agosto 31, 2006

os cavalos também curam



Já na Grécia Antiga Hipócrates chamava a atenção para a prática da equitação como forma de melhorar o estado anímico das pessoas com doenças crónicas e, no século XV, Dom Duarte, na sua obra “ Artes de Bem Cavalgar em Toda a Sela”, salientava os benefícios que a prática de montar a cavalo trazia à saúde dos praticantes. Hoje, a hipoterapia é definitivamente reconhecida como uma forma terapêutica alternativa e complementar.

O vento é agreste mas não o suficiente para desmotivar os voluntários da Associação Hípica para Deficientes de Cascais (AHDC) que vão chegando ao picadeiro. Maurício e Índia, os cavalos escolhidos para esta sessão, já foram passados à corda para que se mantenham calmos, característica essencial dos animais utilizados na equitação terapêutica. Fisioterapeutas, monitores de equitação e voluntários trazem a caixa onde os toques são guardados. Cadeiras, pinos e jogos de cores são dispostos nos locais previamente estabelecidos. Está tudo a postos para quem começa a chegar nas carrinhas das instituições, das autarquias ou em carros particulares.
São alunos especiais que nestes dias frequentam as aulas de equitação no picadeiro do Clube D. Carlos, no Guincho. Crianças e jovens com quem a exactidão da natureza ou dos médicos falhou, deixando-lhes marcas e incapacidades mais ou menos severas, umas vezes bem visíveis outras nem tanto, e a quem a equitação terapêutica auxilia a ultrapassar as suas dificuldades. Problemas que vão desde a paralisia cerebral ao autismo podem ver resultados práticos de melhorias físicas e comportamentais através da prática da hipoterapia.
Como explica Paula Caracol, uma das voluntárias da AHDC, “a equitação terapêutica tem várias vantagens. Ao andar, o cavalo envia ao cérebro do cavaleiro estímulos em tudo semelhantes aos de uma caminhada, o que conduz a uma melhor noção do espaço e aumenta o sentido de equilíbrio”, além de que, “se pensarmos que a maior parte destas pessoas passa a vida numa cadeira de rodas, a visualizar tudo de baixo para cima, o simples facto de estar em cima do cavalo, numa posição superior, vai influenciar de forma positiva a sua forma de olhar o mundo. Ela deixa de se sentir numa posição de inferioridade e aumenta a sua auto-estima ”.
O ambiente é de boa disposição. Os primeiros cavaleiros são conduzidos até às montadas enquanto os restantes aguardam ansiosamente a sua vez. Os exercícios, porque todos os casos são diferentes, são adaptados a cada situação e vão sendo desenvolvidos em cima do cavalo: “Vamos dizer adeus a todo essa gente! Com as duas mãos!”, ouve-se uma voz. Sem dar por isso, ao retirar as mãos do cavalo, Paula executa um movimento que vai ajudá-la a melhorar o equilíbrio. Do lado oposto do picadeiro outro grupo anima David a apanhar os sacos coloridos previamente dispostos no muro: “Muito bem, David! Agora vamos atirá-los para os baldes.” E, ao acertar no recipiente da cor do saco, a criança exercita a sua parte cognitiva ao mesmo tempo que desenvolve a sua força muscular.
Também o corpo peludo e quente do animal constitui um centro de estímulos para o cérebro do cavaleiro que ao acariciar o cavalo desenvolve o seu lado afectivo. Talvez por isso Paula se debruce agarrada ao pescoço de “Maurício” e lhe diz: “és o melhor amigo que eu podia ter arranjado, e não tenho vergonha de o dizer”.
Já no Centro Equestre João Cardiga (CEJC), em Barcarena, Leceia, o ambiente é despreocupado e familiar. Laura chega pontual cumprimentando toda a gente na alegria dos seus quatro anos. Percebe-se que conhece bem os cantos e os hábitos da casa. Não é caso para menos. Elisabete, a mãe, cedo intuiu que a equitação seria uma forma de ultrapassar os problemas originados pela Trissomia 21 que afecta a filha e com apenas dois anos já a pequena Laura se sentava sobre o dorso de "Jackie". A mãe está convicta de que o contacto com os cavalos ajudou a que a filha seja hoje uma criança muito afectiva e segura de si mesma. Educadora de infância de profissão, Elisabete nota que, apesar do problema congénito da Laura, “saltar com os dois pés juntos ou subir para uma cadeira não constituem problema para ela, ao contrário do que acontece com algumas crianças da sua idade”.
No picadeiro, muito compenetrados, os miúdos levam "Jackie" à corda. Também este momento é importante para a sua auto-estima. Os papéis invertem-se e a criança, habituada a ser conduzida, passa a ser responsável pelo animal que segue a seu lado.
Já em cima da montada, os exercícios tornam-se momentos lúdicos. Sobre o tapete de pêlo que se move a passo, Alfredo Nogueira, o fisioterapeuta do CEJC, vai pedindo posições que ele mesmo exemplifica: "mãos atrás do pescoço. Isso mesmo!” Sobre o dorso do cavalo, deitados, de costas ou de frente, os miúdos riem com as brincadeiras dos monitores: “vamos descalçar o chulé?” André ri-se e deixa que lhe tirem os sapatos. “E agora, senhoras e senhores, para a televisão, o André vai fazer um exercício muito difícil!”, Alfredo faz a locução enquanto coloca a criança em pé, sobre o pónei, continuando: “ e aqui está! Uma volta em pé sobre a "Jackie"! Diz adeus à mãe, André!” E o miúdo segue caminho, mandando beijos de mão para trás do vidro onde a mãe o observa. André tem problemas de equilíbrio que o levam a cair muito facilmente. A conselho médico começou a frequentar a hipoterapia e a mãe confirma os resultados positivos: “o tónus muscular do André tem vindo a aumentar, assim como o seu equilíbrio”.
Cada pequeno progresso notado nos pacientes é motivo de satisfação para todos os envolvidos. É o caso de Sara. Ela tem 24 anos e frequenta as sessões de hipoterapia há cerca de um mês. “Quando chegou, a tensão dos músculos da Sara não lhe permitia deitar-se sobre o cavalo, neste momento já o faz”, conta Alfredo que, de acordo com o diagnóstico clínico de cada paciente, lhe aplica os exercícios apropriados para melhorar as zonas mais fragilizadas do corpo. “Não é milagroso, mas verificamos muitos progressos nos nossos miúdos e isso deixa-nos naturalmente satisfeitos”, afirma Lurdes Cardiga que, em conjunto com o marido, João Cardiga, dirigem o CEJC.
É aliás um sentimento generalizado entre os que estão ligados à hipoterapia, pequenos gestos são motivo de regozijo para todos.
Malica, outra das voluntárias da AHDC, não esconde a sua satisfação quando Diogo bate palmas em cima do cavalo. Já na sessão anterior ela percebera que, apesar do aparente alheamento sobre o que o rodeava, Diogo seguia o pai com os olhos quando este se deslocava e ficara contente quando o jovem resistiu à mão com que o segurava. Os gestos que Diogo efectua agora sobre a montada trazem-lhe novo sinal: “este menino está a reagir, isto é muito bom!”

Equitação adaptada para competir a sério


Mas não se pense que o tratamento pelos equídeos termina na hipoterapia. Como afirma Carlos Lopes, do centro hípico da Quinta do Senhor da Serra, em Belas, “a equitação terapêutica é uma etapa que nos permite partir para uma verdadeira reintegração social destas pessoas através da aposta na equitação adaptada”. Esta modalidade permite aos seus praticantes o desenvolvimento de capacidades que lhes vão facultar a autonomia no manejo dos cavalos e, inclusivamente, participar em competições nacionais e internacionais.
Se tal é importante sobre o ponto de vista físico, as proporções a nível psicológico são muito maiores. Para quem sempre sentiu limitações inerentes à sua condição física, a possibilidade de as ultrapassar e atingir lugares de pódio é no mínimo encorajadora. Com este intuito Carlos Lopes é um dos mais acérrimos impulsionadores da equitação adaptada, empenhando-se, no ano de 2002, em trazer o Campeonato Europeu para Portugal: “Se nós não tínhamos dinheiro nem apoios para levar os nossos cavaleiros à Europa, trouxemos a Europa até Portugal” diz, continuando: “se temos praticantes, não podemos ficar parados! Temos o dever de investir nestas pessoas, mostrar-lhes novos horizontes, fazê-los acreditar que podem e devem fazer tudo para ultrapassar as suas dificuldades físicas.”
Sendo a prática da equitação adaptada ainda mais recente do que a da hipoterapia, os atletas portugueses, maioritariamente sem apoios, dependem quase exclusivamente de si e da boa vontade dos seus treinadores para o bom desempenho da modalidade e apresentação em concursos. A título de exemplo, até fins de Fevereiro de 2005, ainda não existia qualquer calendário de provas que permitisse aos atletas competirem entre si e aferirem dos progressos alcançados.
Outro problema que se coloca são as dificuldades que a maior parte dos cavaleiros tem em adquirir um cavalo que se adapte às suas condições físicas. “Uma solução possível poderia ser a parceria entre alguns criadores, que cederiam cavalos, e os atletas, que os representariam nas competições”, sugere Lurdes Cardiga, do CEJC, centro ao qual pertence Sara Duarte, um dos exemplos de sucesso possível de alcançar.
Sara, que ficou em terceiro lugar no Campeonato Nacional de Equitação Adaptada em 2004, tem vinte anos e começou a praticar equitação aos sete. Apesar da paralisia cerebral que a afecta, a jovem tem hoje uma vida autónoma, frequenta o primeiro ano do curso de farmácia e é motivo de orgulho do seu treinador, João Cardiga, que afirma retirar do seu trabalho como técnico de equitação adaptada “um prazer muito pessoal que é o de assistir à evolução miúdos marcados por dificuldades, tornando-se autónomos até ao ponto onde está a Sara”.

"É possível"

Marco Mateus tem catorze anos e chegou ao centro equestre de Belas há 3. Uma paralisia cerebral à nascença marcava-lhe a força, o equilíbrio, as capacidades físicas. Na sequência das sessões de hipoterapia, Carlos Lopes viu nele as potencialidades necessárias a um atleta de equitação adaptada e decidiu investir no jovem cavaleiro a quem exige treino e persistência. Como o próprio treinador afirma: “ele tem hipóteses, em cima do cavalo é igual a qualquer outro. Se tiver a força de vontade suficiente pode perfeitamente ultrapassar todas as dificuldades físicas e chegar às competições”.
Para já, Marco vai construindo a sua própria autonomia. Quer ser informático e para o conseguir divide o seu tempo entre o estudo e a equitação. Sente melhorias relativamente a força muscular e ao equilíbrio embora por vezes sobrevenha o desânimo dos treinos repetidos mas, para essas ocasiões, lá estão a mãe e os dois treinadores, Carlos Lopes e Miguel Gomes, repetindo-lhe que: é possível.

Notícias Magazine #688 - 31.07.2005

Sem comentários: