agosto 31, 2006

dentro da tenda

Na arena, à noite, circo é magia. Durante o dia, para lá das lantejoulas e das maquilhagens, é o quotidiano de gente vulgar, provavelmente mais feliz do que o comum – fazem o que gostam, amam a liberdade da sua forma de vida e afirmam que no circo é como em todas as profissões, há gente bem sucedida, outra nem por isso. Falamos do “Circo Ruben”, poderia ser de outro qualquer.

Ângelo Dias fala pouco sobre si mesmo. Foram outros que nos contaram como aos seis anos já ensaiava acrobacias e como ainda hoje é recordado nos meios circenses de Itália. Um acidente na pista fez com que Ângelo desse entrada no hospital com um dos pés ao seu lado, conservado em gelo. Julgaram que não voltasse a andar, contudo a vontade do homem foi mais forte do que as suposições dos médicos. Regressou à pista mas as dificuldades dos exercícios eram agora excessivas para o seu corpo lesionado. Ângelo optou por tornar-se domador de tigres, e criar a sua própria companhia.
Sempre a seu lado tem estado Isabel, nascida e criada em Mértola. O casamento com Ângelo trouxe-a para o circo já lá vão nove anos. À pronúncia, se alguma a vez teve, deve tê-la trocado ao longo do tempo pelo dia-a-dia atribulado da vida circense. Sorrindo, diz que hoje teria dificuldade em se readaptar à vivência calma que tinha anteriormente.
Se a Ângelo cabe tratar dos ensaios das luzes, música, artistas e pessoal de apoio, além das burocracias essenciais às deslocações da companhia, Isabel trata dos animais que, como diz, são “sempre a prioridade no circo”. É fácil encontrá-la junto dos bichos, de manhã cedo, de forquilha na mão, limpando o local e orientando o empregado que a apoia.
Também os filhos são essencialmente da responsabilidade de Isabel. Quando regressa à caravana após o tratamento dos animais, encontra Eveline, nos seus cinco meses, sorridentemente untada em chocolate que um dos irmãos lhe deu. Ângela, a mais velha dos quatro, passeia-se num vestido da mãe, enquanto Ivan e Ruben ostentam felizes a liberdade da sua nudez.
Isabel tenta repor a ordem na trupe loira que se dispersa em gargalhadas por entre caravanas. Eveline, porque ainda não anda, acaba por ser a mais fácil de tratar. A ideia do banho arranca-lhe sonoras reclamações mas regressa menos pegajosa e com o mesmo sorriso.
Ângela, muito feminina e ciente do seu estatuto de irmã mais velha, já trata de si mesma vestindo-se e escovando a longa e rebelde cabeleira.
Enquanto a mãe consegue vestir e calçar Ivan, Ruben aparece com uns calções vestidos, dos quais não tardou a desenvencilhar-se, e os seus sapatos serão os únicos a manter-se no degrau da caravana. Minutos mais tarde, torneando a intimidação de Isabel para que não voltasse a aparecer nu junto de si, o reguila de cabelo cor de palha surge com uma luva que lhe “veste” a mão: «olha mãe, estou “assim”». Isabel finge ignorar, prefere fazê-lo. Sabe que os filhos são felizes desta forma e que, a seu tempo, terão oportunidade de cumprir este tipo de regras sociais. Defende que vivam intensamente a sua infância mesmo que a sociedade os olhe de lado – as crianças nem dão por isso e ela aparenta não reparar.
No entanto, recorda uma manhã em que encontrou à porta da caravana um saco com roupas e sapatos. Alguém tinha visto Ruben no dia anterior a brincar todo nu e pensou: “coitadinhos, não têm roupas”. Num acesso de solidariedade, a pessoa revolveu o roupeiro dos netos conseguindo reunir coisas que já não lhes faziam falta. Só não deve ter entendido que aos miúdos do circo também não - eles apenas viviam a liberdade que aos seus netos era negada.
É por situações destas que o casal afirma que artista de circo não é gente sem eira nem beira. Quase todos têm a sua casa, igual a qualquer outra, onde regressam após as digressões. Lamentam que as pessoas os olhem de forma desconfiada ou com pena. Afinal o circo não é mais do que uma empresa, sem relógio de ponto, que circula por aí em camiões e atrelados.
Que lhes dêem melhores condições para exercerem a sua profissão é tudo o que pedem, o que se pode resumir à disponibilidade para aluguer, a preço justo, de terrenos públicos onde possam actuar no Inverno sem que a assistência tenha de se sujeitar a enterrar os pés na lama ou sem que os animais se assustem perante um ressalto do piso.

Se no estrangeiro os circos têm um professor pago pelo estado para acompanhar os filhos dos artistas, em Portugal as crianças andam de escola em escola, ao ritmo das caravanas.
Se falarmos nos compêndios escolares, só no ano lectivo 2003/2004, para que Ângela conseguisse acompanhar minimamente os colegas do primeiro ano, Isabel comprou cinco manuais diferentes - um por cada escola por onde a criança passou, o quinto para que ela mesma pudesse exercitar um pouco mais a filha. Para minimizar esta situação, apesar das deslocações do circo, Isabel prefere muitas vezes manter a criança por mais umas semanas na mesma escola, chegando a fazer 120 quilómetros por dia para a transportar.
Domingo Magazine 05.09.2004

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