agosto 31, 2006

arte-xávega na margem sul


A escassos quilómetros da capital ficam as praias que muitos dos lisboetas frequentam: o areal que se estende entre a Costa de Caparica e a Fonte da Telha. Outrora terra de pescadores, hoje ainda há por lá gente que faz da faina a sua profissão. No Verão, ao longo do dia, pode ver-se um ou outro junto dos barcos, a preparar as redes. Quando as praias começam a ficar vazias de gente, eles invadem os areais. É a arte-xávega, que ainda se pratica na zona.

Do molhe, olhando para Sul, avista-se um aglomerado diferente de pessoas. São cerca das 18h30 e o sol começa lentamente a baixar. Com a proximidade percebe-se que aquela é gente da terra, melhor dizendo, que é gente do mar. Todos usam oleados, alguns trazem gorros de lã, preparados para o frio ao largo. Movimentam tractores, mexem nas redes, entram e saem das “chatas”, que é como quem diz barcos, naquela região. Não falam muito, o que dificulta o contacto. Recuando no tempo, vêm à lembrança muitas horas a andar nos areais, muitos rostos fechados. Quis o acaso que um dia o Buissa salvasse a máquina fotográfica de sucumbir entre as ondas enquanto eu me ocupava a engolir borbotões de água salgada. Na chata e em terra haviam risos, mas o gelo estava quebrado e ficou uma ténue ligação: “Apareça quando quiser. Pergunte pelo Paulo Graça. Aqui toda a gente o conhece, é ele o arrais.”

O mestre mais novo da zona

Ser arrais de uma chata é um estatuto, é ser conhecido não apenas entre a comunidade dos pescadores mas também por toda a vila, pelo menos entre os residentes mais antigos, mesmo que sem ligações ao mar. E Paulo Graça é-o, apesar de ser o mestre mais novo da zona. Com os seus trinta e nove anos nota-se-lhe no porte e no olhar alguma rebeldia, talvez ainda resto de uma juventude cheia de afirmação própria. O seu rosto fechado é capaz de se abrir num sorriso quando fala de coisas que lhe dão prazer ou ganhar um ar longínquo enquanto passa as mãos nos cabelos de alguma das filhas “é por elas que eu trabalho tanto”, afirma, com o olhar num local inalcançável. “Não as quero no mar, é uma vida muito instável. Até podem ir por brincadeira, mas a sério só quando tiverem uma ocupação estável.” Para elas sonha com a medicina, mas esta escolha já não lhe pertence. Suas foram as opções que foi tomando ao longo da vida. Filho, neto e sobrinho de pescadores, com doze anos já andava ao mar. Aos catorze, assim que a lei lho permitiu, tirou a cédula marítima. Primeiro de pescador, até chegar ao mestre de costa, que é hoje. Aos dezoito anos, ”porque queria ser mais independente e ter as minhas coisas”, deixou de acompanhar o pai na faina, passando a andar às ordens de outros arrais. Até que, por “brincadeira aí com outros companheiros que diziam que era bom”, fez-se imigrante pela Europa. “Fui experimentar, mas não gostei. Voltei para a pesca.” Sentado no muro, com as mãos apoiadas, balançando os pés pendentes, olha para baixo quando queremos saber o que o atrai tanto na pesca: “tudo. É a adrenalina que isto tem. Gosto de andar no mar.” Vendo-o a comandar o Neptuno, o barco de que é arrais, pleno daquela segurança que só possuem os que gostam do que fazem, sente-se que não mente.

A instabilidade da Natureza

Paulo Graça dedica-se à arte-xávega de Maio até Novembro, “a partir daí o peixe migra e nós deixamos de pescar porque não é rentável”. É sobretudo desta instabilidade motivada pelo factor Natureza que se queixa,” há anos em que há muito peixe, outros em que há pouco. O peixe passa por aqui mas segue, não fica. Nos outros anos tem havido muito camarão, que é a comeria do peixe e aguenta por cá o carapau, a lula. Principalmente o carapau, quando tem muito alimento fica junto à costa, se não tem, amara” diz, rematando ”e este ano tem sido dos piores dos últimos 10.” Ocorrem-nos então todas as vezes que, após a abertura do saco da rede sobre o oleado, vimos sobressair as sardas e os caranguejos, espécies que ninguém compra, ao mesmo tempo que se ouvia: “Isto hoje nem para o gasóleo dá”. Como fazem, nessas alturas? “Acumulamos a despesa até que venha um dia que dê para as pagar. Chegam por vezes a ser muitos dias à espera disso.” Quanto aos próprios pescadores, alguns estão prevenidos com algum dinheiro amealhado nos dias melhores, outros apoiam-se nas pequenas reformas. No caso de Paulo Graça, pode contar também com o ordenado fixo da mulher, mas nem sempre é fácil fazer face às despesas diárias. Casos há em que apenas o peixe distribuído entre todos impede que as, já de si precárias, condições de vida piorem. É o motivo por que Paulo Graça diz que a arte-xávega “ajuda muita gente a sobreviver”. Observando os pescadores ao longo da praia, constatamos que muitos deles já estão bem longe da juventude, o que nos faz inquirir sobre o futuro desta arte. A realidade é que já só os mais velhos sabem montar as redes para este tipo de pesca, que têm uma forma própria. Se Paulo Graça começa agora a preocupar-se em aprender a montá-las, diz-nos também que não tem conhecimento de muitos mais companheiros que o façam. Contudo, a resposta vem rápida: “a arte-xávega não acaba. É a arte mais antiga que há no país e talvez do mundo. Não acaba, nem que seja para manter a tradição, como já fazem em alguns sítios”.

Depois do Verão

Chegado o Inverno, Paulo Graça dedica-se à pesca do polvo e “da rede de emalhar. É uma pesca mais perigosa, feita em alto mar, ali na barra. Por vezes o mar vira de um momento para o outro e apanha-nos lá no meio”. Por isso, considera a pesca mais fácil no Verão, mesmo que possa ganhar menos. Do Inverno recorda dois naufrágios, o último deles há um ano, na barra, no qual perdeu quase tudo: um amigo, o barco, as redes, e ia perdendo também a vida, não fosse outra embarcação tê-lo resgatado ao fim de três horas de andar à deriva sem que nenhuma patrulha marítima desse por isso. Na sua opinião, “a polícia anda mais à procura da multa – se pescamos no canal, somos multados, se pescamos a menos de duzentos metros de terra, somos multados…” Sem grande parte do rio para trabalhar, os pescadores “afastam-se para o largo, para zonas bastante mais perigosas onde ocorrem por vezes grandes acidentes e, porque não há qualquer proibição, não existe patrulhamento.” Foi o que aconteceu no seu último naufrágio. Se o assustou? Claro que sim, mas ficou sem nada e não pode parar. O barco, por se tornar muito caro, não estava no seguro e ajudas não as teve, embora obtivesse algumas promessas, nomeadamente da junta, ainda por cumprir. O que tem a fazer é tentar recuperar o que perdeu e sabe que, se arriscar um pouco, a pesca de Inverno será bem mais compensadora do que a do Verão. Até lá, para sua sobrevivência e para prazer de todos que queiram assistir, vai seguindo o ritual da arte-xávega: o tractor que leva a chata ao mar, as primeiras remadas dadas pelos pescadores até que o motor possa ser posto a trabalhar, o lançamento da rede e o regresso a terra, enquanto os outros dois tractores tratam de alar os braços da rede até à chegada do saco que será aberto sobre o oleado. Tudo isto uma, duas, três, as vezes que o mar lhe oferecer peixe.
Notícias Magazine #639 - 22.08.2004

1 comentário:

Pois disse...

Olá, daqui Edgar Castelo.
Vi agora o teu Blog. Tá giro!

Queres ouvir uma muito gira?

Fiz um Site sobre construir Protótipos, em Inglês.

http://buildyourstuff.googlepages.com/BuildYourStuffhomemadePrototypes.htm

Houve gente que me disse que o devia fazer em Português, e eu, casmurro como sou, fi-lo em Inglês à mesma.

Resultado? Mais de 50% dos espectadores são...

Portugueses!

Aposto que se o fizesse em Português, ninguém o via, ESPECIALMENTE os Portugueses...

Como dizia o Polícia na série policial portuguesa Klaxon:

"Estou há muito tempo nesta merda para me enganar!"