agosto 31, 2006

sacudindo a memória

Estamos habituados a comentar as glórias, ou a sua ausência, no desporto. Vestimos as janelas e os carros com bandeiras nacionais durante o Euro 2004, aplaudimos as medalhas dos olímpicos, esquecemo-nos geralmente dos Paraolímpicos, também eles atletas de alta competição e verdadeiros campeões.

Eles são aqueles que ganham prémios habitualmente mas a quem as câmaras raramente focam. Foram quinze, entre ouro e bronze, as medalhas trazidas de Sydney em 2000. Temos bi-campeões europeus, mundiais e paraolímpicos, nomes e feitos quase desconhecidos pela maioria das pessoas.
É gente que colecciona medalhas no estrangeiro e promessas quando regressam a casa. O incumprimento dos compromissos para com eles assumidos, ou a sua tardia concretização, consciencializam-nos de que lutam quase sozinhos para glorificar um país que esquece a sua existência.
Seja a nível de apoios estatais ou de prémios obtidos em competição, os praticantes de desportos adaptados continuam a ser alvo de distinção comparativamente aos seus colegas não portadores de deficiências físicas. A título de exemplo, só a 19 de Agosto deste ano foi assinado entre os organismos estatais competentes e a Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes (FPDD) o protocolo que permitiria aos atletas e respectivos técnicos usufruir de uma bolsa de preparação para os Jogos Paraolímpicos de Atenas.
Se é certo que esta bolsa tem efeitos retroactivos a 2003 e 2004, é também verdade que toda a preparação dos atletas foi feita à custa de si mesmos, do apoio das instituições a que estão ligados, que lhes disponibilizaram técnicos inteiramente dedicados e os espaços adequados à sua preparação, e da bolsa proveniente do “Projecto Super Atleta” cuja responsável, a FDPP, pretendeu mobilizar o país para as causas do movimento paraolímpico. No âmbito deste projecto, com a finalidade de captar a atenção do público em geral e, particularmente, do segmento onde estas pessoas estão inseridas, foram nomeados seus embaixadores algumas figuras da vida pública portuguesa como o actor Ruy de Carvalho, ou os desportistas Eusébio e Rosa Mota, sendo Luís Figo o patrono. Em simultâneo foi criado um programa de patrocinadores regulares da Federação, o que permitiu a atribuição de uma bolsa em numerário aos atletas participantes e assegurou os meios financeiros necessários para despesas inerentes à presença da comissão portuguesa em Atenas.
De salientar a atitude de técnicos e de atletas que, embora gostassem de ser tratados de forma igual, está muito longe de ser uma postura de queixa. Como afirma Carlos Mota, um dos treinadores destacados para acompanhar os participantes na modalidade de natação: “Não somos tão apoiados como os atletas olímpicos, mas temos o apoio que é possível.”
De 17 a 29 de Setembro decorrerão os Jogos Paraolímpicos de Atenas e Portugal estará representado em seis modalidades: atletismo, basquetebol, boccia, ciclismo, equitação e natação. As deficiências de que são portadores os atletas participantes são várias: motora, visual, intelectual e paralisia cerebral. Congénitas ou adquiridas, elas são algo que os tem acompanhado ao longo dos últimos anos ou durante toda a vida, problemas com os quais se habituaram a viver, barreiras que tentam constantemente transpor. Nas diversas modalidades que praticam eles são agrupados de acordo com o seu grau de deficiência, competindo assim em igualdade de circunstâncias com atletas cujas insuficiências são similares às suas.
Em Portugal talvez soprem ventos de mudança: as objectivas da comunicação social começaram a mostrar os nossos desportistas ao país e uma ou outra janela mantém-se enfeitada pelas cores nacionais, em sinal de apoio aos participantes nos Paraolímpicos.
Quanto aos atletas, estes mantêm-se fiéis ao que sempre pretenderam: com ou sem visibilidade, honrar as cores nacionais como vêm fazendo desde 1988, ano da primeira participação de uma missão portuguesa nos Jogos.

Atletas da Gesloures, trabalho e companheirismo

Carlos Mota é treinador na Gesloures e um dos técnicos destacados para acompanhar os atletas da modalidade de natação a Atenas. É ele quem explica: “Na Gesloures temos uma estrutura de trabalho montada. Quando as pessoas precisam de fazer reabilitação, muitos dos médicos aconselham a natação ou a ginástica aquática. A Gesloures está preparada para os receber e fazer a sua reabilitação, mas temos também outras saídas – depois de aprenderem a nadar, quem quiser pode continuar a frequentar a instituição por lazer, da mesma forma que há quem continue por desporto de rendimento, com o objectivo de ir a provas e participar em competições. Aqueles que mais se destacam acabam por fazer marcas de qualidade internacional e participar neste tipo de eventos.”
Aos atletas, se há alguma coisa de comum que os caracterize, é a boa disposição. Aceitam-se como são, tentam tornear os problemas que a sociedade lhes coloca como o fez Leila Marques quando quis entrar para o curso de medicina. Aparentemente a lei barrava-lhe o acesso pela notória ausência de um dos braços. Após muita insistência da candidata, finalmente alguém teve o bom senso de entender que a rapariga “dificilmente poderia fazer cirurgias mas nada a impossibilitava de ser médica”. Frequenta hoje o quinto ano de medicina, conciliando o curso com os treinos, num horário que a obriga a levantar-se às 5h30 para fazer duas horas de treino às 6h, seguir para a faculdade e voltar para a musculação às 17h.
Em circunstâncias semelhantes Susana Barroso, Nuno Vitorino e Maria João Morgado.
Susana Barroso é portadora de uma disfunção muscular progressiva. Embora sempre com esperança que a evolução da genética lhe venha a impedir a progressão da sua doença, tal não a impede de ocupar um cargo de responsabilidade no campo profissional e ser bi-campeã europeia de natação e vice-campeã paraolímpica nos 50 metros costas. Por seu turno, o nadador e informático na Câmara Municipal de Lisboa, Nuno Vitorino, afirma que “há muito sacrifício por parte dos atletas para chegar aos Paraolímpicos. Apenas 5% deles, ou talvez menos, conseguem cumprir esse percurso”, ao mesmo tempo, e sem falsas modéstias, declara: ”Sinto-me orgulhoso por fazer parte desta equipa de elite.” Quanto a Maria João Morgado, vítima de uma paralisia cerebral provocada à nascença, encara a vida com um ar sorridente. Fala cinco línguas e trabalha em traduções como free-lancer, ao mesmo tempo que faz um curso profissionalizante que lhe permitirá vir a ser monitora de pessoas portadoras de deficiência.
Observá-los entre eles é uma lição de camaradagem e boa disposição. O que um tem dificuldade em fazer há outro que pode ajudar, para o que nenhum consegue, existe Carlos Mota. Fora dos treinos ele é o companheiro capaz de auxiliar no que for necessário. Porém, dentro de água, as pressões mudam. Os atletas têm de lutar contra o relógio e o treinador não tenciona ver a modalidade como forma de fisioterapia. Tal como afirma: “As medalhas são importantes, sim. Eles são atletas como quaisquer outros e tenho a obrigação de exigir deles“.
É neste equilíbrio entre o ambiente descontraído e o de trabalho intenso que vive a capacidade de ultrapassar barreiras e verem concretizado o sonho que foi o de serem convocados para os Jogos Paraolímpicos de Atenas e agora, o de trazerem medalhas na bagagem.


O boccia, uma outra realidade

Modalidade para muitos desconhecida, o boccia foi criado a pensar especificamente nas pessoas com deficiência mental. Contudo, é praticado por atletas com esta característica como por para e tetraplégicos, alguns deles também vítimas de distrofia muscular degenerativa.
Se entre eles existem os que são relativamente autónomos, outros há que por dificuldades ou impossibilidade de sincronização motora, muitas vezes aliadas à dificuldade de fala, dependem em quase tudo de alguém. É nestes casos que a relação entre atletas e acompanhantes técnicos é mais surpreendente.
A professora Helena Bastos, treinadora e seleccionadora nacional da modalidade, explica, referindo-se aos acompanhantes técnicos, “eles são uma extensão do jogador que lhes diz o que eles têm de fazer através de inclinações do rosto. Estes acompanhantes, que em competição passam o tempo de costas para o jogo sem poderem sequer falar, entendem-nos muito bem, têm uma grande empatia com eles, são os braços que o atleta não pode usar”.
Para esta mulher, cuja voz e gestos estão envoltos numa calma impressionante, começar a trabalhar com os atletas do boccia foi um percurso absolutamente natural. Nas suas próprias palavras: “Estas coisas acontecem. A pessoa vê, gosta e tem uma compensação pessoal muito grande que é a de ver os atletas satisfeitos e a evoluir.” Professora de educação física no ensino secundário e superior considera que o seu trabalhos com os atletas é o seu hobby: “Posso cansar-me mas é também um recarregar de baterias, porque eles têm problemas muito grandes mas vivem, tentam ser felizes e levar a vida para a frente.”
Quanto ao grupo que irá estar presente em Atenas, Helena Bastos afirma que “em termos de campeonatos nacionais lutam ponto por ponto mas competem de uma forma muito saudável. Em competições internacionais funcionam muito unidos - o fracasso ou o sucesso de qualquer jogador reflecte-se em todos os outros.” E o facto de os meios de comunicação social lhes estarem a dar alguma evidência “é muito bom. Estes atletas eram indivíduos que há uns anos atrás estavam fechados em casa, sem que ninguém lhes prestasse atenção. Esta visibilidade faz com que os familiares e os amigos apareçam. Deixaram de ser os coitadinhos e sentem que são capazes de fazer coisas”.
Magazine Domingo - 19.09.2004

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