Bell, Marconi, Diesel ou Edison, são nomes que nos trazem à ideia produtos de uso comum, inventos que simplificaram e melhoraram a nossa vida. Porém, a individualidade, que distinguiu a invenção até ao início do século XX, deu lugar a outros princípios.
Nos tempos modernos, a criatividade é caracterizada pela multidisciplinaridade, passou a desenvolver-se em empresas, universidades e pólos tecnológicos. Cada invento é essencialmente anónimo, resultante não do trabalho de uma pessoa mas de uma comunidade.
Terá o inventor independente perdido lugar na sociedade? Camilo Rodrigues, presidente da Associação Portuguesa de Criatividade (APC), acredita “continuar a haver espaço para os inventores independentes”. E isto, “como resolução das situações práticas do dia-a-dia, mas também para soluções tecnológicas mais avançadas”. Para o responsável pela APC, a independência do inventor facilita que este explore o caminho menos provável, aquele que vai contra as leis aceites e estabelecidas. E talvez seja aqui que começam os problemas dos criadores independentes em Portugal. É o caso de Jesuvino Moleirinho, reformado da Lisnave, neste momento a braços com a tentativa de encontrar quem ceda em lhe fazer os testes à sua novíssima turbina eólica. As pás desta turbina, colocadas na horizontal, aparentam produzir o quádruplo da energia fornecida pelos geradores tradicionais. Do INETI, organismo onde se dirigiu e por nós contactado, a resposta veio clara, de quem preferiu manter o anonimato: “até podemos dar um parecer positivo, mas dificilmente o senhor Moleirinho conseguirá ir contra as ideias instituídas”.
Dias antes, já Camilo Rodrigues, previra atitude semelhante ao afirmar a propósito: “quando uma coisa destas cai num instituto ou numa universidade, o inventor é olhado como o palerma que põe a hélice na horizontal quando todos os fabricantes estão a fazer doutra maneira.” Contudo, “está ali a pequena centelha que o inventor que o inventor independente ainda pode dar. Pode ser essa pequena mudança a originar que uma coisa daquelas se torne ainda muito mais rentável do que já é”.
A hipótese deste parecer traz-nos uma questão mais abrangente que não se prende apenas com Portugal, antes sendo uma característica comum ao Velho Mundo. “A Europa está velha e gorda”, diz Camilo Rodrigues. Na sua opinião, que parece reunir o consenso dos inventores, “ao nível da inovação, há uma dinâmica muito mais intensa nos chamados novos países”. Partindo do exemplo dos Estados Unidos, onde as próprias entidades oficiais analisam periodicamente o registo de patentes sugerindo parcerias aos inventores independentes, a diferença em relação ao peso da burocracia, nomeadamente em Portugal, é notória. Além disso, do outro lado do oceano aposta-se muito mais em coisas práticas e rentáveis, mesmo que tecnologicamente menos evoluídas. Reportando-nos à indústria aeronáutica, exemplo disso é a criação do Concorde, maravilha tecnológica, por parte da Europa, em relação ao Boieng, menos evoluído, incapaz de ultrapassar duas vezes a velocidade do som, mas que veio incrementar as viagens transatlânticas através da democratização dos preços. Se é facto que o projecto europeu Airbus está agora a singrar, para Camilo Rodrigues, “a Europa acordou passados muitos anos e muitos milhões de dólares”.
Um muro feito de burocracia
Ultrapassar a barreira da burocracia e dos preconceitos à novidade nem sempre parece fácil num país cujo governo assumiu o choque tecnológico como estandarte, mas onde a comunidade científica continua a olhar de esguelha as ideias nascidas fora do seu círculo e os empresários dão preferência ao investimento seguro. O resultado, são invenções apenas patenteadas em Portugal que, decorrido o período de direito de prioridade, podem ser livremente utilizadas por empresas estrangeiras. Nos raros casos de sucesso, ele é obtido à custa de empenhamento solitário e riscos económicos pessoais. Os prémios e as medalhas até são conseguidos; tornar os inventos artigos de uso comum é que parece mais complicado. Não por falta de interesse do público mas pela ausência de investidores.
Jesuvino Moleirinho, também o sabe por experiência própria. Das ideias deste homem nasceu o “sapato ventilado”, que apresentou no Salão de Inventos de Genebra. De lá trouxe uma medalha e uma lista de 35 empresas, de vários pontos do mundo, interessadas em revender o sapato. Porém, nem essa lista motivou qualquer industrial português a ensaiar a produção do artigo, antes deixando às marcas estrangeiras a exploração e rentabilização da ideia que originou os hoje célebres ténis com caixa-de-ar. Desta invenção, Moleirinho lucrou apenas a certeza de que, em países com tradições de investimento, a sua ideia é comercialmente rentável. Além disso, e apesar de tal não produzir euros, pode sempre inscrever a patente no currículo, mesmo que muito poucos tenham conhecimento do facto.
Não é motivo de surpresa, esta usurpação legal de ideias. A Europa está unificada mas as patentes continuam a ser pedidas país a país e, habitualmente, qualquer invento apenas é objecto de registo no estado de residência do seu criador. Por si só, e durante 20 anos, sem autorização do inventor, a existência desse registo é impeditiva do fabrico do produto no território onde está patenteado, restando ao criador o período de um ano para proteger a sua ideia no resto do mundo. Porém, muitas vezes sem dinheiro e sem qualquer tipo de incentivos ou certezas quanto ao eventual interesse de empresas estrangeiras, o inventor independente raramente arrisca a gastar milhares de euros em patentes internacionais. Passado esse período, o invento passa então ao domínio público, podendo ser comercialmente explorado a nível mundial.
Edgar Castelo é inventor a tempo inteiro, “que é a mesma coisa que dizer que estou desempregado”, afirma. “Isto é um apartheid tecnológico. Quem é doutor, tem direito a falar de inovação, quem não é doutor, é mão-de-obra barata. Em Portugal, na Europa toda é assim”, queixa-se. “Eu, nesta Europa, já fui a Genebra, já ganhei uma medalha de ouro, duas medalhas de prata, várias medalhas de bronze. O que é que isso me deu?”
O primeiro invento de Edgar Castelo foi um compasso para desenhar elipses. Tinha dezoito anos. “Naquele tempo estava a estudar design, ainda estava no liceu”. Não terminou o curso e insistiu nas invenções mas, sem dinheiro nem apoios, manter a escolha tem-se mostrado complicado. Desenvolveu a ideia do “Triosk”, um triciclo quiosque destinado a deficientes motores. Em Genebra “ apareceu uma senhora que era esposa de um paraplégico e gostava muito de comprar uma coisa daquelas para ver se o marido fazia qualquer coisa com a vida - porque aquilo trata do emprego para pessoas deficientes motoras. Tive de lhe escrever uma carta a dizer que nós somos portugueses, portanto não fabricamos nada. Aquela invenção recebeu uma medalha de ouro em 2002 e o que é a Europa fez por essa invenção?”
Também o “BusStoper” foi premiado a prata no salão de Genebra. Invento destinado a deficientes visuais, “trata-se de um painel com números que se mostra aos autocarros, para os cegos possam mandar parar o transporte que querem”. Contudo, e apesar da simplicidade da ideia, o invento não mereceu melhor sorte que o “Triosk”. “Houve um senhor que disse: olhe, isto vai dar à pessoa o estigma de ser cego”, conta Edgar com um encolher de ombros de quem já se habituou a bater a portas que se fecham constantemente.
Fazer-se empresário é solução
Há porém quem aposte na produção própria dos seus inventos para conseguir fazê-los chegar ao circuito comercial. Fernando Braamcamp, presidente da Junta de Freguesia do Alto Pina, com a sua “cadeira de banho”, pensada para deficientes, é um deles.
“A ideia surgiu de pensar como é que os deficientes entravam para a banheira. Perguntei a um, que tomava banho assim com uma coisa tipo malabarista”. Ao investigar o que oferecia o mercado a nível mundial, depressa concluiu que relação qualidade/preço era muito desnivelada. Começou então a pensar numa cadeira que proporcionasse às pessoas um modo de fazer a sua higiene pessoal de forma mais autónoma, “porque muitas pessoas precisam de ajuda não para se lavarem mas para transpor a banheira”. Surgiu a “cadeira de banho”. Explica: “as pessoas dizem: mas isso é o ovo de Colombo. E é verdade. Não inventei nada, só juntei duas funções nesta cadeira: o movimento rotativo, que normalmente todas têm, com o movimento de translação, para vir fora da banheira”.
Ajuda, para testes ou comercialização desta ajuda técnica, nunca os conseguiu. “O que nós precisamos é de um apoio, não apenas a nível monetário mas a nível institucional, de testes, um técnico que nos diga, olhe, ponha lá esta rodinha. Demorei muito, até chegar à roda com a resistência e desempenho necessários, porque eu fiz testes, fiz uma análise de risco à cadeira, tudo foi testado à exaustão. Todas estas situações, o estado também não garante, porque depois é uma universidade daqui que investiga dali, não há canais privilegiados para isso. Nem na parte dos tecidos monetários, nem na parte dos apoios técnicos”. Optou então por ser ele mesmo a testar o seu produto com o apoio do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, pedir a certificação do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED). Munido destas duas certificações, passou a fazer a apresentação da cadeira porta-a-porta, tornando-se o vendedor do seu próprio artigo, sobretudo em lares de terceira idade. Porque não vender a patente? “Tive aqui também uma preocupação social de tentar que o produto chegasse a um preço justo a quem dele necessita, o que de outra forma seria difícil”, diz.
Energias alternativas
Também Virgílio Preto, engenheiro civil, pensa conseguir ver tornar-se realidade o seu projecto que pretende rentabilizar a energia das ondas. “A ideia nasceu espontaneamente. Foi a observação, conhecimentos internos, depois, tudo conjugado, formou um conceito”.
Para o conseguir, Virgílio Preto criou uma empresa, a Enerwave, à qual se juntam capitais de outros investidores, e tem vindo a estabelecer protocolos com a Universidade do Minho e a Universidade de Aveiro no sentido de criarem “uma unidade, em pequena escala, mas em condições reais e naturais” capaz de aferir da rentabilidade do invento. Será dos poucos casos em que se verifica uma verdadeira cooperação entre um inventor independente e outros parceiros tecnológicos, contudo, “o processo tem sido bastante complicado porque quer a comunidade científica quer a vocação dos apoios, neste momento, estão canalizados fundamentalmente através das universidades das empresas tecnológicas. As coisas estão perfeitamente definidas e é extremamente difícil um inventor independente ultrapassar todas essas barreiras”. Para Virgílio Preto, “Existem mecanismos e formas de apoio reais, o estado português e a comunidade investiram muito dinheiro a criar os organismos mas o investimento não foi feito em formação e devidamente explicado a essas entidades o que é que o país esperava delas. Porque todas estas entidades só têm razão de ser se o benefício para o país for francamente positivo”. E, na opinião do inventor, não é isso que se passa e “os projectos acabam por entrar e morrer porque os organismos em si, em vez de serem uma entidade incentivadora, cortam muitos do projectos à nascença”.
Persistente, Virgílio Preto tem este projecto já patenteado a nível internacional, acreditando que o seu será um dos que conseguirá vingar entre os 5 existentes a nível mundial.
Ao mesmo tempo tem vindo a progredir num outro invento ligado à energia eólica: “Neste momento os sistemas eólicos são baseados para grandes produções e este sistema deixa de ser uma central para produção geral para passar a produzir para sistemas individuais. Pode adaptar-se aos condomínios, aos prédios, às moradias, digamos que é uma democratização da produção de energia”.
Das suas ideias que não consegui concretizar, o inventor diz nunca ter sentido especiais frustrações sempre que se apercebeu que elas eram posteriormente aproveitadas e até rentabilizadas. “Fiquei satisfeito. No fim de contas, eu não tive as condições ou as capacidades para desenvolver as coisas mas verificou-se que eram boas ideias e que tinham viabilidade comercial e real”.
O melhor ecrã do mundo
Joaquim Candeias é arquitecto de formação e desde sempre se sentiu atraído pela imagem. Ver filmes em sua casa com a qualidade que conseguia no cinema foi o seu objectivo quando começou a trabalhar naquele que hoje é considerado o melhor ecrã a nível mundial, o Lusoscreen. São 26 vezes mais luz que o comum dos ecrãs e o dobro do seu mais directo seguidor, um americano. No que toca ao contraste, mais uma vez o Lusoscreen bate, agora por K.O., o adversário americano. São 359 vezes mais de contraste, do português, contra as 13,2 vezes para o produto dos Estado Unidos. “A maior vantagem deste ecrã é poder estar numa sala sem fechar as luzes, sem fechar as janelas, e conseguir ter uma imagem como se estivesse às escuras”, explica Joaquim Candeias. O próprio vice presidente da Sanyo japonesa deslocou-se a Portugal na tentativa de adquirir os direitos de produção do ecrã, mas as condições propostas não agradaram ao seu criador que decidiu tornar-se empresário investir na produção por conta própria.
Do seu percurso como inventor, o arquitecto diz ter começado “por conseguir umas quantas coisas que depois vi surgirem lá fora. E, à semelhança de muitas outras pessoas em Portugal, apanhei dores de barriga, frustrações, senti-me mal, etc. Num dado momento desisti, de registar patentes, comecei a guardar segredo, até que um dia tivesse eventualmente condições para fazer. O ecrã foi um deles”.
Para Joaquim Candeias, os organismos oficiais em Portugal “não reagem” aos inventos nacionais. Em 1996, quando chegou da Cebit-Home, de Hannover, onde o ecrã foi considerado Grande Inovação, trouxe uma lista com “cerca de 150 empresas interessadas em revender o ecrã”. Sem qualquer tipo de incentivos que não a própria listagem que tinha em mãos, conseguiu entregar o primeiro ecrã que lhe tinha sido encomendado passados dois anos.
Tem aliás uma história com um empresário espanhol, interessado em revender os ecrãs, que havia perdido o prospecto onde figurava o contacto de Candeias. “Já tinha telefonado para o ICEP [Instituto das Empresas para os Mercados Externos], para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, para ver se sabia quem é que produzia o ecrã e ninguém sabia”, conta Joaquim Candeias. “Disse-me: porque é que isto não faz ‘boom’? Um ecrã destes tinha a hipótese de criar imensos postos de trabalho, trazer divisas para o país. Em Espanha teria logo todo o tipo de apoios para fazer isto em grande escala e exportar”.
“Em Portugal não é bem assim que se passa”, afirma Joaquim Candeias que chegou a vender a sua própria casa para fazer face às dificuldades entretanto surgidas. De um pequeno armazém de azeitonas, onde iniciou a sua actividade, ocupa hoje um espaço na zona industrial de Palmela. “Tem-se conseguido”, afirma o agora empresário, “já não volta para trás”.
Notícias Magazine #782 20 Maio 2007