de o chamarem resvalava facilmente para a humilhação: era “o gordo”. Sentia-se o bobo da corte, o coitadinho, de quem ninguém gostava. Defendia-se tentando parecer extrovertido, imitando os outros. Nas aulas, lutava por boas notas, queria marcar a diferença e mostrar as suas capacidades. Porém, o esforço parecia não ser suficiente. Pelo menos para o pai, a quem as avaliações escolares nunca chegavam, ocupando-se a prever-lhe um futuro de insucesso. Sérgio não contestava. Nunca foi rapaz de reacção fácil diante dos outros e, em casa, interiorizar parecia-lhe a melhor defesa. Só anos mais tarde, a conselho médico, se permitiu pôr a contenção de lado.
O retrato familiar também não era pacífico. O alcoolismo e a prepotência do pai ajudavam a que os afectos da mãe fossem desde sempre canalizados essencialmente para o filho, enquanto os avós apoiavam a irmã. Sérgio sentia-se isolado, dono de uma responsabilidade que não queria para si, quando a mãe lhe dizia “estou com o teu pai por tua causa”. Acabou por ganhar uma certa prática em desconfiança: “nunca houve união e, se não havia confiança em casa, eu não podia funcionar bem com os outros”, afirma. Os médicos não escapavam a esta suspeita e o acompanhamento pelo endocrinologista deixou de fazer sentido para o jovem de 16 anos que se sentia mal sempre que o clínico o acusava de não se esforçar por perder peso entre duas consultas. Tratou ele mesmo de emagrecer, de mostrar que era capaz, começando a fazer uma dieta alucinada, sem qualquer tipo de acompanhamento, onde apenas os valores calóricos de cada alimento lhe interessavam. Sem se dar conta, estava refém de uma doença extremamente viciante e manipuladora, a anorexia nervosa. Passados 4 anos, mantém consultas regulares de psicoterapia e consegue manter um distanciamento da doença que lhe permite considerar-se curado.
“Quem não passa pela doença não a consegue perceber”, diz Sérgio. “Passei fome, muita fome.” Até no nome a anorexia nervosa é ambígua, porque nunca há uma perda de apetite mas antes uma vontade férrea de a controlar.
Considerada frequentemente como própria de raparigas a quem a vontade de obterem um corpo perfeito as levam ao emagrecimento excessivo, a anorexia nervosa é muito mais do que isso: “é uma doença psíquica, afectiva, emocional, com alterações cognitivas da avaliação da realidade, sempre presentes.” É assim que Dulce Bouça, psiquiatra, coordenadora das consultas de Doenças de Comportamento Alimentar (DCA) do Hospital de Santa Maria (HSM), em Lisboa, define a anorexia nervosa. Com uma incidência, a nível mundial, que oscila entre 0,5 e 1%, a relação de pessoas afectadas pertencentes ao sexo masculino é de um em cada dez, enquadrando-se Portugal nestes parâmetros. O motivo da disparidade dos números prende-se com factores diferenciados entre o homem e a mulher, como o são a constituição biológica, a relação com a alimentação, o metabolismo, o funcionamento hormonal e também com o facto de a pressão social e cultural para perder peso ser maior no género feminino do que no masculino.
Quando procuramos motivos para o surgimento da anorexia nervosa, verificamos que apenas se sabe tratar-se de uma doença multifactorial: “há factores genéticos, familiares, culturais, sociais, pessoais, da personalidade, e todos confluem para que a doença possa vir a surgir”, afirma Dulce Bouça. Acima de tudo é uma doença caracterizada pelo medo. Um medo intenso de ultrapassar os desafios da vida. O mesmo medo que pode levar algumas pessoas ao consumo de estupefacientes, pode também conduzir aqueles que têm padrões pessoais de auto-análise mais rígidos, pessoas muito rigorosas e muito adaptadas a cumprir os padrões sociais e familiares que lhes são propostos, a entrar num processo de anorexia nervosa. Com uma clara distorção cognitiva acerca de si mesmo, das suas capacidades e do seu desempenho ao longo da vida, o potencial anoréctico dá mais um passo em direcção à doença quando se ilude acerca do que uma restrição alimentar lhe pode oferecer. Sempre à procura de viver bem consigo e com os outros, ele crê que o controle exercido sobre o seu apetite e o seu próprio corpo lhe dará a sensação de bem-estar que busca. Entra então num processo de deterioração biológica que, habitualmente, se nega a ver e a aceitar.
Por mais baixo que seja o seu índice de massa corporal (IMC), de uma forma geral ou selectiva, o anoréctico continua a sentir-se gordo: “não me importava de engordar 10 quilos, desde que fosse nas pernas e nos braços”, diz Ricardo, “acho-me barrigudo.” A anorexia nervosa foi-lhe diagnosticada aos 16 anos. Aos 18, do seu historial clínico fazem parte um internamento de 4 meses no bloco de psiquiatria do HSM, muitas consultas de acompanhamento psicológico e de terapia familiar, porque é essencial ajudar as famílias a ultrapassar a doença.
Extrovertido e bem disposto, Ricardo ignorava quando alguém lhe dizia que devia fazer uma dieta. “Eu queria era comer!”, diz. Sentia-se bem consigo e o excesso de peso não o impedia de se dedicar ao seu desporto favorito, o futebol. Com a entrada na adolescência emagreceu um pouco mas o seu IMC mantinha-se elevado. Em campo, sentia que a sua velocidade e resistência podiam melhorar com a perda de alguns quilos, contudo, não era nada que o preocupasse em demasia. A entrada de um novo treinador na equipa de que fazia parte veio alterar o rumo dos acontecimentos. Habituado a fazer parte da equipa principal, Ricardo viu-se fora das 4 linhas, a correr, durante todo o tempo de jogo. O treinador “dizia-me que só voltava a jogar depois de perder uns quilitos”, recorda. Não lhe foi sugerida uma meta ou dada qualquer indicação nutricional. Emagrecer, só, era o imposto. O rapaz tomou a coisa à letra e perder peso tornou-se o único objectivo de vida. Não importava como o fazia mas apenas consegui-lo. Também ele não precisava de esconder ou deitar fora a comida. Uma mentira era-lhe suficiente para iludir a vigilância familiar: “comi na escola”. A verdade é que comera uma sopa ao almoço e repetira o repasto ao jantar, junto da família e, por maior magreza que apresentasse, recusava-se a aceitar o seu excesso.
Para Maria São José Tavares, médica de família e coordenadora do projecto Aparece, desportistas com projectos para a alta competição e bailarinos, “por serem áreas em que tem de haver um grande controle sobre o peso e sobre o corpo”, são dois dos grupos em relação aos quais é necessária uma atenção suplementar aos indícios de anorexia. Pelas características do Aparece, dando apoio técnico a todos os problemas da adolescência, Maria São José tem acesso a casos que podem ser tratados sem que se chegue à fase de doença declarada. Contudo, para que tal aconteça, é essencial que o clínico esteja muito atento. O corpo é habitualmente a principal preocupação de um adolescente e “é no corpo que tudo está projectado. Na forma como ele é alimentado podemos avaliar sinais de desequilíbrio, da relação com o alimento, ou podemos suspeitar de relações de conflito com a alimentação, que não são ainda doença.” Mas esta detecção pode ser morosa e é necessário que o médico disponha de tempo que o nosso Serviço Nacional de Saúde não concede, além do facto de muitos dos jovens, essencialmente os rapazes, serem pouco dados a procurar ajuda. É aqui que o papel da família se torna mais importante. Para a técnica de saúde, “refeições que não são tomadas em família permitem que os adolescentes possam ter comportamentos alimentares que fujam à observação dos pais”. Muitas vezes esses comportamentos duram meses ou anos sem que os familiares os notem.
Sérgio e Ricardo passaram a isolar-se, a diminuir as hipóteses de que alguém reparasse na magreza dos seus corpos. Muitos escondem-nos sob roupas largas e chega a haver quem utilize pedras nos bolsos, quando obrigado a pesar-se periodicamente. Os jovens adoptam comportamentos em que se protegem de que alguém os veja, o que faz com que a situação progrida muitas vezes em silêncio. Sendo características destas pessoas a inteligência, e a obsessão em relação ao que pretendem atingir, não parece difícil que consigam iludir a vigilância familiar. Contudo esta não é uma doença cujo único tratamento consista em fazer a pessoa comer. É necessário que os sentimentos sejam trabalhados: “quando estão em situação de anorexia nervosa, os jovens são tão contidos com os afectos como com a alimentação”, diz Maria São José. A desconfiança em relação ao mundo instala-se. Sérgio e Ricardo ainda hoje têm dificuldade em confiar. Testam as famílias na hora de pôr a comida no prato. O pensamento diz-lhes que “eles querem que eu coma, coma e não pare” e é necessário averiguar “se o que querem é mesmo cumprir com o que deve ser feito, a quantidade ideal”, recomendada pelos médicos, para que seja obtida a reposição gradual dos valores calóricos ingeridos ao longo do dia. Ricardo só confia na mãe: “ela preocupou-se em tentar saber um pouco mais sobre a doença. Sérgio mantém a distância familiar, esqueceu as amizades antigas para abrir uma página nova da sua vida, onde as comparações com o que era anteriormente não sejam possíveis. Deixou de lutar por notas altas, enfrenta os problemas conforme eles lhe surgem. Ricardo esqueceu a carreira de futebolista mas mantém a esperança no seu sucesso pessoal em qualquer área ligada ao desporto.
Promover uma sociedade mais tolerante em relação às diferenças individuais, criar hábitos de convívio familiar salientando a importância do equilíbrio entre o aspecto emocional e físico das nossas crianças parece ser uma forma de gerarmos adolescentes saudáveis.

Contactos úteis:

AFAAB - Associação dos Familiares e Amigos dos Anorécticos e Bulímicos
Telefones – 21 432 19 67 (Lisboa) e 22 200 00 42 (Porto)
E-mail - afaab@ip.pt

APARECE - Centro de Atendimento a Adolescentes
R. Buenos Aires, nº 27, rc/dtº
1220-622 Lisboa
Telefones: Geral - 21 393 24 70
Atendimento a adolescentes - 213932477
E-mail: aparece_caa@yahoo.com ou aparece@oninet.pt

Centro SOS Voz Amiga - 800 202 669
Dias úteis, das 12h às 24h

Linha SOS Adolescente - 800 202 484
Dias úteis, das 10h às 13h e das 14h às 18h

Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar
Rua Sousa Lopes, 63-C
1600-207 Lisboa
Telefone - 217 972 110
E-mail - ndca@comportamentoalimentar.pt

Consultas hospitalares:

Hospital de Santa Maria
Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar
Av. Prof. Egas Moniz
1699-035 Lisboa
Telefone Geral - 217 805 000

Hospital da Universidade de Coimbra - Serviço de Psiquiatria
Consulta de Distúrbios Alimentares
Av. Bissaya Barreto
3000-075 Coimbra
Telefone Geral - 239400400/ 239400500
Linha Azul - 239827446

Hospital de S. João - Serviço de Psiquiatria
Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar
Av. Prof Hernâni Monteiro
4200-319 Porto
Telefone Geral - 225 512 100
Linha Azul - 225 096 093
Sábado #121 - 24.08.2006

serras de sal


Já lhe chamaram “ouro branco”. Constituía na altura a principal riqueza do concelho e participar na sua extracção era das poucas profissões possíveis para os homens de Alcochete. No verão, quando os campos pediam menos cuidados, eles encaminhavam-se para alguma das muitas marinhas que a região, encostada ao Tejo, oferecia. Hoje só as salinas do Brito se mantêm em laboração, fruto da persistente vontade de manter viva a tradição.

A estrada é silenciosa, àquela hora. Alcochete ainda dorme, envolta pelo brilho típico das povoações ribeirinhas. Seguindo um pouco para oeste, perde-se de vista o rio e o cheiro a maresia. Às portas do Samouco, uma quase imperceptível placa de madeira indica a direcção do Museu do Sal.
A via, sinuosa, tem a largura para que passe apenas uma camioneta, não mais. Ervas altas e sombras de construções abandonadas marcam a paisagem deserta. Repentinamente a estrada alarga em bermas de terra batida. É ali o Museu do Sal vivo e dinâmico, situado nas salinas pertença da Fundação João Gonçalves Júnior (FJGJ).
O portão já está aberto. Do interior do armazém saem vozes masculinas. Fala-se das notícias do dia anterior enquanto se espera um laivo de luz. Quando o céu se torna menos escuro e já é possível distinguir as silhuetas dos homens, alguém dá voz de partida: “bem, vamos lá?". Chegaram a ultrapassar as cinco dezenas, hoje contam-se num olhar: oito homens. “Muito deste sal não vou sequer rapá-lo, não tenho pessoal que chegue”, diz Manuel Nicolau, o marnoteiro das salinas do Brito.
Passo firme, encaminham-se cada um para a sua ocupação. As pás ficaram na talharia, desde o dia anterior. É necessário ver a graduação da água, transpô-la do viveiro para a caldeira de moirar. Pequenos montes de sal reflectem o tom róseo do amanhecer, os pés deslocam-se cuidadosa e lentamente para não estragar o cozimento do terreno. Enquanto a máquina de fresar percorre o talho, partindo o sal, preparando-o para a rapadura, retiram-se as impurezas para as barachas e rapa-se.

O princípio do sal


A extracção do sal já foi a actividade com maior peso na economia da região. Como começou não se sabe ao certo. De seguro, apenas as narrativas de cronistas dos últimos reinados da dinastia de Borgonha que mencionam, já nessa época, a exportação de sal, levando mesmo alguns a pensar que foram as condições excepcionais para a safra do mineral que originaram o nascimento da vila de Alcochete. Em meados do séc. XX, a instalação de fábricas de secagem de bacalhau da Terra Nova deram o maior incremento à actividade, chegando Alcochete a ser o maior centro nacional de secagem e preparação de bacalhau.
Estima-se que nessa altura a safra do sal empregasse cerca de 1200 alcochetanos que se dividiam entre a agricultura, no Inverno, e o trabalho nas salinas, no Verão. Aliado ao trabalho nas marinhas, estavam os carregos de bacalhau e sal de e para as fragatas que faziam o transporte entre a vila e os barcos atracados em Lisboa. Não é difícil encontrar em Alcochete quem, com idade superior a 50 anos, não recorde esses tempos que, afirmam, “eram complicados”. É que, apesar de depender dos salineiros o bom resultado da safra, durante quase uma década os seus ordenados mantiveram-se nos trinta escudos de jorna diária, embora o preço do moio de sal tivesse subido, no mesmo período, dos cinquenta para os oitocentos escudos, motivo pelo qual os salineiros de Aveiro e de Setúbal ganhavam quase o dobro do que auferiam os homens da beira-Tejo. Esta situação e o facto de os proprietários das salinas, com o pretexto das quebras havidas entre as correrias dos trabalhadores em direcção às barachas, pretenderem gradualmente aumentar o número de canastras por moio de quinze para dezoito, acabou por se tornar insustentável para o salineiro que, conta feita, no fim da semana tinha dado um dia de trabalho ao patrão. Em 1957, o descontentamento estava instalado, degenerando numa paralisação geral que a maior parte dos patrões se recusaram a resolver com negociações, antes apelando à intervenção da polícia. Como relembra João, filho de um salineiro, “alguns andaram fugidos dias e noites pela charneca e não foram apanhados. Outros foram presos, levados para o Aljube, e lá estiveram uma série de dias.” Esses homens, com o estigma de grevistas, não voltaram a ser aceites em qualquer salina. “Foram tempos difíceis”, continua João, “As famílias sobreviveram, com a ajuda da igreja, do padre Francisco Ferreira, que lhes dava alguns bens essenciais”.
Quando as coisas acalmaram, dar algumas indústrias ao concelho tornou-se quase ponto de honra para uns tantos homens influentes. Alcochete viu então nascer a Firestone, a Fábrica do Alumínio, e a Ormis, hoje Crown Cork & Seal Portugal que, conta José Navarro, o presidente da FJGJ, vieram “oferecer às pessoas uma vida mais estabilizada. Trabalhar numa fábrica durante doze meses é diferente de ter um emprego sazonal numa salina”.
Desses tempos fala-nos também a memória octogenária de Manuel Nicolau: “antigamente isto era uma terra de miséria. Após a greve, ao pé da ponte do cais, havia um mastro de um barco para onde os homens iam logo de manhãzinha, à espera que os chamassem para algum trabalho. Passavam dias sem ganhar um tostão.” Quando surgiram as fábricas, a escolha não foi difícil: “pagavam bons ordenados e deram emprego a todo o pessoal de Alcochete”.

Com falta de mão-de-obra, o declínio da exploração do sal anunciava-se lentamente. A este factor vieram juntar-se a concorrência estrangeira do mineral colocado no mercado a preços mais baixos, o encerramento das salgas de bacalhau na região e a decadência da indústria conserveira nacional.
Neste contexto, não parece pois estranho que as salinas a sul do Tejo tenham atingido o estado de abandono hoje observável. Contudo, e como diz José Navarro, presidente da FJGJ de 2002 a 2005, “a safra do sal, pela grande importância económica e cultural que teve para Alcochete, deve ser entendida como uma tradição”. E é aqui que surge o protocolo assinado entre a FJGJ e a câmara municipal de Alcochete no sentido de criar o Museu do Sal que constitui não apenas um depósito de memórias mas antes uma comemoração viva e dinâmica ao que foi a actividade na região. De inconveniente, apenas o facto de estar mais vocacionado para visitas de grupo
Porém, no que toca à precariedade do trabalho dos salineiros, pouco mudou através dos tempos. Os seus empregos continuam a ser sazonais e sem qualquer tipo de contrato que os obrigue ou que os proteja. Ainda nas palavras de José Navarro, “Podíamos fazer um contrato de três meses mas as pessoas não estão disponíveis para trabalhar três meses”. Se é um facto que, das várias visitas às salinas, quase sempre havia desaparecido uma cara para dar lugar a outra, parece também importante dizer que, embora a faina esteja parcialmente mecanizada e o salineiro já não transporte às costas as canastras de sal, os horários e o trabalho necessário demonstram-se duros para a remuneração de quinze euros diários, uma vez que continuam a receber à jorna.
Das 6:00 às 13:00, estes homens andam no cimo das serras de sal ou dentro de água salgada, sob o sol do verão reflectido pela brancura dos cristais. Segundo os escritos, a temperatura no interior dos talhos chega a atingir os 50º. Fernando, de pele tisnada, brinca com a situação “nem na praia, eu conseguia um bronze destes”. A nudez dos pés foi, na maior parte dos casos, substituída por calçado carcomido pela salinidade da talharia porque, como diz Jorge, “qualquer ferida feita pelo sal dói e demora a sarar, por isso evitamo-las”. A partir de Setembro o horário amansa e a entrada faz-se às 7:00, sendo já possível trabalhar sob o sol mais fraco, até às 16:00. Mas com as chuvas, lá para meados ou fins de Outubro, dependendo da graça dos céus, a sombra da desocupação volta à vida destes homens, cujas jornas não deram para amealhar sobrevivência sequer para os primeiros meses de desemprego. Em Maio regressam, talvez os mesmos, entre os mais velhos, e para complemento de reformas, outros, quando mais novos e à procura de uma vida mais estável.
Mas, apesar de todas as dificuldades, a FJGJ e a câmara Municipal de Alcochete não baixam os braços e prosseguem. No sentido de fomentar a continuidade das salinas, e apesar de a sua existência se limitar ainda ao papel, ponderam-se dois projectos. Um com vista à estão neste momento a ser efectuadas análises com vista a permitir a criação de uma marca certificada de sal biológico e, o segundo, que se prende com a . Ainda na sequência de manutenção dos costumes, está a ser estudado o desenvolvimento de um projecto de agricultura, também ela biológica, retomando a fava dos muros, tradicional na região pelo seu sabor característico.
De passo em passo, a tradição mantém-se. De inconveniente, o facto de as visitas ao Museu do Sal estarem absolutamente dependentes dos Serviços Educativos da Câmara e apenas vocacionadas para grupos, em horário laboral. Mas, se lhe apetecer arriscar, durante os meses de Verão, de segunda a sexta, das 6:00 às 13:00, as portas estão abertas.

Pãezinhos de sal

Os pãezinhos de sal podem ser vistos no Museu do Sal e no Museu Municipal de Alcochete mas sobre a origem ninguém sabe esclarecer. Manuel Nicolau, o último marnoteiro no activo da região, apenas se recorda de sempre os ter visto fazer. Tal como os mestres de marinha de antigamente, tem um jogo de formas que também ele utiliza. As formas, que podem ter um aspecto triangular ou quadrangular, eram feitas de bocados de madeira com desenhos invertidos feitos a lápis, esculpidos a canivete e, posteriormente, alisados com cacos de vidro.
Escorrido o sal de embate, ele é calcado dentro das formas que, depois de abertas, permitem observar nos pãezinhos a meticulosidade com que foram elaboradas.


Glossário:
Baracha – muros de defesa, construídos com o desaterro;
Caldeira de moirar – reservatório que pode servir de reserva para os talhos ou produzir sal. Se a água não tiver graduação (salsugem) bastante, serve como reserva;
Cozimento – tapete de algas. Cobre apenas as caldeiras de moirar e a talharia;
Marnoteiro – operário encarregue da marinha;
Moio – cerca de 840 litros de sal, 15 canastras a 56 litros cada;
Rapar – puxar e juntar o sal em pequenos montes para escorrer antes de ser colocado na serra;
Rasa – primeira colheita que se efectua debaixo de uma camada de água, com rodos;
Sal de embate – cristaliza nas águas remexidas pelo vento (móveis), sendo sempre sal fino, macio e com mais goma o que, quando utilizado no fabrico dos pãezinhos de sal, permite que estes não se desfaçam;
Serra – é formada pelo sal das diversas rasas, antigamente transportado à cabeça em canastras. Em Alcochete é coberta com junco e palha-carga, também chamada palha de paul;
Talharia – conjunto dos vários talhos;
Talho – rectângulo de terreno escavado onde o sal cristaliza;
Viveiro – encontra-se na parte mais elevada da marinha de forma a poder encher-se na preia-mar e despejar na baixa-mar. Comunica com o Tejo por uma porta de água aberta na baracha, que se abre e fecha através de um postigo de madeira. Tem capacidade para alimentar a marinha por quinze dias ou um mês.


Notícias Magazine # 740 - 30 .07.2006

ver futebol em grande

Ganhou prémios, medalhas, chamou a atenção das grandes marcas do mercado e é fruto da criatividade e persistência de um português. É o ecrã mais conceituado a nível mundial.

É verão, é futebol, é Mundial. Portugal avança nas etapas, a situação é empolgante e, na impossibilidade de uma deslocação à Alemanha, ver cada jogo, vibrar com cada lance é muito mais emotivo em grupo. Já experimentou, não foi? Já foi até àquela esplanada, onde viu o último jogo num ecrã, colocado ali mesmo, à luz do dia. Pois é, viu mas talvez não se tenha interrogado sobre a qualidade da superfície que lhe devolveu as imagens do estádio. Esteve provavelmente a olhar para o melhor ecrã do mundo mas não, não vem do Japão. É bem português e idealizado por um arquitecto de 52 anos.
O Lusoscreen, assim se chama o ecrã que ameaça tomar conta dos bares, locais públicos, e alguns lares, nasceu para consumo próprio. Há cerca de 12 anos Joaquim Candeias, apaixonado pela imagem, decidiu que havia de ver cinema de qualidade em casa sem interditar a sala ao resto da família. Começou então a desenvolver um ecrã com tal luminosidade que lhe permitia ver a projecção sem que a luz existente à volta interferisse na qualidade da imagem. Em 1996 levou a sua criação até à Cebit-Home, em Hannover, onde foi considerado Grande Inovação e, em 1997, foi medalhado a ouro no Salão Mundial de Invenções de Genebra. Trouxe encomendas, entusiasmou-se e com bons motivos: a sua obra projectava 26 vezes mais luz que o comum dos ecrãs e o dobro do seu mais directo seguidor, um americano que se fica pelas 13,2 vezes mais luz que um ecrã normal. No que toca ao contraste, mais uma vez o Lusoscreen bate, agora por K.O., o adversário americano. São 359 vezes mais de contraste, do português, contra as 13,2 vezes para o produto dos Estado Unidos.
Chegada ao conhecimento da Sanyo japonesa a existência deste líder de qualidade, a empresa pôs o seu vice-presidente a voar para Portugal com a intenção de adquirir os direitos de produção. Contudo, as condições do contrato sugerido pelo gigante da tecnologia da imagem não agradaram a Joaquim Candeias que arriscou a produção própria. Encomendas já tinha, o pior era a obtenção das matérias-primas transformadas de acordo com aquilo de que necessitava para produzir em série. Porém, Candeias não baixou os braços. Dois anos após a encomenda, entregou o primeiro ecrã ao cliente alemão que lhe tinha pedido vários. Foi paciente o germânico e persistente o português, que concluiu toda a requisição passados uns tempos.
Pela qualidade inigualável, o próprio ecrã foi fazendo a sua publicidade. Desde a pequena garagem, onde foi iniciada a sua produção, até à fábrica, hoje situada nos Olhos d’Água, em Palmela, passaram-se sete anos e é com comedido orgulho que Joaquim Candeias menciona o facto dos seus ecrãs estarem em locais como a Organização das Nações Unidas ou Festival de Cinema de Locarno. Portugal ainda é o principal consumidor dos Lusoscreen mas a exportação marca também pontos, com a Alemanha e Angola a liderarem a lista de clientes estrangeiros.
Durante um ano normal, a empresa equipa bares e cafés, preocupados em cativar a clientela através da imagem, ou escolas e locais promotores de conferências, além de alugar equipamentos para situações pontuais. Já em anos como 2006, em que o futebol é rei, as vendas e alugueres disparam e a produção torna-se insuficiente, mas o ex-arquitecto tenciona continuar a ampliar as capacidades da fábrica, até porque insiste em dar azo à sua imaginação e passou a desenvolver um sistema de cinema em casa, com o intuito de alcançar aquele público que gosta de aliar a qualidade da projecção à estética da decoração. É o senhor que se segue.
Sábado #115 - 13.07.2006

avós da modernidade

Numa sociedade em constante crescimento tecnológico, elas vêm falar da natureza e essencialmente das capacidades inatas do sexo feminino. A palavra que as designa provém etimologicamente do grego e significa “a mulher que ajuda”. Doulas, aquelas que se dispõem a tornar a gravidez e o parto, mais do que actos médicos, no reencontro da força humana contida na mulher. Elas são as avós da modernidade no apoio que dão às mães, futuras e recentes.

Há mulheres que vêem no parto momentos dolorosos e difíceis de suportar. Pelo contrário, outras encontram nele a continuação do acto de amor que lhe deu origem, nove meses atrás. É inegável que cada uma terá a sua forma de sentir o momento do nascimento dos seus filhos, influenciadas pelos mais diversos factores. Porém é notório que quando a sociedade tenta retratar o momento do parto, nomeadamente através do cinema, fá-lo frequentemente recorrendo aos gritos de dor incontida. Visualmente, a narração é feita através de movimentações nervosas mas imperativas da equipa médica e expressão agitada da parturiente. Por outro lado, se pensarmos num sentido mais restrito, limitando a comunicação às narrativas das experiências pessoais de cada mulher, são constantes as histórias de momentos dolorosamente suportados.
Se há alguns anos a sociedade estava estruturada de forma a poder facultar à grávida todo um apoio baseado na experiência de mulheres mais velhas, capazes de dar alento à futura mãe, essencialmente o fenómeno urbano fez com que essa organização se desintegrasse dando lugar a um sistema edificado sobre práticas muito mais tecnológicas. O acto médico passou a sobrepor-se à naturalidade do estado de gravidez e também para o momento do parto a medicina já encontrou fáceis e práticas soluções. Partos induzidos, epidurais e cesarianas são frequentes nos nossos hospitais e naturalmente aceites por grande parte das grávidas. Convenhamos que é compreensível – entre tanta narrativa medonha, é difícil resistir imune à sensação de sofrimento generalizado. Porém, se esta é a tendência da sociedade moderna, é também o que as doulas pretendem inverter, prestando à futura mãe todo um apoio, baseado em experiência e informação fundamentada em evidências científicas.

O nascimento das doulas em Portugal

A Associação Doulas de Portugal (ADP) nasce de uma situação de fragilidade extrema sentida por Luísa Condeço. Era a sua primeira gravidez e considerava-se uma pessoa informada. Como muitas das mulheres modernas, fez preparação para o parto, leu revistas, livros. Mensalmente ia às consultas de rotina, fez todas as ecografias que o médico exigiu, permitiu que este lhe marcasse uma data para indução do parto. “Foi uma violência, o que fiz”, comenta. “O meu filho não estava preparado para nascer”. A esta violência, que ela hoje reconhece, juntou-se uma cesariana, única saída possível para um trabalho de parto que acabou por se precipitar da forma menos desejada, em que mãe e filho correram riscos de vida. A quantas mulheres consegue corresponder este retrato?
Luísa sentia-se incapaz, maltratada, culpada por ter aceite as sugestões do médico, agido de forma errada. Com uma depressão pós parto em mãos, pegou no filho, numa mala com roupa e foi procurar a companhia de Carla Guiomar. Mulher, amiga, confidente, também ela mãe e capaz de entender tudo aquilo porque Luísa estava a passar, Carla tinha acabado de receber um livro, em inglês, que falava sobre parto humanizado. Luísa sorveu-lhe as letras e no final ficou-lhe um desejo: traduzi-lo e divulgá-lo. Nenhuma mulher deveria passar por aquilo que ela mesma acabara de experimentar e, acredita, a informação é o melhor meio de lutar contra os erros instituídos.
Começou por criar a Companhia das Mães, através da qual recebia mulheres grávidas, com quem conversava e trocava experiências. Ligou-se à Internet, entrou em listas de discussão, continuou a ler e a aprofundar conhecimentos. Michel Odent, obstetra e cirurgião, o autor do livro que lhe despoletara a certeza de que a forma como a sua gravidez decorrera e culminara não era a única possível, continuava a ser a sua principal fonte de convicção. Assim que teve oportunidade, e levada por Carla Guiomar, foi a Londres fazer um curso com “o Mestre” e Liliana Lammers. Regressaram cada vez mais seguras das suas certezas sobre a importância da atitude da mulher durante a gravidez e parto e da desnecessidade de muitos dos actos médicos a que esta é submetida durante a gestação e puerpério. Tamanha convicção precisava de um escape, de actuação. Criaram um blog, começaram a ser contactadas por mulheres que pretendiam mais informação, nasceu uma lista de discussão na internet. Estava lançado o embrião para a ADP que, desde Setembro de 2004, tem vindo a crescer, afirmando lentamente a sua luta pela humanização do parto e pelo direito da mulher escolher de forma consciente que tipo de nascimento quer para o seu filho. E por humanização do parto, seja ele domiciliário ou hospitalar, entende-se que este se processe de uma forma segura, isenta de riscos desnecessários, mas onde também estejam ausentes as intervenções médicas supérfluas que, instituídas mais por uma questão de hábito do que por necessidade, em nada beneficiam a mãe ou o filho.

Mudar a forma como se nasce

Em países como Inglaterra e Brasil a actividade das doulas é já sobejamente reconhecida como profissão. Em Portugal as coisas decorrem ainda lentamente. Luísa Condeço e Carla Guiomar foram as primeiras a abraçar e aplicar o conceito de doula por terras lusas. Com a criação da ADP, sempre acompanhadas e apoiadas por Michel Odent, desenvolveram uma estrutura capaz de dar formação a pessoas interessadas em exercer a actividade, alargando a sua actuação a todo o país. Quando alguém pretende obter o serviço de uma doula na sua área de residência, é feito um primeiro contacto para a ADP que faculta uma lista de pessoas, devidamente atestadas, com as quais é possível marcar um primeiro encontro. Esta primeira reunião, sempre gratuita, tem por finalidade permitir que seja encontrada a doula com quem a futura mãe sinta maior nível de empatia, essencial para que o trabalho posterior resulte. Hoje, a nível nacional, o número de mulheres certificadas como doulas já ascende a cinquenta e, apesar do seu crescimento enquanto grupo de actividade, os princípios pelos quais se regem mantêm-se inalteráveis. Baseando-se em evidências científicas e nas orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), transmitem à grávida toda a informação de que esta sinta necessidade. Como afirma Luísa Condeço, “uma doula nunca deixa uma mãe com dúvidas. Pode até não saber imediatamente a resposta para a questão que lhe é colocada, mas vai à procura, utilizando todas as fontes que tem disponíveis”. E estas fontes, além de documentos fidedignos, incluem médicos, psicólogos entre outros profissionais ligados à área da saúde.
Manter a mulher num estado de serenidade absoluta é o ponto fulcral da actuação das doulas que evitam e tentam desmistificar todas as situações que possam ser causadoras de ansiedade, estado que, esclarece Luísa, “leva a que a futura mãe liberte, entre outras, uma hormona, o cortisol, inibidora do desenvolvimento fetal”. Ela acredita profundamente “que o período pré-natal seja muito mental. Trata-se de um processo fisiológico, tal como é a digestão. Nós não pensamos na digestão, confiamos que ela aconteça. De vez em quando pode haver qualquer coisa a correr mal. A gravidez e o parto são processos mais elaborados do que uma digestão mas igualmente fisiológicos”.
Este pressuposto de naturalidade do estado de gestação trata-se do ponto de partida para o trabalho das doulas que acreditam na capacidade inata da mulher parir, afinal “fazemo-lo há milhares de anos”, afirma Luísa. Não pretendem retirar importância ao acto médico e menos ainda substituírem-se aos clínicos ou a qualquer profissional de saúde mas exortam as mulheres a ouvir a linguagem do seu próprio corpo, a confiarem mais em si mesmas, na sua intuição, a questionarem os hábitos instituídos que se mostram verdadeiras situações de violência para mãe e filho. Entre eles estão a rapagem da zona púbica da mulher, os clisteres que lhe são ministrados antes do parto, a episiotomia, a impossibilidade de a parturiente se movimentar livremente, a obrigatoriedade de parir deitada e até a monitorização constante através da cardiotocografia (CTG).
Todos estes actos vão contra as necessidades básicas da mulher que afinal de contas são mínimas. “Para dar à luz, a mulher não necessita mais do que uma cama baixa, um ambiente calmo, privacidade, luz suave e liberdade de movimentos”, afirma Luísa que explica o motivo de desacordo com os actos implícitos à maior parte dos partos ocorridos em ambiente hospitalar: “a rapagem mais não é do que uma forma de facilitar que seja feita a costura após a episiotomia que, por sua vez, habitualmente só é necessária por a mulher parir na posição horizontal, aquela que é mais propícia à equipa médica.” No que diz respeito aos clisteres ministrados, eles tornam-se supérfluos se não for imposto à parturiente que se deite, diminuindo assim substancialmente os riscos de sujar a equipa médica. Além disso, o corpo da mulher começa a preparar-se para o trabalho de parto com a antecedência de alguns dias, processando-se uma depuração natural dos intestinos. Quanto à ligação ao CTG, diz Luísa, “uma mãe sabe naturalmente que o seu bebé está vivo porque se mexe, mas não tem habitualmente consciência dos batimentos cardíacos dado que não os ouve. Na altura do trabalho de parto, ligada ao CTG, ela está constantemente a ouvi-los, tornam-se reais, entram na zona do neocortex, que é a zonal racional do cérebro, e aquela mulher tem a adrenalina sempre em cima.” E nestas coisas de hormonas é importante ter em conta alguns conceitos básicos. Ao libertar adrenalina, o corpo inibe-se de produzir oxitocina que, não chegando ao hipotálamo, limita também a produção de endorcinas, as anestesias naturais, tornando o trabalho de parto mais doloroso.
Ainda no campo das hormonas, e tentando explicar como um único procedimento desnecessário pode trazer por arrasto a urgência de outros anteriormente supérfluos, Luísa Condeço salienta o facto de, nos casos de indução do parto, ser ministrada à parturiente oxitocina artificial. Perante o facto de o hipotálamo se encontrar naturalmente protegido contra químicos artificiais, este tipo de oxitocina não penetra na zona do neocortex que, não sendo estimulado, também não liberta as desejáveis endorcinas. Daqui nasce muitas vezes a necessidade que a parturiente sente da aplicação da epidural que, por sua vez, retira à mulher sensibilidade no momento da expulsão, acabando por dar fundamento à episiotomia.
Também o elevado número de cesarianas praticadas em Portugal é questionado pelas doulas que consideram ser muitas delas desnecessárias. Afinal a cesariana é um acto cirúrgico apenas justificável por situações de risco para a mãe ou filho. Outra situação, esta mais passível de ser contestada, está na relação directa entre a percentagem de cesarianas efectuadas e os índices de criminalidade. Michel Odent costuma referenciá-lo, conta Luísa: “em tom de brincadeira ele diz que, quando viaja para determinado país e quer saber se pode sair à noite, vai analisar as taxas de cesarianas efectuadas nesse território nos últimos 20 anos”. Se o facto pode merecer alguns sorrisos, a realidade é que em cidades como o Rio de Janeiro, onde a criminalidade está em crescendo, as taxas de cesariana são altíssimas, ao contrário, por exemplo, de Amesterdão que tende cada vez mais para o parto humanizado, com um mínimo indispensável de intervenções cirúrgicas.
Apesar da autenticidade desta analogia estar por comprovar, cabe aqui a provocação de querer saber se pretendem mudar a sociedade. É Lia, também ela doula e mãe de um filho, quem responde “a sociedade não, só a maneira como se nasce.” E nada de confusões, não se pense que defendem apenas o parto natural. Como afirma Carla Guiomar, “parto humanizado é aquele que respeita a mulher como protagonista desse evento, como alguém com o direito humano de escolher em consciência a forma como quer trazer os seus filhos ao mundo.” Além do mais, acredita que “nenhuma mulher vai escolher conscientemente uma forma de ter uma criança que não considere a mais segura para si e para o seu filho. O que acontece é que muitas vezes as aparentes escolhas das mulheres não foram realmente feitas por elas ou, pelo menos, não foram feitas em posse da melhor informação.” Neste sentido, as doulas não se limitam a contestar pelo simples acto da refutação: “aquilo em que devemos apostar é na informação, na educação, na consciencialização e auto-responsabilização das mulheres, acreditando que elas vão fazer a melhor escolha para o seu caso. No final a opção é de cada mulher e isso tem que ser respeitado. Uma doula apoia sempre uma decisão tomada em consciência e não faz qualquer julgamento de valor”.

Passos curtos mas seguros

O facto de, na sua actuação, se basearem em evidências científicas, estudos elaborados por investigadores, faz com que sintam a certeza de caminharem na direcção correcta. Aos que as acusam de “prosélitas do passado” por defenderem a pacatez do parto domiciliar, para muitos anterior causa de mortalidade materno-infantil, e apontarem como desnecessários a maioria dos actos médicos executados durante o período de parto, Luísa Condeço responde que “boa parte dessas mortes se deviam à má alimentação, à total ausência de água potável, saneamento básico e medidas simples de higiene, entre outros. A mortalidade baixou exactamente porque todos estes aspectos da vida humana foram implementados e melhorados e não simplesmente porque o local do parto passou de casa para o hospital. Isto é uma evidência científica”.
Nas palavras de Rita Correia, doula e mãe de 5 filhos, “o que tem surgido no nosso país é um número crescente de mulheres conscientes e seguras da sua condição, que preferem ficar no aconchego das suas casas na altura simbólica e absolutamente marcante do nascimento dos seus filhos.” Para esta doula, “essas mulheres têm o direito a serem respeitadas nas suas decisões conscientes, e acompanhadas dignamente por uma enfermeira ou um médico obstetras, se assim o entenderem, que encare a sua opção com a mesma naturalidade com que olham as mulheres que vão ao hospital ter os seus filhos.”
É pois pelo direito à informação generalizada, partindo do próprio corpo clínico, que estas mulheres se batem. Não defendem, como muitos erradamente pensam, uma total desmedicalização do parto e um absoluto "retorno às origens" do nascer em casa. Advogam, isso sim, que a mulher tem há milhares de anos uma capacidade inata, que é parir. Tendo esta aptidão vindo a ser ignorada sob o estonteante crescimento tecnológico da sociedade, torna-se então necessário que o género feminino reaprenda a escutar e interpretar o seu corpo, sobretudo no que diz respeito à maternidade.
"O acto de parir é natural e instintivo"

Deolinda Major é enfermeira obstetra e presta serviço nos hospitais do Barreiro, Vila Franca de Xira e Amadora-Sintra. Com toda a sua equipa, ela é apontada como um exemplo de profissional que actua de acordo com os pressupostos de um parto humanizado.Prefere não emitir opinião sobre o trabalho das doulas dado que, como diz, “apenas assisti uma parturiente que vinha acompanhada por uma doula”. Contudo, e apesar do desconhecimento sobre as convicções destas mulheres, a convergência de ideias é notória quando afirma que “o acto de parir é natural e instintivo”, ou quando menciona o facto de, na sala de partos, baixar o seu tom de voz e trabalhar na obscuridade por achar que “as mulheres ficam muito mais calmas”. Para esta enfermeira, especializada em obstetrícia há 17 anos, “não é suficiente humanizarmos os espaços físicos onde as crianças nascem, é necessário que humanizemos também as equipas que lidam com nascimentos. E quando falo em humanizar é dar oportunidade à mulher de se manifestar como ela bem entender.” De tal forma que já teve situações em que as mulheres quiseram dar à luz de cócoras. A influência que até hoje transporta para a sua profissão vem-lhe da sua própria experiência como parturiente, aquando do nascimento do seu primeiro filho: “fui mãe muito jovem e fui muito bem tratada. Não fiquei nada traumatizada, porque a enfermeira que me assistiu foi extremamente carinhosa. Talvez por isso ela continue a ser o meu ponto de referência na profissão”.

Notícias Magazine # 735 - 25.07.2006

"não deixe a peteca cair"


No Brasil, dizer: “não deixe a peteca cair” pode ser uma frase de ânimo para quando as coisas não vão muito bem na vida. Trata-se de uma clara alusão ao jogo da peteca, cujos primórdios ascendem há centenas de anos atrás e que tem como objectivo manter um volante em trajectórias aéreas, impulsionado pela palma da mão.

Há quem refira a prática da peteca em países como a China, Japão ou Coreia, há mais de dois mil anos, utilizada como manutenção de treino militar em tempo de paz ou, entre os mercadores, como forma de aquecimento nos períodos mais frios. Contudo, de certo, sabe-se que no Brasil, e ainda antes da chegada dos portugueses, os índios já jogavam a peteca. Minas Gerais, região densamente povoada por tribos tupis e guaranis é considerada o local de nascimento desta prática, directamente ligada aos indígenas e à época de colheitas, altura em que a peteca, volante que dá o nome ao jogo, era feita em palha de milho, sendo a base cheia com areia. Hoje ela surge de forma padronizada, constituída por rodelas de borracha sobrepostas e quatro penas brancas, de peru. Depois há as pequenas variantes: desde a peteca especialmente fabricada em materiais resistentes para ser utilizada na praia àquelas mais leves e facilmente adaptáveis às mãos de uma criança, os pesos, bem como as cores, diferem.
Conta a história que durante os Jogos Olímpicos de Antuérpia, em 1920, a delegação brasileira levou consigo algumas petecas para serem utilizadas como entretenimento. O interesse da comitiva finlandesa, ávida de informação sobre as regras do que observavam como uma modalidade nova, lançou algum embaraço entre os brasileiros que praticavam o jogo de uma forma simplesmente lúdica. Só em 1973 as primeiras normas começaram a ser implementadas, adaptando-lhe algumas das regras utilizadas pelo badmington, voleibol e pelota basca. Como desporto federado, ela surgirá apenas 12 anos mais tarde, em 1985, muito motivada por pressão dos clubes de peteca de Minas Gerais que, perante o elevado número de adeptos, acreditavam ser possível transformar uma prática ancestral em desporto nacional.
A prática da peteca alarga-se às mais variadas idades e, a partir do Brasil, inicialmente sob a forma de pequena lembrança oferecida aos visitantes, a modalidade espalhou-se pelo mundo. Em Portugal, é fácil de encontrar grupos, essencialmente de brasileiros, a bater a peteca na praia. Contudo, além desses, encontramos gente bem mais ambiciosa, cuja intenção é fazer com que a modalidade deixe de se confinar aos encontros de amigos, conferindo a Portugal uma representação nacional, com capacidade de participar em competições de internacionais.
Um petequeiro em Portugal
José Andrade é brasileiro, campeão de peteca do estado de Minas Gerais precisamente e, em alusão à modalidade pela qual é apaixonado, gosta de ser tratado por Andrade “Peteca”. Se tinha o sonho de viajar até à “terra do tio Sam”, a irmã trocou-lhe as voltas no dia em que lhe ofereceu uma passagem aérea para Portugal. Chegou há seis anos. Viu, gostou e ficou. Homem dos sete ofícios e quatro desportos, Andrade “Peteca” é praticante de futebol, atletismo, natação e peteca. Em 2003, decide fundar uma associação sem fins lucrativos, o Clube de Praticantes de Peteca de Portugal (CPPP), com o objectivo de divulgar a modalidade em Portugal. Com sede em Fernão Ferro, no concelho do Seixal, as actividades do CPPP decorrem em espaço cedido pela União Recreativa Juventude de Fernão Ferro (URJFF), cujo presidente José Rei, adepto da prática desportiva como forma de ocupação dos mais novos, abriu as portas a esta modalidade por “ser nova, diferente, económica e acreditar na sua capacidade para motivar participantes”.
É através do CPPP que “Peteca” pretende afirmar a prática do desporto que lhe vale a alcunha. Para que tal seja possível, tem vindo a desenvolver um projecto cuja finalidade essencial é ocupar crianças e jovens e “formar futuros campeões”, diz. “A peteca pode ser considerada um entretenimento mas, como qualquer desporto, tem hipóteses de funcionar como uma actividade de prevenção social”. Neste contexto, José Andrade tem levado o seu projecto às escolas, fazendo apresentações teóricas e práticas embora, porque os apoios económicos são nulos, apenas no concelho do Seixal. Contudo, sendo uma modalidade recente em Portugal, a peteca tem os atractivos mas essencialmente as dificuldades de tudo o que é novo e Andrade queixa-se da falta de atenção dos adultos implicados no processo de divulgação da modalidade: “infelizmente, não consegui ainda sentir um verdadeiro interesse por parte dos professores ou pais das crianças de forma a motivar os mais novos na continuação da prática da actividade. Os miúdos gostam da apresentação, mas depois não aparecem no Clube nem tenho conhecimento que continuem a praticar a peteca na própria escola”, afirma Andrade, que se mostra disponível para facultar formação gratuita aos professores e encarregados de educação. A intenção é alertá-los para as vantagens de uma modalidade bastante completa, pelo tipo de movimentos que exige, capaz de fomentar o espírito de equipa e que, face aos reduzidos meios e custos que envolve, pode facialmente ser praticada em qualquer lugar e por pessoas oriundas de qualquer extracto social.
Para já, alguns miúdos, além de gente mais avançada na idade, são assíduos nos treinos na URJFF. Cleison Teixeira tem doze anos. A mãe está em São Tomé e Cleison vive com o pai e a avó. É franzino e tem um ar entre o reguila e o atento. Imparável em campo, define a prática da peteca como “espectacular”. A modalidade apanhou-o no meio de uns remates de futebol ali mesmo, na URJFF. Atraído pelos movimentos que a nova modalidade implica, entusiasmou-se. Ataca o volante com a habilidade de quem quer vencer, impulsionando-se no ar sempre que ele vem mais alto, servindo forte para que ultrapasse os 2,20 metros de altura da rede. O seu sonho é finalizar a impulsão com uma queda perfeita, como vê Andrade fazer.
Já Vinicius Nascimento, igualmente de 12 anos, é um miúdo aparentemente mais calmo. Tal como Cleison, também ele jogava apenas futebol e até tinha a ideia de que a peteca era um desporto tipicamente “para raparigas”, mas essa noção dissipou-se às primeiras palmadas que deu para defender o volante. É que, embora a modalidade não tenha falta de praticantes do sexo feminino, é necessário ter mão rija para aparar a velocidade com que a peteca se desloca.
Lado a lado com os mais jovens, está Joaquim Loução. Tem 51 anos e é instrutor num centro de formação profissional. Chegou à peteca através do contacto que teve com Andrade, durante um curso em que este foi seu aluno. Com o tempo, os papéis inverteram-se e neste momento é o “Peteca” quem ensina o monitor. Todos os domingos Loução se desloca às instalações da URJFF para participar nos treinos da modalidade que começou a praticar aos 50 anos. “Não tenho quaisquer esperanças de vir a competir em campeonatos internacionais, não só pela idade mas também porque comecei muito tarde”, diz, “mas sinto que todos estes movimentos e o tipo de exercícios de aquecimento que fazemos antes dos treinos, me mantêm em forma. No Inverno, sinto a sua falta.” A menção à ausência de treinos no Inverno vai ao encontro de uma pretensão de José Andrade que, nos contactos que tem feito no sentido de pedir apoios, solicita que lhe seja disponibilizado um pavilhão coberto para que os treinos da modalidade não tenham de ser adiados em dias de chuva.
“Levo este clube muito a sério. Sei que tenho possibilidades de ajudar sob o ponto de vista social, motivando as crianças e desviando-as de actividades menos desejáveis, ocupando-lhes os tempos livres de uma forma saudável”, afirma Andrade “Peteca” que continua: “temos hipóteses de organizar campeonatos em que os praticantes, além de se exercitarem, sintam a responsabilidade de melhorar a sua actuação. E isso é positivo, até do ponto de vista do desenvolvimento da autoconfiança das crianças.”
É com entusiasmo e um ar algo sonhador que os rapazes, durante uma pausa dos treinos, ouvem falar do Campeonato Internacional de Peteca, que terá lugar em Sannois, França, durante o próximo mês de Maio mas onde Portugal, por falta de patrocínios, não terá qualquer participante.
“Necessitamos de apoios”, afirma “Peteca”. “Só assim poderemos levar mais longe este projecto, fazê-lo sair do concelho do Seixal.”
Os miúdos continuam a saltar à procura da peteca. Queixam-se do ardor provocado nas mãos, mas esfregam-nas e batem-nas, de acordo com as instruções do treinador. Ficam então aptos para mais um ataque ao projéctil, vibrando quando conseguem que o adversário não o defenda.
Quem já experimentou, espera concerteza que José Andrade “não deixe a peteca cair”.
Sábado #109 - 01.06.2006

agosto 31, 2006

originalmente ostra


Cria e recria em concha de ostra, coral, madrepérola, búzios. Das suas mãos podem sair reproduções fiéis do quotidiano como peças abstractas que foram tomando forma na sua mente irrequieta. Tanto quanto julga saber, o seu trabalho é único no mundo. Em Portugal não tem dúvidas, não há mais ninguém que o faça. Está disponível para ensinar, só não tem quem queira aprender.

António Cruz nasceu há setenta anos, por terras do Norte. De lá transporta o sotaque vincado, que o tempo não apagou. Foi aí, ainda miúdo, que começou a trabalhar os arames e as madeiras para fazer os brinquedos que os pais não lhe podiam dar. Para este homem vindo “do tempo em que, com sete anos, já ia apanhar lenha”, “a bola era uma meia e uns trapos. Se apanhasse uma bola de borracha pequenina, já me considerava muito rico.”
Contudo, a falta de meios económicos nunca retirou a criatividade ao miúdo: “uma coisa que eu gostava de fazer era barcos”. O gosto ficou-lhe pela vida fora, mesmo que aos quinze anos, se tenha feito ao mar para ganhar a vida. Teve várias profissões, “mas fui essencialmente pescador. Andei na pesca do bacalhau, depois andei nos barcos, em Lisboa, mais tarde vim para Alcochete”.
O atelier de António Cruz fica num anexo da sua casa. No espaço que medeia os dois edifícios podem ver-se ostras a secar. É aí que António ou a mulher esmagam as cascas dos bivalves para os acabamentos das peças. Já no interior da oficina, junto à janela, uma bancada de trabalho serve-lhe de poiso. Empurrado contra a parede, um monte de conchas que esperam por vez para verem aproveitadas as suas formas em objectos que crescem ao ritmo de quem as cria. O artífice gosta de trabalhar ao sabor da sua inspiração e encomendas, torna-se difícil aceitá-las. Embora já o tenha feito, diz que esta forma de laboração se torna “um compromisso e não é a mesma liberdade de estar a criar”, afirmando peremptório: ”eu gosto sempre de fazer coisas diferentes, é isso que me entusiasma”.
Comprovam-no as peças expostas numa segunda divisão do atelier. Num espaço com pouco mais de 20 m2 espraiam-se por vitrinas alguns dos seus trabalhos. Entre reproduções e figuras simbólicas, pode apreciar-se de tudo. A um canto, uma cópia da Alcatejo, a fragata pertença da Câmara Municipal de Alcochete, de um dos lados, algumas barcaças, representações das artes piscatórias, com as redes miúdas, elaboradas com minúsculos búzios. Há ainda toda uma série de presépios e figuras abstractas que o artesão gosta de elaborar, pequenas obras-primas da habilidade de um homem que começou nisto de ser artesão há 37 anos.
Por volta de 1969, António Cruz decidiu deixar as lides marítimas: “ vim para Alcochete, porque andava sempre fora de casa. Escolhi fixar-me na Câmara, em fiscal de mercados.” Passou a ganhar cerca de metade do que auferia anteriormente mas contava com o jeito que sempre o tinha acompanhado para fazer pequenos trabalhos. No início dedicou-se à marcenaria. Já aí gostava de produzir peças diferentes e é com orgulho que fala nos guarda-jóias com segredo que saíram das suas mãos. Contudo, a insistência da filha para que visse umas peças feitas por um pescador veio mudar-lhe o rumo da inspiração: “era uma pessoa que tinha um barquito e fazia uns trabalhos com ossos de galinha e concha de berbigão e amêijoa.” Quando viu aquilo, ocorreu ao artífice começar a trabalhar em casca de ostra. A matéria-prima estava ali bem à mão: “comecei à base de concha daqui de Alcochete. Era eu quem a ia apanhar, nas marés baixas.” Para as escolher, olhava as suas formas. Se, ainda no chão, lhe sugerissem o início de uma peça, então trazia-as consigo.
Segundo conta, a inspiração vem-lhe essencialmente do feitio dos materiais que utiliza “todas as formas que vejo, posso servir-me delas. É uma questão da pessoa ter a capacidade de as aproveitar.” Quanto às suas peças maiores, “qualquer delas são a história da vida”. E por história da vida entende-se aquilo que António vivenciou ao longo da sua, como é o caso de duas das mais imponentes peças que podem ser vistas no seu atelier: uma, a reprodução de uma das mais ancestrais tradições da terra que o acolheu, o quotidiano da vida numa salina; a outra, o dia-a-dia num bacalhoeiro, peça baseada na sua experiência pessoal pelos mares da Terra Nova.
A representação da água é executada em madrepérola, os barcos em cascas de ostra cuidadosamente ligadas. Apenas alguns pedaços de arame são utilizados em peças que necessitam de um esqueleto que as suporte e, mesmo esses, são escrupulosamente cobertos com o mesmo material moído, utilizado nos acabamentos, de cores previamente escolhidas. Isto porque nem tintas entram no trabalho deste artesão, sendo todas as tonalidades dos pormenores das peças escolhidas entre os pós de cascas de bivalves esmagadas e posteriormente peneirados de acordo com a espessura pretendida. Também as velas que enfeitam os barcos são feitas utilizando o mesmo sistema. Depois de escolhido o matiz pretendido, o pó é deitado sobre uma placa metálica, na qual é colocada também cola e é dessa pasta, devidamente misturada, que irão sair as imitações dos panos enfunados.
Para todos estes apuramentos técnicos obtidos através de longos anos de experiência é que António Cruz não tem seguidores. Se em tempos a Câmara Municipal de Alcochete promoveu um curso para formação de artesãos nesta área , findo este, os potenciais artífices dispersaram-se e não há notícia de que mais alguém se dedique a este tipo de trabalho. Como diz António Cruz, “se houvesse mais gente a trabalhar nisto, ganhava o país e ganhava a terra, até porque o estrangeiro ia ver um trabalho que mais ninguém faz”. Mas, para o conseguir, seria necessário o apoio de alguma instituição, uma vez que a forma de trabalhar deste artesão, com a inspiração em roda livre, não se presta à contratação de um aprendiz.
Quanto à divulgação, ela é pouca. Excepção feita a uma ou outra entrevista, à presença num dos livros editados pela câmara, apenas a comparência em exposições e em feiras de artesanato têm difundido o seu trabalho. Contudo, António Cruz não é grande adepto desta modalidade e os seus motivos são vários. “Sou uma pessoa que gosto muito é de estar a trabalhar no meu cantinho”, diz, adiantando “é diferente. Estar numa exposição é ficar ali à espera.” Se este não fosse motivo suficiente, outros há que se prendem com a própria organização destes eventos. É que, nas exposições de artesanato, o artífice é convidado mas tem de pagar o espaço que ocupa e, apoios, o artista apenas tem o da Câmara Municipal de Alcochete que se limita a fazer o transporte das obras, o que o leva a comentar: “se alguém vai a uma televisão cantar um fado, recebe um cachet porque dá espectáculo. Um artesão vai a uma feira, dá espectáculo e ainda tem de pagar. Em Vila do Conde, ultimamente, além de pagar o stand, ainda tive de pagar 3% sobre as vendas.”
Com obras, que podem custar entre os módicos 7,50 € e os 7.500,00 €, este homem tem trabalhos espalhados por colecções particulares desde a Europa até à Ásia. A ele recorre a Câmara Municipal de Alcochete quando quer fazer uma oferta institucional e, embora já tenha tido alguns convites para trabalhar para o estrangeiro, declina as ofertas, antes convidando os potenciais compradores a visitar o seu atelier para aí escolherem entre as peças já produzidas.
António Cruz é o típico o artesão movido essencialmente pelo bafo da inspiração.
Vega Mar & Aventura #20 Abril/Maio 2006

Sertão é recolhimento



Dizem, e é bem capaz de ser verdade, que o amanhecer brasileiro se esmera quando se aproxima do São Francisco.

Se há algo que este rio possui e transmite é a identidade, essa identidade caipira, de fala mansa e olhar brilhante, num ritual pausado de dádiva sem esperar permuta.
Porém, outro dos seus traços marcantes, este extensível à totalidade do território brasileiro, é a desigualdade que faz com que metade da sua riqueza esteja concentrada em apenas 10% da população. Todo o Nordeste observa esta regra sendo-lhe habitual a convivência entre o progresso e a regressividade social ao que não é alheia toda a sua história - a ligação entre o cristianismo e a escravatura de que resultou uma sociedade teoricamente cristã mas de práticas opostas; a combinação entre o liberalismo e a escravidão de onde resultaram liberdades civis para uma escassa minoria, até à aliança entre o desenvolvimento e a desigualdade estrutural que originou uma discrepante concentração de riqueza.
A história do Nordeste e da gente do São Francisco está intimamente ligada à da descoberta e colonização do Brasil, simples de contar nos atropelos aos direitos do homem e da natureza - 1501, dia de São Francisco, Américo Vespúcio ao serviço da coroa portuguesa descobre a foz daquele a que, há milhares de anos vogando entre margens, retirando do seu curso o alimento, a argila para os utensílios, os índios chamavam Opara (Rio-Mar). Obedecendo às ordens reais, os nomes nativos dariam lugar a outros que evocassem a cultura cristã dos colonizadores. Se inicialmente a alteração se limitou ao nome, o tempo e o homem trataram de fazer evoluir a transformação. Em 1549 chega o primeiro governador do Brasil, Tomé de Souza, acompanhado por Francisco Garcia d'Avila, primeiro senhor da Casa da Torre e percursor dos bandeirantes. Nas caravelas, gado. Estavam reunidos os ingredientes principais para o início da lenta devastação - evitando a destruição dos canaviais, o gado era conduzido para o sertão, preferencialmente ao longo do rio. Os animais teriam terra e água para crescer e Portugal iniciaria o processo de colonização. Terras? As dos índios, agora dizimados e foragidos. Em 1600 começaram a chegar os missionários com outras intenções que não as dos lucros económicos, mas as facilidades previstas estiveram longe das encontradas. Se por ordens reais cada donatário deveria conceder uma légua de terra às missões, na colónia longínqua prevalecia a lei do mais forte. Por outro lado, o efeito das missões na preservação das culturas nativas estava em consonância com a época que se vivia. Os missionários que conseguiram instalar-se tentavam efectivamente defender os indígenas da violência física dos colonos mas faziam-no agregando-os em aldeias tipicamente europeias, tentando alterar as suas crenças, negando-lhes a ancestral memória cultural e civilizacional, descaracterizando-os. Em simultâneo, e na dificuldade de escravizar a população nativa, a rota da escravatura passou a fazer escala no Brasil onde eram deixados alguns dos negros capturados em África. Em tudo isto o São Francisco tomou parte activa e é mostra viva, ficando assim composta a miscelânea genética vindoura, o retrato do homem do São Francisco dos nossos dias, um misto do sentimento semi-trágico do colono ibérico, da dignidade do índio e da estrutura física do africano numa amálgama condensada de crenças e costumes tão díspares como as culturas que o compõem.
Desde a sua nascente no Miradouro da Canastra, em Minas Gerais, até à foz no pontão do Cabeço, em Alagoas, o “Velho Chico” atravessa cinco estados (Minas, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas). Uma das principais referências hídricas do Brasil, ele tem sido estrada, energia e alimento, além de ponto de confluência cultural.Com o evoluir dos séculos a importância deste rio nunca foi ignorada. Na voz do povo ele foi o “Caminho Geral do Sertão”, o “rio dos currais” que, auxiliados por longos e pesados varejões com pontas de ferro que apoiavam no fundo como forma de impulso, homens atravessavam nas suas balsas transportando gado, carga preciosa à altura Já pelo século XVII, a notícia de ouro por aquelas paragens atraiu exploradores, aventureiros, desempregados. Foram alguns os casos em que o rio foi represado ou desviado artificialmente para outros canais deixando o seu leito a descoberto. Durante a Segunda Guerra Mundial o São Francisco foi uma alternativa segura para evitar os submarinos alemães como, mais tarde, foi caminho para seringueiros recrutados para trabalhar na Amazónia ou para os migrantes em busca de vida melhor em S. Paulo. Era o tempo dos vapores que misturavam na sua carga pessoas, legumes, café, algodão e animais, o tempo em que foi chamado o “rio da unidade nacional”. Para o designar assim hoje, só percorrendo as suas margens.
Onde antes navegavam vapores hoje apenas podem circular balsas, pequenos barcos de transporte entre populações ribeirinhas ou barcaças de pescadores que açoitam o rio na tentativa de espantar para as suas redes o pouco peixe existente. Apesar do rio se mostrar depauperado muitos mantêm-se na lida, conscientes de que os seus poucos estudos não lhes proporcionariam outra renda maior.
A decomposição ecológica levada a cabo pelo homem ameaça ressequir essa corrente ainda valiosa: cerca de 95% dos manguezais e vegetação que outrora ladeava as suas margens foram destruídos para fornecimento da indústria do carvão provocando um assoreamento constante; as barragens vêm retendo as águas, alterando a sua temperatura, os ciclos do rio e da piscicultura; os dejectos químicos dos mega- projectos agrícolas contaminam as águas e aniquilam o peixe na mesmo proporção; fábricas de açúcar drenaram terreno e plantaram cana; as cidades ao longo do seu curso vertem nele as águas residuais. Debate reacendido em cada campanha eleitoral, discute-se a sua transposição que levará água às terras mais áridas do Ceará ao que se opõem os que reclamam pela revitalização do “Velho Chico”.
De tudo vai restando a memória da gente do São Francisco, a fartura que o rio lhes proporcionou. Adaptaram-se e aguardam sem grandes expectativas. Essencialmente pescadores e agricultores, vendem nos mercados o resultado do seu labor na terra ou na água. São também artesãos, seguidores dessa arte que lhes ficou dos seus antepassados índios. Modelam o barro, agora mais para turista comprar do que para seu próprio usufruto. Porque o presente não tem muito para mostrar, moldam as “boiadas” e os “boiadeiros”, imortalizam Lampião, o cangaceiro justo do Nordeste. Por poucos reais, camionetas levam o seu trabalho anónimo para a Bahia, bastião do turismo nordestino.
Nas pequenas comunidades ribeirinhas o quotidiano decorre lento, ainda indiferente no que respeita ao futuro. Miúdos mergulham ou lançam a tarrafa que traz o peixe miúdo para o lanche, lava-se roupa, areiam-se tachos, numa autêntica casa sem tecto nem paredes. Da povoação maior chega a barcaça com aqueles que foram buscar o essencial. Por um real, dois miúdos carregam os sacos e entregam-nos na carroça puxada pelo burro pachorrento. De quando em vez passa o barco com turistas curiosos. Na esplanada do bar observa-se calmamente a passagem do dia ao sabor da cerveja anunciada em cartazes apetecíveis. O ensino e a saúde chegam ali bem mais dificilmente do que a publicidade.
Território não é apenas um mapa como um povo não é um mercado mas uma interacção de gente, cultura, trabalho, memória, política e fé. Torna-se por isso necessário melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) sendo prioritário transformar as comunidades ribeirinhas em guardiãs da sua própria riqueza fomentando a reflorestação das suas margens bem como a vigilância sobre a evolução da piscicultura em conjunto com técnicos, além de alertar todos os que estão ligados ao ensino e possuem meios para despertar a consciência ecológica nos alunos, não apenas nos municípios, banhados pelo São Francisco mas também dos que ladeiam os seus afluentes, bombeadores de água e de vida para o “Velho Chico” envelhecido.
Cheias e secas fazem parte da história de vida do povo ribeirinho e integram a história económica e social da região do São Francisco. Se as cheias representam grandeza para o povo, as vazantes correspondem à sua miséria. Contudo, chuvadas invulgares como a de 2004 não encontraram recipiente que as comportassem. As descargas das barragens, há 10 anos de comportas fechadas, fizeram com que o São Francisco e seus afluentes saíssem das margens, ensaiando retomar as suas terras cobrindo as cidades que banham como que reclamando do desrespeito de que têm sido alvo pelo homem.
Desde 1979 que o nível das águas não sofria um aumento tão significativo – desembocando no Atlântico entre Alagoas e Sergipe, a foz do rio aumentou 316%: passou de 1.200 para 5.000 metros cúbicos por segundo, a Defesa Civil ficou em alerta máximo. Populações inteiras viram-se desalojadas, o barco passou a ser o transporte possível entre telhados. Comunidades, já por si naturalmente depauperadas, viram os seus campos de cultivo submersos, as colheitas destruídas. Há quem fale na alegria do sertanejo que vê nestas cheias o aumento da procura de mão-de-obra para o conserto da destruição visível, emitem-se opiniões sobre o verde que emergirá de terrenos agora empapados de um castanho devastador, omite-se o juízo daqueles que, habituados a ter pouco, se viram repentinamente sem nada.
A Secretaria Nacional de Defesa Civil alertou as prefeitos de todas as cidades que ficam às margens do rio nos estados de Alagoas e Sergipe e pediu para que as prefeituras e as coordenadoras estaduais de defesa civil tomassem as providências de retirar as pessoas das áreas que devem ficar inundadas, é certo. É também realidade que o director do Departamento de Minimização de Desastres da Secretaria Nacional de Defesa Civil informou que os órgãos federais estariam preparados para enviar ajuda aos municípios atingidos pelas inundações dizendo “Nós estamos em contacto directo e, se houver alguma coisa que fuja do controle e que dependa do accionamento de alguma coisa da área federal, esse accionamento vai ser de imediato e nós vamos tomar as providências”, mas cabem aqui duas perguntas: de que controle podem as coisas fugir? Que providências conseguem ser tomadas substituindo a ausência delas ao longo de séculos?
As chuvadas já lá vão e basta uma pequena pesquisa para perceber que as suas consequências já são passado, já não fazem notícia, deixaram de importar ao país e menos ainda ao mundo. Lentamente tudo volta ao que é a normalidade nesta região e apenas os locais terão mais histórias para contar, sempre naquele sotaque sertanejo, pausado e sorridente de quem não se insurge contra a desgraça, venha ela dos céus ou da gente terrena. Unicamente memórias, porque o importante é passar este dia, amanhã se verá. O Deus dos brancos, os dos índios ou todos em conjunto se ocuparão da gente do Nordeste e do São Francisco defendendo-os de desgraças maiores.
Vega Mar & Aventura #17 - Novembro/Dezembro 2005

os cavalos também curam



Já na Grécia Antiga Hipócrates chamava a atenção para a prática da equitação como forma de melhorar o estado anímico das pessoas com doenças crónicas e, no século XV, Dom Duarte, na sua obra “ Artes de Bem Cavalgar em Toda a Sela”, salientava os benefícios que a prática de montar a cavalo trazia à saúde dos praticantes. Hoje, a hipoterapia é definitivamente reconhecida como uma forma terapêutica alternativa e complementar.

O vento é agreste mas não o suficiente para desmotivar os voluntários da Associação Hípica para Deficientes de Cascais (AHDC) que vão chegando ao picadeiro. Maurício e Índia, os cavalos escolhidos para esta sessão, já foram passados à corda para que se mantenham calmos, característica essencial dos animais utilizados na equitação terapêutica. Fisioterapeutas, monitores de equitação e voluntários trazem a caixa onde os toques são guardados. Cadeiras, pinos e jogos de cores são dispostos nos locais previamente estabelecidos. Está tudo a postos para quem começa a chegar nas carrinhas das instituições, das autarquias ou em carros particulares.
São alunos especiais que nestes dias frequentam as aulas de equitação no picadeiro do Clube D. Carlos, no Guincho. Crianças e jovens com quem a exactidão da natureza ou dos médicos falhou, deixando-lhes marcas e incapacidades mais ou menos severas, umas vezes bem visíveis outras nem tanto, e a quem a equitação terapêutica auxilia a ultrapassar as suas dificuldades. Problemas que vão desde a paralisia cerebral ao autismo podem ver resultados práticos de melhorias físicas e comportamentais através da prática da hipoterapia.
Como explica Paula Caracol, uma das voluntárias da AHDC, “a equitação terapêutica tem várias vantagens. Ao andar, o cavalo envia ao cérebro do cavaleiro estímulos em tudo semelhantes aos de uma caminhada, o que conduz a uma melhor noção do espaço e aumenta o sentido de equilíbrio”, além de que, “se pensarmos que a maior parte destas pessoas passa a vida numa cadeira de rodas, a visualizar tudo de baixo para cima, o simples facto de estar em cima do cavalo, numa posição superior, vai influenciar de forma positiva a sua forma de olhar o mundo. Ela deixa de se sentir numa posição de inferioridade e aumenta a sua auto-estima ”.
O ambiente é de boa disposição. Os primeiros cavaleiros são conduzidos até às montadas enquanto os restantes aguardam ansiosamente a sua vez. Os exercícios, porque todos os casos são diferentes, são adaptados a cada situação e vão sendo desenvolvidos em cima do cavalo: “Vamos dizer adeus a todo essa gente! Com as duas mãos!”, ouve-se uma voz. Sem dar por isso, ao retirar as mãos do cavalo, Paula executa um movimento que vai ajudá-la a melhorar o equilíbrio. Do lado oposto do picadeiro outro grupo anima David a apanhar os sacos coloridos previamente dispostos no muro: “Muito bem, David! Agora vamos atirá-los para os baldes.” E, ao acertar no recipiente da cor do saco, a criança exercita a sua parte cognitiva ao mesmo tempo que desenvolve a sua força muscular.
Também o corpo peludo e quente do animal constitui um centro de estímulos para o cérebro do cavaleiro que ao acariciar o cavalo desenvolve o seu lado afectivo. Talvez por isso Paula se debruce agarrada ao pescoço de “Maurício” e lhe diz: “és o melhor amigo que eu podia ter arranjado, e não tenho vergonha de o dizer”.
Já no Centro Equestre João Cardiga (CEJC), em Barcarena, Leceia, o ambiente é despreocupado e familiar. Laura chega pontual cumprimentando toda a gente na alegria dos seus quatro anos. Percebe-se que conhece bem os cantos e os hábitos da casa. Não é caso para menos. Elisabete, a mãe, cedo intuiu que a equitação seria uma forma de ultrapassar os problemas originados pela Trissomia 21 que afecta a filha e com apenas dois anos já a pequena Laura se sentava sobre o dorso de "Jackie". A mãe está convicta de que o contacto com os cavalos ajudou a que a filha seja hoje uma criança muito afectiva e segura de si mesma. Educadora de infância de profissão, Elisabete nota que, apesar do problema congénito da Laura, “saltar com os dois pés juntos ou subir para uma cadeira não constituem problema para ela, ao contrário do que acontece com algumas crianças da sua idade”.
No picadeiro, muito compenetrados, os miúdos levam "Jackie" à corda. Também este momento é importante para a sua auto-estima. Os papéis invertem-se e a criança, habituada a ser conduzida, passa a ser responsável pelo animal que segue a seu lado.
Já em cima da montada, os exercícios tornam-se momentos lúdicos. Sobre o tapete de pêlo que se move a passo, Alfredo Nogueira, o fisioterapeuta do CEJC, vai pedindo posições que ele mesmo exemplifica: "mãos atrás do pescoço. Isso mesmo!” Sobre o dorso do cavalo, deitados, de costas ou de frente, os miúdos riem com as brincadeiras dos monitores: “vamos descalçar o chulé?” André ri-se e deixa que lhe tirem os sapatos. “E agora, senhoras e senhores, para a televisão, o André vai fazer um exercício muito difícil!”, Alfredo faz a locução enquanto coloca a criança em pé, sobre o pónei, continuando: “ e aqui está! Uma volta em pé sobre a "Jackie"! Diz adeus à mãe, André!” E o miúdo segue caminho, mandando beijos de mão para trás do vidro onde a mãe o observa. André tem problemas de equilíbrio que o levam a cair muito facilmente. A conselho médico começou a frequentar a hipoterapia e a mãe confirma os resultados positivos: “o tónus muscular do André tem vindo a aumentar, assim como o seu equilíbrio”.
Cada pequeno progresso notado nos pacientes é motivo de satisfação para todos os envolvidos. É o caso de Sara. Ela tem 24 anos e frequenta as sessões de hipoterapia há cerca de um mês. “Quando chegou, a tensão dos músculos da Sara não lhe permitia deitar-se sobre o cavalo, neste momento já o faz”, conta Alfredo que, de acordo com o diagnóstico clínico de cada paciente, lhe aplica os exercícios apropriados para melhorar as zonas mais fragilizadas do corpo. “Não é milagroso, mas verificamos muitos progressos nos nossos miúdos e isso deixa-nos naturalmente satisfeitos”, afirma Lurdes Cardiga que, em conjunto com o marido, João Cardiga, dirigem o CEJC.
É aliás um sentimento generalizado entre os que estão ligados à hipoterapia, pequenos gestos são motivo de regozijo para todos.
Malica, outra das voluntárias da AHDC, não esconde a sua satisfação quando Diogo bate palmas em cima do cavalo. Já na sessão anterior ela percebera que, apesar do aparente alheamento sobre o que o rodeava, Diogo seguia o pai com os olhos quando este se deslocava e ficara contente quando o jovem resistiu à mão com que o segurava. Os gestos que Diogo efectua agora sobre a montada trazem-lhe novo sinal: “este menino está a reagir, isto é muito bom!”

Equitação adaptada para competir a sério


Mas não se pense que o tratamento pelos equídeos termina na hipoterapia. Como afirma Carlos Lopes, do centro hípico da Quinta do Senhor da Serra, em Belas, “a equitação terapêutica é uma etapa que nos permite partir para uma verdadeira reintegração social destas pessoas através da aposta na equitação adaptada”. Esta modalidade permite aos seus praticantes o desenvolvimento de capacidades que lhes vão facultar a autonomia no manejo dos cavalos e, inclusivamente, participar em competições nacionais e internacionais.
Se tal é importante sobre o ponto de vista físico, as proporções a nível psicológico são muito maiores. Para quem sempre sentiu limitações inerentes à sua condição física, a possibilidade de as ultrapassar e atingir lugares de pódio é no mínimo encorajadora. Com este intuito Carlos Lopes é um dos mais acérrimos impulsionadores da equitação adaptada, empenhando-se, no ano de 2002, em trazer o Campeonato Europeu para Portugal: “Se nós não tínhamos dinheiro nem apoios para levar os nossos cavaleiros à Europa, trouxemos a Europa até Portugal” diz, continuando: “se temos praticantes, não podemos ficar parados! Temos o dever de investir nestas pessoas, mostrar-lhes novos horizontes, fazê-los acreditar que podem e devem fazer tudo para ultrapassar as suas dificuldades físicas.”
Sendo a prática da equitação adaptada ainda mais recente do que a da hipoterapia, os atletas portugueses, maioritariamente sem apoios, dependem quase exclusivamente de si e da boa vontade dos seus treinadores para o bom desempenho da modalidade e apresentação em concursos. A título de exemplo, até fins de Fevereiro de 2005, ainda não existia qualquer calendário de provas que permitisse aos atletas competirem entre si e aferirem dos progressos alcançados.
Outro problema que se coloca são as dificuldades que a maior parte dos cavaleiros tem em adquirir um cavalo que se adapte às suas condições físicas. “Uma solução possível poderia ser a parceria entre alguns criadores, que cederiam cavalos, e os atletas, que os representariam nas competições”, sugere Lurdes Cardiga, do CEJC, centro ao qual pertence Sara Duarte, um dos exemplos de sucesso possível de alcançar.
Sara, que ficou em terceiro lugar no Campeonato Nacional de Equitação Adaptada em 2004, tem vinte anos e começou a praticar equitação aos sete. Apesar da paralisia cerebral que a afecta, a jovem tem hoje uma vida autónoma, frequenta o primeiro ano do curso de farmácia e é motivo de orgulho do seu treinador, João Cardiga, que afirma retirar do seu trabalho como técnico de equitação adaptada “um prazer muito pessoal que é o de assistir à evolução miúdos marcados por dificuldades, tornando-se autónomos até ao ponto onde está a Sara”.

"É possível"

Marco Mateus tem catorze anos e chegou ao centro equestre de Belas há 3. Uma paralisia cerebral à nascença marcava-lhe a força, o equilíbrio, as capacidades físicas. Na sequência das sessões de hipoterapia, Carlos Lopes viu nele as potencialidades necessárias a um atleta de equitação adaptada e decidiu investir no jovem cavaleiro a quem exige treino e persistência. Como o próprio treinador afirma: “ele tem hipóteses, em cima do cavalo é igual a qualquer outro. Se tiver a força de vontade suficiente pode perfeitamente ultrapassar todas as dificuldades físicas e chegar às competições”.
Para já, Marco vai construindo a sua própria autonomia. Quer ser informático e para o conseguir divide o seu tempo entre o estudo e a equitação. Sente melhorias relativamente a força muscular e ao equilíbrio embora por vezes sobrevenha o desânimo dos treinos repetidos mas, para essas ocasiões, lá estão a mãe e os dois treinadores, Carlos Lopes e Miguel Gomes, repetindo-lhe que: é possível.

Notícias Magazine #688 - 31.07.2005